Tão rápido quanto chegou, a Gripe Espanhola foi embora, deixando um
saldo enorme de mortos e um mundo traumatizado. Rafael Azevedo, para a Gazeta do Povo:
Há praticamente 100 anos, no comecinho de 1918, uma onda
relativamente leve de uma nova epidemia atingiu a Europa. Meses mais
tarde, no fim de agosto do mesmo ano, uma onda realmente poderosa chegou
com força. Era a Gripe Espanhola.
O saldo total da epidemia (ou melhor, pandemia) foi de um mínimo de
50 milhões de mortes – entre 2% e 3% da população do mundo na época. Em
alguns lugares, como nos Estados Unidos (tido como um dos prováveis
epicentros da doença, apesar do seu nome popular, gripe espanhola), a
expectativa de vida média da população caiu por volta de 12 anos.
Foi a pior e mais letal epidemia registrada no mundo desde a Peste
Negra – numericamente, talvez a pior de todos os tempos. Mas, tão rápido
quanto chegou, a Gripe Espanhola foi embora, deixando um saldo enorme
de mortos e um mundo traumatizado.
Gripe do Velho Oeste
A hipótese mais aceita para o surgimento da Gripe Espanhola foi a de
que ela teve origem no condado de Haskell, Kansas, numa época que até
poucos anos atrás ainda podia ser descrita como “Velho Oeste”. As
pessoas ainda conviviam diariamente, e com um grande grau de
proximidade, com todo tipo de animais domésticos, entre porcos,
galinhas, cavalos e cães pastores.
O vírus que causou a Gripe Espanhola foi o infame H1N1, responsável
em 2009 pela gripe suína. Ele acabou sendo levado para uma base do
exército americano no estado, de onde foi para a Europa juntamente com
os soldados convocados para lutar na Primeira Guerra Mundial.
Os sintomas eram muito diferentes dos de uma gripe comum. Tanto que a
Gripe Espanhola foi confundida com diversas outras doenças, entre elas
dengue, febre tifoide e até cólera. De acordo com uma carta escrita por
um médico do exército americano, já no auge da epidemia, as vítimas
“parecem no início ter o que parece ser um caso comum de gripe ou
influenza, mas quando levados ao hospital rapidamente desenvolvem o tipo
mais terrível de pneumonia já visto (...) e algumas horas depois já é
possível ver a cianose se estendendo de seus ouvidos para todo seu
rosto, até que é difícil saber quais deles são negros e quais eram
brancos. Daí até a morte é apenas uma questão de horas. (...) É
terrível".
De acordo com outro relato da época, “uma das complicações mais
visíveis [da Gripe Espanhola] é a hemorragia nas membranas mucosas,
especialmente no nariz, estômago e intestino”. Sangramentos pelos
ouvidos, pele e até mesmo olhos também eram comuns. Tudo isso levava a
um estado de paralisação que, aliado à depressão mental, podia causar
“histeria, melancolia e insanidade, com tendências suicidas”.
Doença política
Antes desse terror todo se espalhar mundo afora, o Brasil vivia um
período de relativa calma. Francisco de Paula Rodrigues Alves foi eleito
em março de 1918 para o cargo (que já tinha ocupado entre 1902 e 1906)
de presidente da República e o país parecia relativamente alheio aos
horrores da guerra que começava a devastar os campos da Europa.
A doença só chegava aqui pelos jornais. Nosso primeiro contato com a
gripe espanhola foi no começo de setembro de 1918, quando uma divisão
naval mandada pelas Forças Armadas brasileiras chegou à África, mais
precisamente em Dacar, no atual Senegal, para ajudar os Aliados a
patrulharem o Atlântico. De cara, mais de cem marinheiros morreram –
mais do que o total de brasileiros envolvidos no conflito até então.
No mesmo mês, o navio-correio britânico Demerara chegou ao Brasil.
Depois de partir de Liverpool, o vapor fez escalas em Lisboa, Recife e
Salvador (além da mesma Dacar) antes de chegar ao seu destino final, o
Rio de Janeiro, trazendo consigo diversos passageiros infectados.
De acordo com o jornal A Tarde, da Bahia, no dia 25 a epidemia já a
assolava o estado, com “cerca de setecentos enfermos nos quartéis, nos
hospitais, em casas particulares e em todos os centros de aglomeração de
operários”.
A doença não tardou em ser usada politicamente. O governo federal
decidiu fechar o porto de Salvador, considerando-o “um porto sujo”.
Enquanto isso, o jornal O Imparcial acusou o governo brasileiro de,
mesmo sabendo que a frota já estava infectada, decidir escolher a Bahia
como bode expiatório, estampando em sua capa, em letras garrafais, a
manchete: “A influenza na Bahia é... política!”
A essa altura, o navio já tinha atracado no Rio de Janeiro e seus
marinheiros já tinham invadido bares e “casas de tolerância” por toda a
região do porto, espalhando a doença assim que puseram os pés em terra
firme. Em questão de dias o número de vítimas começou a ser
contabilizado. No mês seguinte, o jornal A Noite acusava Jaime Silvado,
inspetor sanitário do Porto do Rio de Janeiro, de permitir a entrada da
epidemia por consentir que o navio atracasse, tendo em vista que, sendo
positivista, “não acreditava em micróbios”.
Ruy Castro, em seu livro Metrópole à Beira-Mar, descreve com riqueza
de detalhes a curiosa maneira com que o carioca resolveu lidar com o
problema, usando remédios à base de “alfazema, limão, coco, cebola,
vinho do Porto, sal de azedas, cachaça de fumo de rolo”, ou até canja de
galinha. A multinacional Bayer oferecia sua aspirina Fenacetina, um
“tiro e queda contra a influenza”.
Desdém e ceticismo
Muitos duvidaram que uma doença comum, uma mera “catarreira”, um
“limpa-velhos” como, se dizia na época, pudesse oferecer grande risco ao
resto da população.
Assim como hoje em dia não faltam os que acusem as notícias sobre o
coronavírus de exagero, histeria ou arma biológica dos chineses, em 1918
não faltaram aqueles que riram do temor de uma grande epidemia ou que
acusaram alguém de estar por trás daquilo tudo. Segundo Ruy Castro, uma
das teorias dizia que os alemães, então vilões da Primeira Guerra
Mundia, estariam embutindo a doença nas salsichas consumidas pelos
cariocas ou por intermédio de seus submarinos.
Diz um artigo da época:
“A influenza espanhola e os perigos do contágio – esta moléstia é uma criação dos alemães que a espalham pelo mundo inteiro, por intermédio de seus submarinos, (...) nossos oficiais, marinheiros e médicos de nossa esquadra, que partiram há um mês, passam pelos hospitais do front, apanhando no meio do caminho e sendo vitimados pela traiçoeira criação bacteriológica dos alemães, porque em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados, de maneira que, levadas pelas ondas para as praias, as garrafas apanhadas por gente inocente espalhem o terrível morbus por todo o universo, desta maneira obrigando os neutros a permanecerem neutros”.
Mas logo viu-se que não havia o menor motivo para desdém ou
brincadeira. Até o fim de outubro de 1918, a doença tinha atingido todas
as grandes cidades do país e, em novembro, a Amazônia. No mesmo mês,
aportou no porto do Rio o vapor Royal Transport, trazendo consigo ainda
mais pessoas infectadas a bordo.
Logo, quem pôde abandonou os grandes centros urbanos, e as
autoridades pediram a todos que evitassem grandes aglomerações. Algo que
nos soa estranhamente familiar. Outros já temiam “a ameaça da medicina
oficial, da ditadura científica”, temendo que o governo fosse “tomando
providências ditatoriais, ameaçava ferir os direitos dos cidadãos com
uma série de medidas coercitivas, (...) preparando todas as armas da
tirania científica contra as liberdades dos povos civis”.
Cadáveres nas ruas
O Rio de Janeiro foi de longe a cidade mais afetada pela epidemia.
Estima-se que metade da população da cidade tenha contraído a doença. O
poeta Olavo Bilac foi um deles. O próprio presidente-eleito Rodrigues
Alves acabou contraindo a Gripe Espanhola e foi obrigado a adiar sua
posse, programada para 15 de novembro de 1918. Ele morreu em janeiro do
ano seguinte, sem assumir o cargo.
De acordo com o escritor Pedro Nava, “o espantoso já não era a
quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e
impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros,
aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida
coletiva”. O próprio Pedro Nava, então com quinze anos, descreve uma
cena de terror: uma criança esfomeada, chupando os peitos da mãe morta,
já em decomposição.
Uma manchete da Gazeta de Notícias declarava o Rio “um vasto
hospital”. Já os hospitais em si não tinham leitos e foram fechados para
visitas, numa tentativa de evitar qualquer contágio. Casas funerárias
não davam conta de seu serviço, e faltava madeira para caixões. Com medo
de serem infectados, as pessoas jogavam os cadáveres de seus familiares
pelas ruas, na frente de suas casas, para serem recolhidos ao cemitério
mais próximo, atraindo todo tipo de pragas.
Muitas vezes “mortos” que ainda eram encontrados vivos eram
liquidados ali mesmo, a golpes de pá, antes de serem transportados para
seu fim derradeiro, fosse uma vala comum ou a cremação, tal como os
camponeses medievais na cena da peste negra do clássico Monty Python e o
Cálice Sagrado. Surgiu aí também a lenda do “chá da meia-noite”, uma
bebida misteriosa administrada aos pacientes em estado terminal, na
calada da noite, o que rendeu aos hospitais o apelido de “casas do
Diabo”.
A polícia fazia seu papel “convocando” transeuntes para assumirem o
papel de coveiros. Segundo um relato de um jornal da época, um tal
Alberto Mendes, ele próprio padecendo da gripe, foi “caçado” e levado
para a delegacia local, onde de nada adiantou alegar sua condição
precária de saúde. Ele foi prontamente colocado num bonde com outros 50
indivíduos para exercer seu dever cívico, retornando apenas de
madrugada, ardendo em febre.
Durante estes sepultamentos, não eram poucos os casos de roubos dos poucos objetos de valor nos cadáveres.
Caipirinha
Em São Paulo, a epidemia conseguiu ser relativamente contida.
Autoridades locais declararam prontamente o isolamento dos doentes e o
fechamento de todas as atividades coletivas, como missas, escolas,
fábricas, teatros e cinemas. Mas muitos empresários se recusaram a
conceder qualquer remuneração a quem se ausentasse do serviço durante o
auge da epidemia, o que fez com que muitos fossem obrigados a se
infectar apenas para preservar seu emprego.
O desabastecimento, algo que temos presenciado ao redor do mundo nos
dias atuais, também se tornou comum. Produtos essenciais, como frango e
leite, ou tiveram seus preços aumentados a ponto de serem impossíveis de
serem comprados ou simplesmente sumiram das prateleiras. A procura por
remédios aumentou e as farmácias se aproveitaram, a ponto de a
prefeitura do Rio de Janeiro decidir tabelar os preços.
Num mundo que em não existiam vacinas, antivirais, ou sequer
antibióticos que pudessem combater as complicações causadas pelo vírus, a
procura por remédios caseiros também explodiu. Uma das lendas é a de
que a origem da caipirinha dataria dessa época, depois que as pessoas
passaram a acreditar que a combinação de cachaça com limão e mel poderia
ter algum efeito benéfico.
Mundo
Ao redor do mundo, a Índia foi o país mais afetado pela |Gripe
Espanhola. Lá, a doença matou 18 milhões de pessoas – a maior taxa de
mortalidade em números absolutos no mundo e praticamente equivalente ao
número de vítimas da Segunda Guerra Mundial.
A Gripe Espanhola não fazia distinção de classes. Ninguém foi
poupado, dos ricos e famosos até socialites e jogadores de futebol,
passando por políticos e empresários. O caso mais célebre foi o do rei
Afonso XIII, da Espanha, que foi contaminado e levou tanto tempo para se
recuperar que o imaginário ocidental decidiu batizar a pandemia com o
nome de “espanhola”.
O avô de Donald Trump, Friederich, que deu origem ao império da
família, foi também uma das vítimas mais notórias da Gripe Espanhola.
Ele morreu aos 50 anos, no dia 30 março de 1918.
Curiosamente, a China, epicentro da atual pandemia do coronavírus,
foi um dos países menos atingidos pela epidemia da Gripe Espanhola.
Motivo de riso
No fim de outubro, tão rápido quanto surgiu, a epidemia desapareceu. A
vida aos poucos voltou ao normal. E, no Carnaval de 1919, a Gripe
Espanhola foi o grande tema nos bailes e blocos do Rio de Janeiro.
Marchinhas e desfiles tratavam do mesmo tema.
Assim é que é! Viva a folia!
Viva Momo – Viva a Troça!
Não há tristeza que possa
Suportar tanta alegria.
Quem não morreu da Espanhola,
Quem dela pode escapar
Não dá mais tratos à bola
Toca a rir, Toca a brincar...
O “chá da meia-noite” agora era motivo de riso e alegria.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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