Doutor nenhum tem o direito de mentir para livrar de punições o cliente comprovadamente criminoso. Artigo de Augusto Nunes, via r7:
"Serei eu o juiz do meu cliente?", perguntou o advogado Márcio Thomaz
Bastos no título de um artigo publicado na Folha em junho de 2012.
Antes de tornar-se nacionalmente conhecido como ministro da Justiça do
governo Lula e mentor do bando de bacharéis contratados para livrar da
cadeia os quadrilheiros do Mensalão, o criminalista morto em 2014 já era
famoso no mundo jurídico por fazer o diabo para absolver culpados e
condenar à execração perpétua os defensores da lei. Desde que o freguês
pagasse sem regatear os honorários calculados em dólares por minuto, o
doutor conseguia até enxergar um filho extremoso no parricida confesso.
Sempre que Márcio Thomaz Bastos triunfava num tribunal, a Justiça
sofria mais um desmaio, a verdade morria outra vez, gente com culpa no
cartório escapava da cadeia, crescia a multidão de brasileiros
convencidos de que aqui o crime compensa e batia a sensação de que lutar
pela aplicação rigorosa das normas legais é a luta mais vã. O artigo na
Folha, por exemplo, exigia a imediata libertação do delinquente
Carlinhos Cachoeira (ou "Carlos Augusto Ramos, chamado de Cachoeira",
abrandou o autor do texto). "Não o conhecia, embora tivesse ouvido falar
dele", jurou. Ouviu o suficiente para cobrar R$15 milhões pela missão
de garantir que o cliente envelhecesse longe da gaiola.
"Serei eu o juiz do meu cliente?", repetiu Márcio no quinto
parágrafo. "Por princípio, creio que não", respondeu. "Sou advogado
constituído num processo criminal. Como tantos, procuro defender com
lealdade e vigor quem confiou a mim tal responsabilidade”. Conversa
fiada, ensinara em outubro de 1944 o grande Heráclito Fontoura Sobral
Pinto, num trecho da carta endereçada ao amigo Augusto Frederico Schmidt
e reproduzido abaixo:
"O primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar. Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela é realmente defensável em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho à sua disposição”.
A carta de Sobral Pinto e o artigo de Márcio escancaram uma colisão
frontal entre o amor à Justiça e o descompromisso com a ética. "Não há
exagero na velha máxima: o acusado é sempre um oprimido", derramou-se o
defensor de Cachoeira. "Ao zelar pela independência da defesa técnica,
cumprimos não só um dever de consciência, mas princípios que garantem a
dignidade do ser humano no processo. Assim nos mantemos fiéis aos
valores que, ao longo da vida, professamos defender. Cremos ser a melhor
maneira de servir ao povo brasileiro e à Constituição livre e
democrática de nosso país".
Com quase 70 anos de antecedência, sem imaginar como seria o Brasil
da segunda década do século 21, Sobral Pinto desmoralizou esse chororô
de porta de delegacia, muito apreciado por carpideiras a serviço de
corruptos juramentados. Confiram a continuação da aula ministrada em
1944:
"A advocacia não se destina à defesa de quaisquer interesses. Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um advogado se sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma causa. O advogado não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa que se dispõe a comparecer à Justiça. O advogado é, necessariamente, uma consciência escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça, incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que não discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão".
"A pródiga história brasileira dos abusos de poder jamais conheceu
publicidade tão opressiva", seguiu fantasiando na Folha o advogado de
estimação de Lula. "Aconteceu o mais amplo e sistemático vazamento de
escutas confidenciais. Trocou-se o valor constitucional da presunção de
inocência pela intolerância do apedrejamento moral. Dia após dia,
apareceram diálogos descontextualizados, compondo um quadro que lançou
Carlos Augusto na fogueira do ódio generalizado".
A semelhança com a discurseira dos defensores da quadrilha do
Petrolão não é mera coincidência Os bacharéis que rezam pela extinção
da Operação Lava Jato são dedicados discípulos de Márcio Thomaz Bastos. À
falta de munição jurídica, todos seguem o exemplo do mestre: alvejam a
verdade com álibis sem bala na agulha, tapeações, falácias e chicanas.
Descrevem o calvário imposto a um cidadão inocente por policiais
perversos, promotores desalmados e juízes sem coração. Os homens da lei,
aos olhos desses profissionais da invencionice, cometem toda sorte de
pecados mortais: "menoscabo à presunção de inocência", "vazamento
seletivo de documentos e informações sigilosas", "sonegação de
documentos aos defensores dos acusados", "exposição dos réus a
humilhações públicas" ou "violações de prerrogativas da advocacia", fora
o resto.
Sim, todo réu tem direito a um advogado de defesa. Mas doutor nenhum
tem o direito de mentir para manter o direito de ir e vir da freguesia
comprovadamente criminosa. O juiz inicial da causa não pode agir como
cúmplice do cliente bandido. A Lava Jato mudou o país com a aplicação
efetiva do princípio constitucional segundo o qual todos são iguais
perante a lei. A frente ampla que sonha com a ressurreição do paraíso da
impunidade será vencida pelos que sabem que o Brasil será infinitamente
melhor se for menos Zanin e mais, muito mais Sobral Pinto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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