Ninguém antecipava essa coisa medieval e ínfima que chamamos de 'vírus'. João Pereira Coutinho, para a FSP:
Aqui estou eu, fechado em casa, olhando pela janela as ruas desertas
da cidade. Tempos de peste. E então concluo que o meu estilo de vida,
desde os 19 anos, afinal tem um nome técnico: “quarentena”. Melhor
ainda: os meus hábitos, que sempre foram objeto de crítica, têm validade
científica comprovada. “Distância social.” “Isolamento profilático.”
Antes de existir a Covid-19, já existia o Coutinho aos 19.
Sem falar do resto. Na pandemia corrente, lavar as mãos é
obrigatório. Não de forma displicente ou apressada, mas rigorosa e
demorada. Onde estão os meus psiquiatras? Sim, onde estão aqueles que
tentaram curar as minhas fobias e obsessões? O que eles entendiam como
doença é, no fim das contas, um mecanismo altamente sofisticado para
viver no mundo pós-apocalítico.
E chegamos à caverna. Ou, como agora se diz, aos desafios de ficar em
casa. Uma das notícias mais relevantes do novo coronavírus é a
quantidade de divórcios que a China registrou assim que os isolados
começaram a deixar o lar. Millôr Fernandes era um sábio: sabemos que a
lua de mel foi um sucesso quando o casal regressa e ainda se fala.
Também aqui levo vantagem. Pouco falo. E quando a minha mulher,
condenada a ficar comigo em casa, me perguntou se eu falaria muito,
tranquilizei-a. “Serei sempre o teu velho e fiel misantropo, meu amor.”
Ela sorriu, aliviada e grata.
Mas o novo coronavírus não oferece apenas lições pessoais. As
políticas são mais importantes. Agora, com tempo livre, vou olhando para
revistas e jornais que, na virada do ano, fizeram previsões para 2020.
Cinco temas ocupavam as primeiras páginas. A reeleição possível de
Trump. O abrandamento econômico europeu. A emergência climática. A
supremacia incontestada da China. O terrorismo nas ruas da Europa. Sem
surpresas, ninguém antecipava, nem sequer imaginava, essa coisa bárbara,
medieval, literalmente ínfima que dá pelo nome de “vírus”.
E, no entanto, é um vírus que destroça as certezas dos especialistas
com uma violência cósmica. E cômica, já agora. Terrorismo? Deixou de ser
o grande fantasma a partir do momento em que os próprios terroristas
são aconselhados a evitar a pestilenta Europa. O Daesh, acrônimo árabe
do Estado Islâmico, na sua newsletter, recomenda às tropas que confiem
em Alá. Mas acrescenta, com invulgar ceticismo teológico, que também é
importante lavar as mãos e tapar a boca quando se tosse ou espirra. Uma
pessoa sabe que o caso é sério quando até o Daesh se esquece dos infiéis
e se torna mais fiel à “etiqueta respiratória”. As 72 virgens, pelo
visto, podem esperar.
E a emergência climática? Tenho pensado em Greta Thunberg. Foram dias
e dias a faltar à escola com a ambição louvável de despertar a
humanidade para uma casa em chamas. Mas foi o vírus, e não a Greta, que
baixou drasticamente a poluição no planeta. Greta desejava acabar com as
viagens de avião. O vírus, mais ambicioso, levará à falência várias
companhias. Volta para a escola, Greta, você ainda tem muito que
aprender.
De resto, falar de abrandamento econômico na Europa soa hoje a
otimismo. Sobretudo quando se espera um abalo comparável à crise
financeira de 2008, ou até pior. Disse “abalo econômico”, mas é preciso
acrescentar o político: na hora do aperto, as populações exigem
fronteiras seguras e menos dependência econômica de países não
confiáveis. A China, fábrica do mundo, é o primeiro deles. Basta lembrar
a forma mendaz e autoritária como Pequim tentou esconder o surto na
fase inicial, punindo os médicos de Wuhan. Quem quer um parceiro desses?
Fronteiras, nacionalismo econômico: a doutrina Trump pode ser, a
prazo, a doutrina do Ocidente. Mas, ironicamente, o seu criador pode já
não estar na Casa Branca para o saborear. Durante quatro anos, o Donald
sobreviveu a tudo. Até ao impeachment. De tal forma que, apenas duas
semanas atrás, a sua reeleição era quase uma formalidade. Mas eis que
chegou um emigrante microscópico que, sem respeitar muros, ameaça
derrotar o homem mais poderoso do mundo. Um homem que, fiel à sua
estupidez, menosprezou o único adversário que não poderia menosprezar.
Como nas tragédias gregas, caráter é destino.
E aqui estou eu, fechado em casa, olhando pela janela as ruas
desertas da cidade. “Os seres humanos são a maior peste da Terra”,
afirmava há tempos o naturalista britânico David Attenborough. Pobre Sir
David. Na ânsia de nos tornar maiores do que somos, como foi que ele se
esqueceu de perguntar primeiro à própria peste se ela concordava?
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