MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quarta-feira, 4 de março de 2020

Um país onde os cães valem mais do que os filhos


A Assembleia vai discutir propostas de quase todas as bancadas para reforçar a proteção dos animais. É um país a reboque do PAN [Partido das Pessoas, dos Animais e da Natureza], o que não surpreende: há mais lares com cães e gatos do que com filhos. Artigo de José Manuel Fernandes, publisher do Observador:

Na maioria dos lares portugueses não há crianças – mas há animais de companhia. Não apenas os tradicionais cães ou gatos, agora também “escorpiões, tarântulas, tucanos, furões, macacos ou chimpanzés, aranhas, lagartos, bichos-de-conta gigantes, formigas, baratas, leões, uma pitão com sete metros ou um elefante-africano”, como revela um livro recente, Cobras, lagartos e baratas: os melhores amigos do homem? Não surpreende por isso que hoje e amanhã o Parlamento vá dedicar duas sessões a debater a nossa relação com os animais. Estará à discussão uma petição, quatro projectos de resolução e mais quatro projectos de lei. Quase todos os partidos vão a jogo, que o tema hoje traz dividendos eleitorais, mas é o PAN que marca a passada e dá o tom. Por isso tomem nota: a nova palavra cujo significado vai ser preciso conhecer é senciência. Mas já lá vamos.

Quem não vive em meios urbanos sabe que o país se debate hoje com um problema: o número de animais errantes aumentou substancialmente desde que entrou em vigor a lei aprovada em 2016 que proíbe o abate de animais abandonados nos canis e centros de recolha. Nada que não se esperasse, nada para que os veterinários não tivessem avisado. Há zonas do país onde as matilhas de cães assilvestrados (cãos que regressaram a um estado semi-selvagem) são um problema de saúde pública e uma ameaça para os agricultores. Ainda o mês passado tivemos notícia de vários ataques de “cães vadios” que matou dezenas de cabras em quatro freguesias de Viana do Castelo. Se tivessem sido lobos, haveria lugar a indemnização – como foram cães, o prejuízo foi dos pastores.

O PAN e o Bloco querem aumentar ainda mais a dimensão do actual problema, propondo que os animais vítimas de violência passem a ficar à guarda do Estado – um Estado que já nem tem capacidade para recolher os animais abandonados que devia recolher

O bom senso talvez aconselhasse a revisitar os termos dessa legislação uma vez que, pouco mais de um ano passado sobre a entrada em vigor dessa proibição, é notório que as infraestruturas existentes no país, mesmo tendo sido reforçadas, estão a rebentar pelas costuras e pura e simplesmente não têm capacidade para acolher mais animais.

É isso que o Parlamento vai fazer? Não. Os senhores deputados preparam-se para fazer exactamente o contrário, numa competição por ficarem bem no retrato dos “amigos dos animais”, uma competição onde se uns dizem mata logo ao lado alguém grita esfola. Dos projectos apresentados o único que escapa ainda é o do PCP, que ao menos se propõe ouvir as autarquias locais e os veterinários antes de avançar com medidas muito radicais.

Já outros, como o PAN e o Bloco, querem aumentar ainda mais a dimensão do actual problema, propondo que os animais vítimas de violência passem a ficar à guarda do Estado – um Estado que, como vimos, já nem tem capacidade para recolher os animais abandonados que devia recolher. Claro que estes problemas práticos não atrapalham o PAN, que quando se lhe diz que as infraestruturas estão sobrelotadas responde defendendo que então é necessário aumentar as “famílias de acolhimento temporário”, que naturalmente não serão muitas, pois as famílias quando acolhem animais adoptam-nos, não ficam com eles apenas temporariamente.

Não tendo Portugal ainda – ainda… – chegado ao ponto em que o Estado pode impor aos cidadãos o que fazem dentro de suas casas, todos estes projectos terão como inevitável consequência ir ao bolso do contribuinte, pois nesse o Estado já entra com todo o à-vontade. É que mais infraestruturas públicas implicarão sempre mais gasto público, algo que os eleitores das cidades aplaudem mas que irá pesar sobretudo sobre os habitantes das zonas rurais, aquelas onde é maior o problema dos animais errantes.

De resto é bom que o povo do campo esteja atento, pois o PAN também quer introduzir um conjunto de alterações ao Código Penal com o objectivo, e cito de reforçar “o regime sancionatório aplicável aos animais de companhia e alargando a protecção aos animais sencientes vertebrados”. E é aqui que chegamos ao tal conceito de senciência que referi mais atrás.

Admito que a maior parte dos leitores não conheça o conceito, mas ele remete para a capacidade de ter percepções conscientes, sentir dor, medo ou ansiedade, uma capacidade que a generalidade dos animais tem, mesmo que em diferentes graus. Vertebrados ou invertebrados. É um capacidade que deriva de terem sistema sensorial.

O PAN, numa longuíssima exposição de motivos do seu projecto-lei (13 densas páginas), defende que “o caminho a seguir no alcance da tutela penal dos crimes contra os animais é o da senciência”, ficando-se para já pelos “animais sencientes vertebrados”. Como está bem de ver a primeira coisa que a lei tem de prever são excepções: se nela matar um “animal senciente vertebrado” é um crime, que iria acontecer aos produtores de carne de bovino ou a quem cria galinhas, porcos ou coelhos? Calma, a lei só se aplica “fora de actividade legalmente permitida ou autorizada”, o que para já nos permite continuar a produzir e a comer carne.

Mas, diabo, e as galinhas lá da aldeia, as que andam livres a picar no chão? Serão enquadráveis numa “actividade legalmente permitida ou autorizada”? Ou vão ter de morrer de velhas?

Já sabemos por onde estamos a ir. E sabemos porque lemos o programa eleitoral do PAN e lá se previa, por exemplo, “proibir o uso de animais como meio de tração de charretes de carácter lúdico ou turístico” (medida 731) ou “garantir a obrigatoriedade da existência de sombra e a protecção contra as intempéries nos pastos extensivos” (medida 770). Isto entre muitas outras medidas semelhantes.

O disparate porém é contagioso, pelo que quase todos os outros partidos também trataram de marcar o ponto neste debate, sendo que o PSD, sem ter elaborado uma proposta com o detalhe e a sofisticação retórica da do PAN, tratou de não se ficar nas encolhas do que diz respeito à moldura penal dos crimes contra os animais de companhia: nos casos considerados mais graves, em que exista morte do animal, a pena pode ir até três anos de prisão, o mesmo que propõe o PAN e também o Bloco.

Não sou jurista, não conheço o detalhe do nosso Código Penal, mas uma simples busca permitiu-se verificar que três anos é a mesma moldura penal que nele se prevê para crimes contra a autodeterminação sexual, crimes de sequestro, crimes de burla, crimes de roubo simples, crimes de falsificação de documentos e por aí adiante. O que me suscita uma questão singela: mas estes senhores deputados, incluindo os do PSD, perderam a noção das proporções? Acham mesmo que com remendos assim o Código Penal fica mais coerente e equilibrado?

Sinceramente não creio que tenham perdido muito tempo a pensar nisso. Pensaram mais, repito, nos 54% de lares que têm um animal de companhia (eram 45% em 2011, a evolução é rápida). Pensaram mais no eleitorado que se acumula no litoral e decide eleições e incomodaram-se pouco com o eleitorado do interior, aquele que serve para embelezar discursos e pouco mais.

Não desvalorizo a importância dos animais de companhia – sobretudo não desvalorizo a companhia que fazem num país envelhecido e no qual em quase um quarto dos lares só habita uma pessoa. Não tenho qualquer reserva, bem pelo contrário, relativamente aos princípios que sustentam a defesa do bem-estar animal – de resto, pratico-os.

Agora é necessário ter noção das proporções e das prioridades. Incomoda-me a inversão de valores que permite ver mais indignação nas redes sociais quando surge um animal abandonado do que perante o relato da vida de um sem-abrigo.

Podem achar-me antiquado, mas para mim o humanismo ainda vem à frente do animalismo.

Declaração de interesses – Tenho seis cães e dois gatos pois vivo no campo. São todos adoptados, menos um, que me foi oferecido. A mais recente apareceu-nos há poucas semanas vinda do nada, ainda cachorra, provavelmente porque tinha sido abandonada – depois de múltiplos esforços para encontrar o possível dono (não tinha chip), ficámos com ela. Quem quiser conhecê-los estão numa conta própria de Instagram: @velharosa. Estou a par das condições dos canis públicos da zona em que vivo e sei onde é perigoso passear com os cães por causa das matilhas assilvestradas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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