A Assembleia vai discutir propostas de quase todas as bancadas para
reforçar a proteção dos animais. É um país a reboque do PAN [Partido das
Pessoas, dos Animais e da Natureza], o que não surpreende: há mais
lares com cães e gatos do que com filhos. Artigo de José Manuel
Fernandes, publisher do Observador:
Na maioria dos lares portugueses não há crianças – mas há animais de
companhia. Não apenas os tradicionais cães ou gatos, agora também
“escorpiões, tarântulas, tucanos, furões, macacos ou chimpanzés,
aranhas, lagartos, bichos-de-conta gigantes, formigas, baratas, leões,
uma pitão com sete metros ou um elefante-africano”, como revela um livro
recente, Cobras, lagartos e baratas: os melhores amigos do homem? Não surpreende por isso que hoje e amanhã o Parlamento vá dedicar duas sessões a debater a nossa relação com os animais.
Estará à discussão uma petição, quatro projectos de resolução e mais
quatro projectos de lei. Quase todos os partidos vão a jogo, que o tema
hoje traz dividendos eleitorais, mas é o PAN que marca a passada e dá o
tom. Por isso tomem nota: a nova palavra cujo significado vai ser
preciso conhecer é senciência. Mas já lá vamos.
Quem não vive em meios urbanos sabe que o país se debate hoje com um
problema: o número de animais errantes aumentou substancialmente desde
que entrou em vigor a lei aprovada em 2016 que proíbe o abate de animais
abandonados nos canis e centros de recolha. Nada que não se esperasse,
nada para que os veterinários não tivessem avisado. Há zonas do país
onde as matilhas de cães assilvestrados (cãos que regressaram a um
estado semi-selvagem) são um problema de saúde pública e uma ameaça para
os agricultores. Ainda o mês passado tivemos notícia de vários ataques
de “cães vadios” que matou dezenas de cabras
em quatro freguesias de Viana do Castelo. Se tivessem sido lobos,
haveria lugar a indemnização – como foram cães, o prejuízo foi dos
pastores.
O PAN e o Bloco querem aumentar ainda mais a dimensão do actual
problema, propondo que os animais vítimas de violência passem a ficar à
guarda do Estado – um Estado que já nem tem capacidade para recolher os
animais abandonados que devia recolher
O bom senso talvez aconselhasse a revisitar os termos dessa
legislação uma vez que, pouco mais de um ano passado sobre a entrada em
vigor dessa proibição, é notório que as infraestruturas existentes no
país, mesmo tendo sido reforçadas, estão a rebentar pelas costuras e
pura e simplesmente não têm capacidade para acolher mais animais.
É isso que o Parlamento vai fazer? Não. Os senhores deputados
preparam-se para fazer exactamente o contrário, numa competição por
ficarem bem no retrato dos “amigos dos animais”, uma competição onde se
uns dizem mata logo ao lado alguém grita esfola. Dos projectos
apresentados o único que escapa ainda é o do PCP, que ao menos se propõe
ouvir as autarquias locais e os veterinários antes de avançar com
medidas muito radicais.
Já outros, como o PAN e o Bloco, querem aumentar ainda mais a
dimensão do actual problema, propondo que os animais vítimas de
violência passem a ficar à guarda do Estado – um Estado que, como vimos,
já nem tem capacidade para recolher os animais abandonados que devia
recolher. Claro que estes problemas práticos não atrapalham o PAN, que
quando se lhe diz que as infraestruturas estão sobrelotadas responde
defendendo que então é necessário aumentar as “famílias de acolhimento
temporário”, que naturalmente não serão muitas, pois as famílias quando
acolhem animais adoptam-nos, não ficam com eles apenas temporariamente.
Não tendo Portugal ainda – ainda… – chegado ao ponto em que o Estado
pode impor aos cidadãos o que fazem dentro de suas casas, todos estes
projectos terão como inevitável consequência ir ao bolso do
contribuinte, pois nesse o Estado já entra com todo o à-vontade. É que
mais infraestruturas públicas implicarão sempre mais gasto público, algo
que os eleitores das cidades aplaudem mas que irá pesar sobretudo sobre
os habitantes das zonas rurais, aquelas onde é maior o problema dos
animais errantes.
De resto é bom que o povo do campo esteja atento, pois o PAN também
quer introduzir um conjunto de alterações ao Código Penal com o
objectivo, e cito de reforçar “o regime sancionatório aplicável aos
animais de companhia e alargando a protecção aos animais sencientes
vertebrados”. E é aqui que chegamos ao tal conceito de senciência que
referi mais atrás.
Admito que a maior parte dos leitores não conheça o conceito, mas ele
remete para a capacidade de ter percepções conscientes, sentir dor,
medo ou ansiedade, uma capacidade que a generalidade dos animais tem,
mesmo que em diferentes graus. Vertebrados ou invertebrados. É um
capacidade que deriva de terem sistema sensorial.
O PAN, numa longuíssima exposição de motivos do seu projecto-lei (13
densas páginas), defende que “o caminho a seguir no alcance da tutela
penal dos crimes contra os animais é o da senciência”, ficando-se para
já pelos “animais sencientes vertebrados”. Como está bem de ver a
primeira coisa que a lei tem de prever são excepções: se nela matar um
“animal senciente vertebrado” é um crime, que iria acontecer aos
produtores de carne de bovino ou a quem cria galinhas, porcos ou
coelhos? Calma, a lei só se aplica “fora de actividade legalmente
permitida ou autorizada”, o que para já nos permite continuar a produzir
e a comer carne.
Mas, diabo, e as galinhas lá da aldeia, as que andam livres a picar
no chão? Serão enquadráveis numa “actividade legalmente permitida ou
autorizada”? Ou vão ter de morrer de velhas?
Já sabemos por onde estamos a ir. E sabemos porque lemos o programa eleitoral do PAN
e lá se previa, por exemplo, “proibir o uso de animais como meio de
tração de charretes de carácter lúdico ou turístico” (medida 731) ou
“garantir a obrigatoriedade da existência de sombra e a protecção
contra as intempéries nos pastos extensivos” (medida 770). Isto entre
muitas outras medidas semelhantes.
O disparate porém é contagioso, pelo que quase todos os outros partidos também trataram de marcar o ponto neste debate,
sendo que o PSD, sem ter elaborado uma proposta com o detalhe e a
sofisticação retórica da do PAN, tratou de não se ficar nas encolhas do
que diz respeito à moldura penal dos crimes contra os animais de
companhia: nos casos considerados mais graves, em que exista morte do
animal, a pena pode ir até três anos de prisão, o mesmo que propõe o PAN
e também o Bloco.
Não sou jurista, não conheço o detalhe do nosso Código Penal, mas uma
simples busca permitiu-se verificar que três anos é a mesma moldura
penal que nele se prevê para crimes contra a autodeterminação sexual,
crimes de sequestro, crimes de burla, crimes de roubo simples, crimes de
falsificação de documentos e por aí adiante. O que me suscita uma
questão singela: mas estes senhores deputados, incluindo os do PSD,
perderam a noção das proporções? Acham mesmo que com remendos assim o
Código Penal fica mais coerente e equilibrado?
Sinceramente não creio que tenham perdido muito tempo a pensar nisso. Pensaram mais, repito, nos 54% de lares que têm um animal de companhia
(eram 45% em 2011, a evolução é rápida). Pensaram mais no eleitorado
que se acumula no litoral e decide eleições e incomodaram-se pouco com o
eleitorado do interior, aquele que serve para embelezar discursos e
pouco mais.
Não desvalorizo a importância dos animais de companhia – sobretudo
não desvalorizo a companhia que fazem num país envelhecido e no qual em
quase um quarto dos lares só habita uma pessoa. Não tenho qualquer
reserva, bem pelo contrário, relativamente aos princípios que sustentam a
defesa do bem-estar animal – de resto, pratico-os.
Agora é necessário ter noção das proporções e das prioridades.
Incomoda-me a inversão de valores que permite ver mais indignação nas
redes sociais quando surge um animal abandonado do que perante o relato
da vida de um sem-abrigo.
Podem achar-me antiquado, mas para mim o humanismo ainda vem à frente do animalismo.
Declaração de interesses – Tenho seis cães e dois gatos pois vivo no
campo. São todos adoptados, menos um, que me foi oferecido. A mais
recente apareceu-nos há poucas semanas vinda do nada, ainda cachorra,
provavelmente porque tinha sido abandonada – depois de múltiplos
esforços para encontrar o possível dono (não tinha chip), ficámos com
ela. Quem quiser conhecê-los estão numa conta própria de Instagram: @velharosa.
Estou a par das condições dos canis públicos da zona em que vivo e sei
onde é perigoso passear com os cães por causa das matilhas
assilvestradas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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