"A segurança coletiva pode exigir prevenção individual de risco
excessiva, mesmo que entre em conflito com os interesses e benefícios do
próprio indivíduo. Pode exigir que um indivíduo se preocupe com riscos
que são comparativamente insignificantes." Diego Schelp para a Gazeta:
A teimosia foi apresentada como virtude patriótica por uns e como
resistência festiva por outros. Mas o que os manifestantes que se
aglomeraram em atos pró-Bolsonaro em diversas cidades brasileiras,
apesar das recomendações em contrário do Ministério da Saúde do governo
que eles dizem apoiar, e frequentadores de barzinhos lotados no bairro
Vila Madalena, em São Paulo, neste domingo (15), realmente demonstram é a
falta de senso de comunidade de uma parcela da população brasileira.
A pandemia do novo coronavírus está aí e não é piada nem fantasia. As
autoridades socialistas da Itália trataram o alastramento da doença
como fantasia e deu no que deu: mais de 21.000 contaminados e 1.441
mortos até o momento em que dou o ponto final neste artigo.
O sentido de evitar aglomerações, cancelar aulas, procurar ficar em
casa o máximo possível (mesmo para quem está saudável) é justamente
evitar que o vírus se alastre. Não importa que ele seja menos letal para
os jovens: as medidas de prevenção que cada cidadão deve adotar
individualmente servem para conter a circulação do vírus e proteger a
população mais vulnerável, formada principalmente por idosos e pessoas
com certas doenças preexistentes.
Mas voltaremos a isso. Antes, falemos do tal senso de comunidade. Não
é papo de comunista. Isso é coisa de capitalismo, e dos bons.
Há alguns anos, viajei à Nova Zelândia com uma missão que muito
interessa a nós, brasileiros: descobrir as razões pelas quais o país tem
o menor índice de corrupção do mundo (no ranking da Transparência
Internacional, aparece frequentemente empatado com nações como Dinamarca
e Finlândia). Uma das explicações que os especialistas de lá me deram
dizia respeito à ética comunitária que permeia a sociedade neozelandesa
desde que os primeiros britânicos se instalaram no arquipélago, no final
do século XVIII.
A coesão social e o senso de comunidade dos neozelandeses em nada
contradizem o capitalismo de linhagem anglo-saxônica que vigora no país.
Ao contrário, essas características ajudam a explicar o êxito das
políticas liberais que colocaram a Nova Zelândia em terceiro lugar no
ranking mundial de Liberdade Econômica da Heritage Foundation e entre as
nações com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta.
Junto com a valorização do mérito individual vem a disposição de
trabalhar pelo bem comum. Eis porque a Nova Zelândia é um dos países com
os maiores índices de participação em atividades filantrópicas e
voluntárias. O sucesso pessoal reflete-se no respeito pela coisa pública
e na preocupação com o bem-estar coletivo.
Esses são os princípios éticos que fazem com que os neozelandeses
raramente se deixem corromper mesmo quando têm oportunidade (sempre há
exceções, é claro).
Um exemplo concreto são as chamadas "caixas de honestidade":
produtores locais de flores, por exemplo, colocam baldes com buquês à
venda em pequenas banquinhas de madeira na beira da estrada, sem ninguém
cuidando. Quem quiser comprar algumas flores estaciona o carro no
acostamento, pega a quantidade que quiser e coloca o dinheiro
correspondente dentro de uma caixa. Ninguém leva flores sem pagar,
ninguém rouba a caixa. Isso, para os neozelandeses, é mais do que
honestidade: é senso de comunidade.
O que nos faz voltar à questão das medidas contra o alastramento do
novo coronavírus. Antes de qualquer coisa, que não se diga que o vírus é
inofensivo ou que ele não existe. É perigoso, sim. Uma de suas recentes
vítimas foi o premiado arquiteto italiano Vittorio Gregotti, de 92
anos.
Sim, Gregotti era um idoso. Mas é aí que entra o senso de comunidade.
Os jovens devem evitar contrair o vírus justamente para que ele não se
alastre para pessoas no grupo de risco, como o arquiteto italiano, como
os nossos avós ou pais.
Uma explicação imbatível do senso de comunidade aplicado à pandemia
do coronavírus foi apresentada pelo estatístico americano Nassim
Nicholas Taleb, autor dos aclamados livros "A Lógica do Cisne Negro" e
"Antifrágil". Leiam o que escreveu Taleb, em coautoria com Joseph
Norman, em artigo divulgado neste domingo (15), enquanto os brasileiros
lotavam bares e atos políticos:
"A segurança coletiva pode exigir prevenção individual de risco
excessiva, mesmo que entre em conflito com os interesses e benefícios do
próprio indivíduo. Pode exigir que um indivíduo se preocupe com riscos
que são comparativamente insignificantes."
Ele continua: "Sob tais circunstâncias torna-se egoístico, até mesmo
psicopático, agir de acordo com o assim chamado comportamento "racional"
— fazer com que os rankings individuais de risco imediato entrem em
conflito com os da sociedade, ou que gerem risco para a sociedade."
Ou seja, pelo bem coletivo, é preciso ter um cuidado individual maior do que a avaliação individual de risco exige.
O momento de evitar aglomerações é agora, quando o número de
pacientes com coronavírus ainda não explodiu, para reduzir o impacto da
epidemia em seu auge. Mas o pessoal que lota os bares da Vila Madalena
prefere aproveitar ao máximo a boemia antes que tudo vire um caos e as
autoridades mandem fechar os estabelecimentos, como aconteceu na Itália.
É a festa pré-apocalíptica.
Enquanto isso, outro naco da sociedade brasileira tenta mostrar que
sua fé política vence até infecções virais — com incentivo de seu
Messias, que sai do seu palácio, onde o vírus já circulou, para usufruir
do contato físico com o povo. É a festa da negação apocalíptica.
E quando faltarem leitos nos hospitais, vão todos dizer que era inevitável, que era o destino?
A falta de senso de comunidade no Brasil não conhece fronteiras ideológicas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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