Pode parecer que estamos à espera de demasiadas coisas de um vírus. Mas
não nos devemos esquecer de que a história da humanidade também é
escrita pela natureza. Artigo de Rui Ramos para o Observador:
O Covid-19 dividiu a humanidade em duas partes: os que estão
preocupados com o Covid-19 e esgotam desinfectante para as mãos, e os
que estão de certo modo indignados. Este último grupo é composto pelos
crentes da religião climática. Simplesmente, não percebem o que se está a
passar. Pois então o vírus põe um país de quarentena e abala o
capitalismo globalizado, e eles não conseguem mais do que o fim da carne
de vaca nas cantinas coimbrãs? Como explicar esta diferença? Como
explicar que o vírus já tenha reduzido a poluição chinesa em 25%, mesmo
sem ter uma Greta a falar por ele? Por mais que se diga que o vírus não
mata assim tanto, as pessoas assustam-se; por mais que se diga que as
alterações climáticas são o fim do mundo, tudo continua como dantes.
Podem mais umas tosses e umas febres do que o apocalipse?
O Covid-19 é, de facto, um mistério. Não apenas pelas muitas dúvidas
que há sobre as suas origens e efeitos, mas pela guerra que os governos
lhe declararam. Um dia, no futuro, parecerá talvez curioso que os
Estados tenham decidido, no ano de 2020, testarem-se tentando parar a
difusão mundial de um vírus originado na China. Digo que parecerá
curioso, porque o combate ao Covid-19 implica necessariamente a negação
de parte daquilo em que nos tornámos nas últimas décadas. Se queremos
provas disso, basta atentar no desmoronamento dos mercados financeiros à
vista das restrições impostas para conter a epidemia. Porque escolhemos
uma guerra como esta, em que só podemos lutar pondo em causa o sistema
de circulação irrestrita que hoje simboliza a nossa civilização, e até a
nossa liberdade?
Muita gente já veio explicar que o Covid-19 não é a peste negra do
século XIV nem sequer a gripe espanhola de 1918. Esperemos que tenham
razão. Mas talvez um novo vírus, num mundo em que a saúde é o bem
supremo, nos pareça um risco inaceitável. A nossa é, além disso, uma
civilização que convive mal com a evidência dos seus limites:
gostaríamos de pensar que podemos controlar tudo, do clima à difusão dos
vírus e bactérias. Mantemos a disposição prometeica para medir forças
com a natureza. Há ainda o facto de, no caso do coronavírus, a infecção
estar a ser seguida em tempo real. Provavelmente, temos aqui um elemento
de jogo, mais precisamente de um jogo de vídeo em que o objectivo do
jogador fosse impedir o vírus de se espalhar.
Ninguém sabe ainda exactamente o que o Covid-19 pode fazer. Os vírus
já foram muitas vezes grandes factores da história. Por exemplo, os
europeus conquistaram as Américas no século XVI, não só com as armas,
mas com os vírus que trouxeram do então velho mundo, e que dizimaram os
ameríndios. Nos EUA, em ano de eleições presidenciais, aquilo que mais
parece interessar a imprensa é determinar de que modo o vírus pode
impedir ou não a reeleição de Trump. Talvez torpedeie a criação de
empregos, o grande trunfo do presidente, ou sirva para provar que Trump
anda distraído, como o furacão Katrina fez a Bush em 2005. Há meses que o
Partido Democrata americano anda à procura de quem possa derrotar
Trump. Sanders parece demasiado socialista e Biden demasiado rotineiro.
Estará o Covid-19 destinado a funcionar onde a histeria anti-trumpista
falhou? Mas em Itália, o Covid-19 pode abrir a porta a Matteo Salvini, e
no Médio Oriente, conjugado com o colapso do preço do petróleo, ferir a
teocracia iraniana. Dir-me-ão: é demasiada coisa para esperar de um
vírus. Talvez. Mas esquecemo-nos de que a história da humanidade também é
escrita pela natureza.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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