Depois de tantos desastres, para que servem as ideologias? Precisamos é
de conhecimento, não de ideologia, esse pacote fechado ao qual a
realidade deve ser, forçosamente, submetida. Artigo meu, publicado hoje
na Gazeta do Povo:
Se ideologia é apenas concepção ou visão de mundo, como pensa a maioria
das pessoas, então não serve para qualquer análise objetiva e
independente da realidade: afinal, todos temos alguma concepção de
mundo, por mais tosca ou elaborada que seja. Estamos no reino da
opinião. Mas a ideologia tem uma pretensão maior: ser algum tipo de
conhecimento, coisa que não é.
E não é conhecimento simplesmente por ser uma crença aceita pela
coletividade, ou seja, por dizer respeito a grupos, partidos, seitas,
sexos etc. O coletivismo, aliás, é exemplo da nocividade das ideologias.
Pessoas podem crer no que quiserem sem ter que apresentar razões para
isso. Basta-lhes a crença. Mas grupos organizados têm, ainda que
implicitamente, o dever - embora nem sempre requisitado - de dar alguma
justificação às crenças que defendem, notadamente os partidos políticos,
lugar de exercício pleno das ideologias que ambicionam o poder.
Conhecimento, define a epistemologia, é crença verdadeira justificada.
Consequência: você pode acreditar no que quiser, inclusive em ETs ou
fantasmas, mas sua crença não pode ser justificada - pelo menos por
meios racionais. Já o conhecimento, como crença verdadeira justificada,
deve ser comprovado mediante métodos reconhecidos lógica e
cientificamente. O conhecimento é verdadeiro ou não é conhecimento. O
falso não é objeto de conhecimento. Não obtemos crenças verdadeiras
através de falsidades.
Exemplo: uma afirmação é verdadeira se, e somente se, corresponde à
realidade e é reconhecida como tal, independentemente de vieses,
preferências ou escolhas subjetivas. Uma teoria é ou pode ser
científica, jamais ideológica. Ideologias não se submetem ao teste da
refutação pela experiência. Dão as costas à história (testemunha, aliás,
de suas atrocidades).
A ideologia é irmã da utopia: é idealização de um mundo que não existe
e, se existir, será totalitário. Não pode, por isso, ser confundida com
projetos ou planos racionalmente elaborados, que tanto as pessoas quanto
os partidos devem apresentar para atingir resultados. Trata-se da
articulação entre meios e fins - e fins não justificam os meios, como
atestam, com exemplos sempre catastróficos, as próprias ideologias.
Russell Kirk tem razão em dizer que
‘Ideologia’ não significa teoria política ou princípio, embora muitos jornalistas e alguns professores, comumente, empreguem o termo nesse sentido. Ideologia realmente significa fanatismo político - e, mais precisamente, a crença de que este mundo pode ser convertido num paraíso terrestre (...). O ideólogo - comunista, nazista ou de qualquer afiliação - sustenta que a natureza humana e a sociedade devem ser aperfeiçoadas por meios mundanos, seculares, embora tais meios impliquem uma violenta revolução social. (Política da Prudência, 44/45)
O século XX, justamente chamado “o século das ideologias”, foi pródigo
em destruição e derramamento de sangue. Fascismo, nazismo e comunismo
são seus símbolos totalitários mais visíveis. A ideologia prometeu o
paraíso terreno à humanidade, mas o que legou, observa ainda Kirk, “foi
uma série de infernos na Terra”.
Por isso é lícito perguntar: há alguma razão para, em pleno século XXI,
reivindicar ou defender ideologias - quaisquer que sejam -, já que
passam ao largo do compromisso com a realidade, a verdade e a análise da
história? Não parece haver resposta favorável, à exceção das
“esquerdas”, que se aferram ao conceito e, por isso mesmo, também dão as
costas à experiência histórica.
Em suma: programas, projetos, princípios, ideias e valores, sim.
Ideologia, não, inclusive em relação aos partidos. Precisamos é de
conhecimento - não de um pacote fechado ao qual a realidade deve
necessariamente ser submetida, como é o caso das ideologias.
Orlando Tambosi
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