Confundindo biografia com filmografia, críticos de Polanski misturam
repulsa instintiva com justiça básica. João Pereira Coutinho, em sua
coluna na FSP:
Acabo de assistir a O Oficial e o Espião, o mais recente filme de
Roman Polanski – que estreia no Brasil no dia 12 de março. É bom? É
ruim? Essas perguntas, para o espírito do tempo, não fazem mais sentido.
O filme, repito, é de Roman Polanski. O diretor que estuprou uma menor
nos Estados Unidos em 1978.
Após acordo judicial, a acusação baixou a fasquia para relações
sexuais com menor. Mas Polanski não esperou pela sentença. Fugiu para a
Europa e nunca mais regressou aos Estados Unidos para cumprir a sua
pena. Para piorar as coisas, uma fotógrafa francesa também acusou
recentemente o diretor de a ter violado. Em 1975. Polanski nega tal
fato, mas a presunção de inocência é hoje artigo raro nas democracias
midiáticas.
É com esse historial que se entende a polêmica com O Oficial e o
Espião. Quando o filme foi indicado a vários prêmios César (o Oscar do
cinema francês), a direção da academia não aguentou o clamor dos
críticos e se demitiu.
Se os delitos de um artista não são compensados pelos méritos da sua
arte, então os méritos da sua arte não podem ser descompensados pelos
delitos de um artista
Mas o melhor, ou o pior, ainda estava por vir: Polanski venceu o
César de melhor diretor. Várias atrizes presentes na cerimônia
abandonaram a sala em protesto. Tal como afirmou o ministro da Cultura
francês, em frase que resume bem a polêmica, os delitos de um artista
não são compensados pelos méritos da sua arte.
Boa frase. Verdadeira, também. Mas, se o ministro me permite, quem
disse o contrário? Eu, não. Juridicamente falando, Polanski deve ser
julgado pela Justiça americana; caso seja condenado, deve cumprir pena,
como qualquer criminoso. E a acusação recente de estupro deve ser
investigada; caso o diretor seja culpado, deve pagar pelo crime.
O ponto não é jurídico. É artístico. Se os delitos de um artista não
são compensados pelos méritos da sua arte, então os méritos da sua arte
não podem ser descompensados pelos delitos de um artista. Negar essa
simples asserção – no fundo, negar a autonomia da arte por causa da
conduta imoral ou ilegal do homem que a produz – implicaria repudiar uma
parte substancial da história da cultura.
Caravaggio foi um homicida. Cellini foi pior: um serial killer.
Wagner era antissemita. Tal como Pound ou Céline. D.W. Griffith era
racista. Eric Gill era pedófilo. Vamos jogar na fogueira os quadros, as
músicas, os livros, os filmes ou as esculturas de todos eles? Ou devemos
distinguir universos morais distintos?
A resposta a essas questões encontra-se, ironicamente, em O Oficial e
o Espião. O filme, que é a melhor colheita de Polanski desde 2010 (O
Escritor Fantasma), reconstitui o caso Dreyfus, que dividiu a França na
última década do século 19. Conto rápido: Alfred Dreyfus, capitão do
Exército francês, foi acusado de passar informações militares para a
Alemanha. Acusação grave: a França tinha sido derrotada pelos alemães na
Guerra Franco-Prussiana, em 1871, o que significava que Dreyfus espiava
para o grande inimigo da República.
Julgado em tribunal militar, foi condenado a cumprir prisão perpétua
na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, em 1894. Pelo menos até
Marie-Georges Picquart assumir o cargo de chefe da inteligência militar,
em 1896, e descobrir que o verdadeiro “crime” de Dreyfus era ser judeu.
As provas que o condenaram tinham sido forjadas – ou erroneamente
interpretadas. Dreyfus só seria completamente exonerado e reintegrado ao
Exército em 1906.
Mas o filme de Polanski, um prodígio de reconstituição histórica e
elegância formal, não se concentra em Dreyfus. O seu objeto principal é
Picquart, que batalhou pela inocência do capitão e enfrentou o
antissemitismo institucional da Terceira República apesar de também ser
um antissemita. É o próprio Picquart quem o confessa a Dreyfus, anos
antes da condenação, quando era seu professor na academia militar. O
jovem Dreyfus acusa Picquart de não ser justo nas notas porque não gosta
de judeus. O professor responde: sim, não gosta de judeus; mas jamais
confundiria as suas inclinações pessoais com os seus deveres.
No fundo, Picquart é essa ave rara: alguém que sabe distinguir duas
esferas morais distintas, algo que os acusadores de Polanski não
conseguem.
É por isso que o título do filme (J’Accuse, no original, que
significa “eu acuso”) não é apenas uma homenagem ao artigo com o mesmo
nome que Émile Zola publicou em 1898, no jornal L’Aurore, defendendo
Dreyfus e acusando o governo e o Exército de conduta ignóbil. É também
uma acusação de Polanski a todos aqueles que, confundindo biografia com
filmografia, misturam suas repulsas instintivas com questões de justiça
básica.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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