A Festa Literária Internacional de Paraty – Flip chega a sua 21ª edição - de 22 a 26 de novembro de 2023.
Paisagens de dentro e de fora
Há
uma terra fértil a ser cultivada na literatura que é o fascinante e, ao
mesmo tempo temeroso, espaço de criatividade, onde tudo é nebuloso e
possível. Ali caminham marginalidades literárias pujantes e ainda pouco
exploradas ou que, quando exploradas, são reduzidas por perspectivas
limitadoras. É justamente a zona que se afasta da mente normatizada,
dominada pelo consciente, iluminada pela razão ocidental que pune, tolhe
e constrange tudo o que estiver fora de certa ordem ou coerência
esperada da razão organizada.
Não
são poucas as extraordinárias artistas e escritoras que tiveram suas
produções artísticas reduzidas à estigmatização social, condição que
sugere a partir da rotulação da loucura, da depressão, do delírio, do
sonho, da fuga da realidade, do non sense, da rebeldia, da
esquizofrenia, do misticismo, do delírio religioso, da epilepsia, do
estado emocional alterado, histeria, isolamento ou alteração da
percepção sensorial pelo consumo de drogas. Certas paisagens mentais são
sacrificadas por um imperativo castrador da criatividade que abre,
inverte, provoca, sonha.
Há
interstícios de nossa paisagem cultural que necessitam de uma nova
investida pelos bosques da imaginação e da criatividade. Há um encontro
divino e humano que faz explodir imagens, desejos, universos oníricos e
outras versões de sujeito. Entretanto, os caminhos de acesso para esses
bosques são cercados por exclusão e violência. Em nome da norma,
diversos corpos e palavras foram impugnados pelo simples fato de
sustentarem uma existência que materializa pesadelos, sonhos proibidos,
ardor por justiça e fé.
A
literatura tem uma capacidade extraordinária de perceber a realidade
sem qualquer lealdade a esquemas normativos.Nessas paisagens que
contrariam a razão hegemônica, também temos um percurso a fazer pelas
florestas, pelo sertão místico brasileiro, pelas fronteiras. Há que se
recuperar as simbologias desperdiçadas, as formas de luta inviabilizadas
em nome do progresso e da furiosa necessidade de ordem, de exploração
dos recursos, da sobreposição de uma raça ou de um gênero sobre os
outros.
A
dimensão empática da literatura é, sem dúvida, uma das razões por que
buscamos um texto, um escritor ou uma escritora. Na Tenda dos Autores da
FLIP, em 2022, Annie Ernaux enfatizou que a literatura acontece por
meio de um olhar, que é encarnado por uma pessoa. Virginia Woolf já
anotou que quando escrevia gostava de ser uma emoção. Stella do
Patrocínio ao soprar “não sou eu que gosto de nascer, eles é que me
botam para nascer todo dia” ressignifica o seu estado mental transitório
e o joga na força pulsante de vida. Clarice Lispector buscava entender e
"reproduzir o irreproduzível" e, como nós, leitoras e leitores,
procurava "sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas
vago e sufocador".
Quando
a literatura ocupa espaços coletivos, como a FLIP, quantos nos tornamos
e quantos universos podemos ocupar para além daqueles que habitamos? O
incontável e o impossível são resultados do movimento de sentir e
sentir-se. O movimento de ver-se, proporcionado pelo texto, é um dos
efeitos poderosos da literatura, mas não o único.
A
literatura pode deslindar o movimento para uma travessia de
reimaginação do espaço de convivência, no qual a emoção rejeita a
censura, seja pelo que for, pelo conteúdo, pelo gênero, pela raça, pela
etnia, pela orientação sexual, pela geografia ou pela condição
econômica.
Em
2023, a Flip segue em busca da criação de outras formas de visitar as
paisagens de dentro e de fora. A festa encontra a energia do movimento
do corpo que liberta, respira, age e sente. Com os nossos corpos
encontramos os sons, os sabores e as imagens que se apresentam em cada
ponto do percurso, pessoal e coletivo. Como o corpo que mergulha ou que
boia no mar, sentindo a emergência da onda e da oscilação das marés.
Como o corpo que encontra a si, a multidão ou o outro. O corpo que não é
refratário ao que o atravessa, e que não ignora o som e a passagem dos
acontecimentos e dos seres com quem divide o espaço, como as aves, as
montanhas, as florestas. Mais do que o local de partida e de chegada,
interessam os deslocamentos. Tal como o corpo, nesse movimento
interessam o vagueio, a deriva, a falta de destino, o imprevisível, a
tentativa de tradução e o erro.
Dupla curatorial:
Na
21ª edição, a Flip tem curadoria de Fernanda Bastos, jornalista gaúcha e
editora de livros, e Milena Britto, professora da UFBA. Ambas estrearam
na curadoria da Flip em 2022, quando formaram um coletivo ao lado de
Pedro Meira Monteiro.
Fernanda Bastos
Nascida
em Porto Alegre, no ano do centenário da Abolição da Escravatura no
Brasil, Fernanda Bastos é jornalista, poeta e editora de livros. Em
2018, fundou, junto com o crítico literário Luiz Mauricio Azevedo, a
Figura de Linguagem, editora negra e independente, que foi reconhecida
com Homenagem Especial do Prêmio Açorianos de Literatura de 2019. Dentre
as escritoras publicadas pela casa editorial gaúcha, estão Maria
Firmina dos Reis, June Jordan, Virginia Brindis de Salas e Lucy Terry.
Bastos é Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, e autora de Os árbitros, as botas, as melancias e os postes (Figura de Linguagem, 2021) e Selfie-purpurina (Peirópolis, 2022), entre outros. Na TVE RS, atua como apresentadora do Redação TVE.
Milena Britto
Professora
na Universidade Federal da Bahia, dedica-se, entre outros temas, a
pesquisas sobre gênero, literatura e estratégias de legitimação no campo
literário. Tem sido professora visitante em universidades da América
Latina e dos Estados Unidos. Além da carreira acadêmica, tem atuação em
políticas públicas para a área de literatura, participa de ações
voltadas para a difusão de leitura, é crítica literária e curadora de
diversos projetos culturais.
Autora homenageada: Patrícia Rehder Galvão, Pagu
“Esse
crime, o crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre ".
Nesse espírito disruptivo que desafia a mente normatizada, viveu, por 52
anos, Patrícia Rehder Galvão, conhecida como Pagu. A autora homenageada
da 21ª da Flip nasceu em 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista,
São Paulo, e foi jornalista, dramaturga, poeta, tradutora, cartunista e
crítica cultural. Atuou nos movimentos modernista e feminista, além de
ter se dedicado ao ativismo contra o fascismo.
“A
decisão de homenagear uma autora importante para o movimento Modernista
de 1922, que não participou da Semana de Arte Moderna, passadas as
celebrações de seu centenário, vem do desejo de explorar sua produção
artística, muitas vezes reduzida por perspectivas limitadoras. Essa
homenagem traz luz também a outras marginalidades literárias pujantes
que merecem uma nova mirada", comenta o diretor artístico da Flip, Mauro
Munhoz.
Pagu
usou pseudônimos durante toda a vida: Patsy, Mara Lobo, King Shelter,
Ariel, Pat, Léonie, Pt, Gim, Solange Sohl, Peste. A escolha das
curadoras traz luz à ampla produção artística de Patrícia Rehder Galvão
que, assim como outras tantas extraordinárias artistas e escritoras,
sofreram estigmatização social.
“Quantas
escritoras se manifestaram em Pagu? Quantos universos a autora criou e
expandiu por meio de suas produções? Muitas são as paisagens de dentro e
de fora que ela nos mostra com suas múltiplas linguagens, todas
trazendo em comum uma contestação incansável diante do mundo rígido”,
explica Fernanda Bastos.
“Com
seus modos de dizer e desenhar mundos, Pagu desenvolve uma paisagem em
que são retratadas diversas mulheres brasileiras: operárias, mães,
boêmias, artistas, as que aspiram à liberdade. É transformador olhar o
presente por meio das lentes de Pagu”, complementa Milena Britto.
Se,
durante sua trajetória artística, as muitas línguas faladas por Pagu
enfrentaram incompreensão e até repulsa, hoje sua produção nos inspira
reflexões que ultrapassam os limites da razão e nos convidam a
decifrá-la a partir das pistas que sua estética representa como
legado.
Ciclo da autora homenageada
Flip + CPF Sesc
Para
dar conta das múltiplas facetas da obra de Pagu, a Flip, em parceria
com o CPF Sesc, realiza, de 24 a 28 de outubro, o Ciclo da Autora
Homenageada.
Serão
diversos encontros, em que intelectuais, artistas, escritoras e
escritores irão refletir sobre aspectos específicos da obra de Pagu.
A programação tem ao todo cinco mesas de debate e uma leitura dramática inspirada em sua vida-obra.
Os
encontros acontecerão na unidade do CPF Sesc, na capital paulista, e
serão transmitidas virtualmente pelos nossos canais no YouTube.
Programação:
24.10 (terça-feira), das 19h30 às 21h30 - Mesa 1: As Pagus de cada um
Convidados: Rudá K. Andrade, Lúcia Maria Teixeira, Marcelo Ariel
25.10 (quarta-feira), das 19h30 às 21h30 - Mesa 2: Pagu e a escrita de mulheres
Convidados: Maria José Silveira, Adriana Armony e Thelma Guedes
26.10 (quinta-feira), das 19h30 às 21h30 - Mesa 3: Poéticas de Pagu
Convidados: Cida Pedrosa, Nádia Gotlib, Telma Scherer
27. 10 (sexta-feira), das 19h30 às 21h30 - Mesa 4: Arte, Jornalismo e Prisão: A vida intensa de Pagu
Convidados: Lia Zatz, Gênese Andrade e Preta Ferreira
28.10 (sábado), das 15h às 18h - Apresentação artística + bate papo: Pagu e o teatro
Leitura dramática: Martha Nowill
Convidadas: Christiane Tricerri, Gilka Verana, Lilian de Lima
Artista em destaque: Augusto de Campos
Muitas
são as frentes de atuação de Augusto de Campos no campo literário, mas,
a começar pela produção poética do autor, podemos afirmar, com
segurança, que ele é o poeta vivo mais importante de seu tempo.
Nascido
em São Paulo, em 1931, Augusto de Campos empreende uma jornada de
intensas reivindicações e embates culturais ao longo do século XX e XXI.
Um dos mais célebres e frutíferos momentos desta trajetória está ligado
ao movimento concretista, um projeto estético que mobiliza Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Juntos, eles defendem a
relevância do experimentalismo e da dedicação à forma da poesia, que se
desdobra em aspectos gráficos e fonéticos das palavras, em uma dinâmica
verbicovisual. A obsessão pela comunicação e pela interatividade são
expressadas em experiências com suportes variados, como nos Poemóbiles,
poemas-objetos produzidos com Julio Plaza, e na produção musicada com
Cid Campos em Poesia é risco.
O impacto desse movimento é profundo e ruidoso, passando pela própria
negação desses pressupostos, mas também principiando na revolução da
canção tropicalista, e na incorporação dos preceitos concretistas na
linguagem dos poetas que se expressam hoje, com naturalidade, por meio
de vídeo-poemas, performances musicais e poemas-cartazes.
Na
tradução, Augusto de Campos se dedica a erigir novas trilhas, por meio
da prática da transcriação, na qual exacerba o caráter inventivo da
atividade de reconcepção de textos estrangeiros para o português
brasileiro. Porque, para lembrar o jargão, se o tradutor não se limita
pela fidelidade ao autor, ele se torna o maior aliado do leitor. Obras
de James Joyce, Vladimir Maiakovski, E.E. Cummings, Anna Akhmátova,
Stéphane Mallarmé, Octavio Paz e muitos, muitos outros poetas de
diferentes línguas, culturas e tradições são compartilhadas por Augusto
com seus leitores.
Ele
próprio, como leitor engajado e autor em busca de referências sólidas,
é, também, um ativista pela releitura. É nesse trabalho, que se confunde
com a perseguição astronômica, que Augusto reencontra o valor da poesia
de Solange Sohl, que ele descobriria mais tarde ser a autora
homenageada da FLIP 2023: Patrícia Rehder Galvão, a Pagu.
Em
um momento como o que vivemos, de desconsideração da atividade crítica,
a homenagem a Augusto de Campos também é reveladora das possibilidades
de atuação para a atividade intelectual incessante e corajosa do
crítico, do poeta e do estudioso-leitor apaixonado, quando se são todas
essas personas em uma.
Autores Programa Principal:
Internacionais:
- · Akwaeke Emezi (Nigéria, EUA)
- · Alana Portero (Espanha)
- · Christina Sharpe (EUA)
- · David Jackson (EUA)
- · Dionne Brand (Trinidad e Tobago, Canadá)
- · Ilya Kaminsky (Ucrânia, EUA)
- · Kelefa Sanneh (Inglaterra, EUA)
- · Laura Wittner (Argentina)
- · Manuel Mutimucuio (Moçambique)
- · Marion Aubert (França)
- · Mónica Ojeda (Equador)
- · Nora Krug (Alemanha)
- · Sinéad Gleeson (Irlanda)
Nacionais:
- · Adriana Armony (Rio de Janeiro, RJ)
- · Angélica Freitas (Pelotas, RS)
- · Bruna Beber (Duque de Caxias, RJ)
- · Carla Akotirene (Salvador, BA)
- · Denise Carrascosa (Salvador, BA)
- · Eliane Marques (Sant'Ana do Livramento, RS)
- · Felipe Charbel (Rio de Janeiro, RJ)
- · Flora Süssekind (Rio de Janeiro, RJ)
- · Glicéria Tupinambá (Terra Indígena Tupinambá de Olivença)
- · Gustavo Caboco (Território Wapichana)
- · Itamar Vieira Jr. (Salvador, BA)
- · Joice Berth (São Paulo, SP)
- · Jorge Augusto (Salvador, BA)
- · José Henrique Bortoluci (Jaú, SP)
- · Leda Cartum (São Paulo, SP)
- · Leda Maria Martins (Rio de Janeiro, RJ)
- · Lubi Prates (São Paulo, SP)
- · Luiza Romão (Ribeirão Preto, SP)
- · Manuela D’Ávila (Porto Alegre, RS)
- · Maria Dolores Rodriguez (Feira de Santana, BA)
- · Marília Garcia (Rio de Janeiro, RJ)
- · Miriam Esposito (Paraty, RJ)
- · Natalia Timerman (São Paulo, SP)
- · Socorro Acioli (Fortaleza, CE)
- · Tatiana Pequeno (Niterói, RJ)
21ª Flip - Festa Literária Internacional de Paraty
Data: 22 a 26 de novembro de 2023
www.flip.org.br
Relações com imprensa:
Gabriela Toledo
gabriela.toledo@flip.org.br
Helena Heringer
helena.heringer@flip.org.br
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