Em "Fim do mundo, novo mundo", publicado no Estadão,
o jornalista Fernando Gabeira observa que a Lava-Jato mudou o quadro da
corrupção no país - sempre escapando das armadilhas que derrotaram
outras operações contra os corruptos:
A delação dos
dirigentes da Odebrecht não trouxe tantas novidades para quem leu os
vazamentos. No entanto, a forma como se apresentou – vídeos dos
delatores, riqueza de detalhes e algumas surpresas – trouxe grande
impacto mesmo para os que conheciam os dados principais da trama.
Para começar, alguns
obstáculos técnicos: as denúncias não foram hierarquizadas e divididas
em blocos. E o áudio das delações era bastante sofrível. Aliás, a
qualidade do áudio é uma crítica que faço não apenas à Lava Jato. Parece
que vivemos numa era pré-estereofônica, na contramão de uma tecnologia
cada vez mais acessível.
Percebo à distância
que grandes peixes passaram quase em branco, como o negócio dos
submarinos com a França. Aliás, dos 200 depoimentos ainda em sigilo,
quase todos tratam de aventuras internacionais e da participação do
BNDES, algo que me interessa na proporção em que se esforçam para
escondê-los. Nesse oceano de informações, algumas dolorosas, porque
trazem também decepção sobre certas pessoas, escolhi uma frase de Emílio
Odebrecht para comentar, aquela em que ele diz que a corrupção existe
há 30 anos e ele não entende a surpresa da imprensa, que não a teria
denunciado.
Reconheço que
mostrar-se surpreso e ser ao mesmo tempo um observador da vida política
nacional é contraditório. Só posso entender esse movimento de alguns
comentaristas pelo desejo de empatia com seus leitores ou espectadores,
estes, sim, sem o mesmo nível de informação, estupefatos com os
bastidores das relações entre políticos e empreiteiros.
Não é verdade que o
sistema de corrupção, ao longo dos anos de redemocratização, não tenha
sido denunciado. A própria Odebrecht confirma isso ao confessar que
sofisticou o processo depois da CPI dos Anões do Orçamento. O jornalista
Jânio de Freitas foi um pioneiro ao desmascarar licitações fraudadas na
Ferrovia Norte-Sul. Grandes operações da Polícia Federal, como a
Castelo de Areia, morreram na praia porque a Justiça anulou as provas,
algo que o ministro Gilmar Mendes chegou a sugerir para a Lava Jato.
E posso me concentrar
num episódio que conheço bem, para contestar parcialmente a fala de
Emílio Odebrecht. Refiro-me ao caso que ficou conhecido, graças à
esperteza de Lula, como o dos aloprados do PT. É a história dos petistas
detidos com R$ 1,6 milhão em dinheiro, nas eleições de 2006. Eu era o
relator da CPI dos Sanguessugas incumbido desse caso. Ele tinha relação
com a CPI porque José Serra, supostamente, seria denunciado pelos
principais acusados de superfaturar ambulâncias.
Tentei desvendá-lo
ouvindo depoimentos, era o instrumento que tinha. Os petistas estavam
eufóricos com a reeleição de Lula. Não davam pistas.
A imprensa trabalhou
muito. Dois repórteres da Veja chegaram a ser detidos na Polícia Federal
de São Paulo. O então diretor da revista, Mário Sabino, foi indiciado
por tentar informar os seus leitores.
O que a CPI não tinha
nem a imprensa conseguiu foi o detalhe revelado agora pela delação: num
dos maços de notas destinados a comprar o dossiê contra Serra havia uma
etiqueta de uma empresa da cervejaria Itaipava. No contexto atual, o
caso seria esclarecido a partir desse detalhe, desprezado nas
investigações.
Não quero afirmar que
a imprensa tenha sido uma combatente heroica da corrupção, sobretudo
porque sob esse conceito mais geral há comportamentos muito distintos.
Quero afirmar apenas suas limitações. Ela não pode quebrar sigilos
bancários e telefônicos, muito menos realizar entrevistas seguidas de
condução coercitiva.
O que mudou
essencialmente o quadro foi a eficácia da Lava Jato. Ela evitou todas as
armadilhas em que caíram as operações derrotadas pelo poderoso sistema
de corrupção.
Foi graças às
investigações e sólidas provas da Lava Jato que a imprensa conseguiu
avançar, contribuindo com seu esforço para desvendar a engrenagem que
sufocava o Brasil. O interessante é a crítica pendular que ela sofre.
Quase sempre foi acusada de inventar denúncias. Recentemente, o PT
qualificava os escândalos que o envolvem como uma “conspiração
midiática”. Emílio Odebrecht a acusa-a de ter silenciado ao longo dos
anos e fazer agora um grande estardalhaço. Mas a verdade é o quanto
tanto a PF como os procuradores evoluíram com o tempo e com os fracassos
relativos. E a própria imprensa se tornou mais cautelosa ao se mover em
terreno tão delicado.
Alguns dos mais
importantes vazamentos foram em blogs, que têm uma estrutura mais leve
e, por causa disso, ousam mais. O que Emílio Odebrecht não considerou em
sua fala foram os enormes avanços havidos no Brasil, enquanto
empreiteiras e políticos vivam num mundo à parte.
A experiência de vida
mostra que muitas coisas que eram proibidas no passado passam a ser
permitidas com o tempo, como, por exemplo, o divórcio e a união de gays.
Mas história é mais complicada. Muitas coisas, antes toleradas, passam a
ser proibidas com o tempo, como o assédio sexual por exemplo.
Alguns fatores
tornaram a corrupção conhecida de quem observava friamente o processo,
mais vulnerável que no passado. Um desses fatores é a maior
transparência impulsionada também pela revolução digital. Outro aspecto
importante, talvez inspirado pela Justiça americana, é a tática de
rastreamento do dinheiro de propinas através dos labirintos do sistema
financeiro internacional.
Finalmente, certas
mudanças de atitude, como a da Suíça, foram fundamentais. A Suíça se
abriu, a polícia brasileira mudou, a tolerância das pessoas comuns
mudou, foram tantas mudanças que é bastante compreensível que a bolha
tenha estourado agora, e não antes, apesar de inúmeras tentativas
frustradas.
Mesmo sem me importar
com os risos pragmáticos, diria que Emílio poderia aprender com o
escândalo uma lição mais valiosa que sua fortuna: a impermanência de
tudo, o constante processo de mudanças.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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