Miami Beach |
Como a doença mata idosos, jovens se sentem invulneráveis; médicos
escolhem quem tem chances e políticos ainda rejeitam necessidade de
união nacional. Vilma Gryzinski:
Festas na praia, nos parques, nas ruas. Da Europa aos Estados Unidos,
jovens liberados das aulas e do peso na consciência caíram nas baladas
espontâneas.
Os números agora confirmam o perigo invisível: 86%, ou seis em cada
sete casos, não haviam sido detectados na China, o berço do vírus, no
início da epidemia, propiciando sua explosiva expansão, controlada
depois com isolamento populacional e tratamento em massa.
Na maioria dos países europeus, agora não dá para sair de casa e se
reunir em grupos. Está todo mundo confinado e os deslocamentos têm que
ser individuais.
“Só queria comprar droga”, foi uma das desculpas mais inesperadas
ouvida por policiais espanhóis que pararam um rapaz de madrugada para
checar o que estava fazendo na rua.
Comércio de drogas e sexo profissional com contato direto são duas
atividades abaladas pela era do corona. Em compensação, os canais
digitais estão bombando com as “cam girls” que atendem fantasias sexuais
via assinatura.
Os dilemas éticos dos médicos, evidentemente, são os mais difíceis:
escolher quais pacientes têm mais chances de sobrevivência para ser
entubados em UTIs.
Além da idade e das complicações pré-existentes, um outro fator está
sendo levado em conta por médicos italianos: a existência de familiares
capacitados a tomar conta dos doentes que venham a se recuperar.
Mesmo em condições sem o caráter de emergência de uma epidemia como a
atual, entubar os muito idosos pode ter sequelas motoras e cognitivas.
Sem cuidados da família, têm um fim de vida indigno e miserável..
Escolher morrer em casa, um desejo quase unânime de quem tem essa
opção, vem acompanhado de uma complicação ética: o risco de contaminação
de parentes mais próximos.
Na era do corona, os que se vão têm que viver os últimos dias e morrer sozinhos.
A proibição dos velórios quebra um tabu cultural imemorial. Numa
cidade da Sicília, 48 parentes e amigos desafiaram a proibição e
acompanharam o enterro de um ente querido.
Foram intimidados. Dificilmente receberão a pena de três meses de cadeia prevista pelo estado de calamidade.
Mas não deixa de ser espantoso – embora explicável pela situação de
emergência – ameaçar de prisão pessoas que cumprem um rito
imprescindível.
Alguns carros funerários ainda param diante de igrejas italianas, a pedido da família, para uma bênção à distância.
Mas isso também está acabando. Não há veículos suficientes.
Aliás, nem lugar para enterrar os corpos, com caixões enfileirados em
igrejinhas ou até deixados nas casas, com um sistema de refrigeração,
enquanto não dá tempo para recolhê-los.
No geral, 62% dos italianos apoiam o confinamento e outras medidas
excepcionais decretadas pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte.
As declarações dele, floreadas por expressões emocionais – “Vamos nos
separar agora para poder nos abraçar depois” -, receberam até
declarações de amor, entre memes fofinhos.
Sem a adesão espontânea dos cidadãos, é difícil colocar países inteiros em isolamento.
E mais ainda convencer a população a não vasculhar supermercados,
agarrando-se ao último pacote de papel higiênico como uma tábua de
salvação.
Manter a racionalidade – os estoques vão ser repostos – dura
geralmente três segundos diante de prateleiras vazias que lembram a
antiga União Soviética.
“Somos uma democracia madura e adulta”, disse o primeiro-ministro
Boris Johnson para explicar por que, ao contrário dos decretos taxativos
de outros países europeus, estava “aconselhando” a população a ficar em
casa, quando possível, só viajar em caso de extrema necessidade e não
frequentar bares e restaurantes.
Um comentarista algo cínico reagiu: “Se ele acha o povo maduro é
porque certamente não entrou num supermercado nos últimos tempos e viu
os carrinhos carregados até o topo”.
Boris continua a ser eviscerado pela oposição por não ser mais impositivo nem ter fechado as escolas.
Nos Estados Unidos, nem se fale: Donald Trump é considerado pela
oposição pessoalmente responsável pela epidemia, “o vírus da China”,
como disse, provocando surtos de raiva e acusações de racismo.
Quando é a hora da união nacional em momentos de calamidade pública? Geralmente, quando a coisa fica feia demais.
“É importante que rememos todos na mesma direção”, disse Pablo
Casado, do Partido Popular, da oposição de centro-direita na Espanha.
Ele apoiou o estado de emergência decretado pelo governo na Espanha e
“todas as medidas que forem necessárias”. Um Parlamento vazio ouvia-as
hoje do primeiro-ministro Pedro Suárez.
Casado e Suárez abominam-se mutuamente. Ao contrário da surpreendente
amabilidade no trato com o líder de ultra esquerda Pablo Inglesis (os
dois Pablos tiveram filhos prematuros).
Quando a sobrevivência nacional – sem falar na política – está acima
de tudo, as divergências partidárias têm que ficar em segundo plano.
Este estado de convergência ainda está longe de acontecer na França,
onde a ex-ministra da Saúde, Agnés Buzyn, saiu da vida pública com uma
bomba.
Quando deixou o ministério para se candidatar a prefeita de Paris
pelo partido de Emmanuel Macron – uma emergência política, pois o
candidato anterior havia sido flagrado no famoso vídeo íntimo -, já
sabia das dimensões do “tsunami que se aproximava”.
Mais: alertou o primeiro-ministro Édouard Philippe em dezembro e , em
janeiro, o próprio Macron. Achava também que as eleições para prefeitos
deveriam ter sido adiadas desde o primeiro turno (o segundo, só foi
passado para junho na semana passada).
“Deveríamos ter parado tudo lá atrás. Foi tudo uma farsa”, reclamou ela ao Le Monde, que faz oposição consistente a Macron.
A posição de uma ministra com acesso a informações vitais, ela
própria médica hematologista, é diferente do pessoalzinho universitário
que reclamava em Miami do fechamento das praias a partir das 5 da tarde,
impedindo as festas à beira mar?
Com certeza. Mas nesses tempos estranhos, todos têm que fazer escolhas éticas e morais.
Inclusive na hora de comprar papel higiênico.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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