MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Morre o poeta, as coisas continuam na mesma.

 

BLOG  ORLANDO TAMBOSI
Sophia de Mello Breyner

Um contemporâneo de William Wordsworth declarou que os poetas são os “legisladores oficiosos deste mundo.” Não temos a certeza de que assim seja, ou que sempre seja assim. Texto do professor Michel Tamen, publicado pelo Observador:


Num poema de 1947 a poetisa Sophia de Mello Breyner (1919-2004) escreveu que “Outros amarão as coisas que eu amei.” O verso contém uma previsão. Cita quase exactamente um verso e meio do poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), no fim do seu poema The Prelude, porventura o melhor e o mais longo poema autobiográfico de sempre: “what we have loved, / Others will love, and we will teach them how.”

Os dois versos são muito parecidos, e o primeiro parece praticamente uma tradução da primeira parte do segundo. No entanto querem dizer coisas completamente diferentes. No primeiro poema a poetisa imagina-se morta mas isso não lhe parece fazer diferença, diz, porque tudo será “como se eu não estivesse morta.” No segundo poema, o poeta declara que depois de morto vai continuar a dar lições de poesia a toda a gente, e explicar-lhes “how the mind of man becomes / A thousand times more beautiful than the earth.”

Vistas as coisas deste modo, não parece sensato dizer que o primeiro verso é uma tradução do segundo. Numa tradução explica-se normalmente aquilo que outra pessoa quis dizer, frequentemente, mas nem sempre, numa outra língua. Ora Wordsworth não quis dizer que as coisas ficariam iguais depois de ele morrer. Muito pelo contrário, parece que quis dizer que ficariam muito diferentes, e tudo por causa da sua poesia.

Dois versos muito parecidos podem querer dizer coisas muito diferentes. Isto não confirma uma ideia que se tem sobre poemas, que é a de que todos querem mais ou menos dizer a mesma coisa, a saber, coisa nenhuma. Para dar recados, mandar mensagens e estabelecer regras usaríamos prosa; e para o resto, quando não é muito preciso sermos entendidos, usamos poesia. A ideia é falsa: será raro dar recados e fazer leis em poesia; mas na maior parte da prosa que se faz também não se percebe o que quem a usa quer dizer com ela. Por exemplo, a frase “O órgão executivo colegial é constituído por um número adequado de membros” pode, para muitos leitores comuns de poesia, e mesmo para constitucionalistas, ser indistinguível de um poema, embora mau; não é fácil determinar que recado, mensagem ou regra possa conter.

Um contemporâneo de Wordsworth declarou que os poetas são os “legisladores oficiosos deste mundo.” Não temos a certeza de que assim seja, ou que sempre seja assim. Podemos no entanto estar seguros de que os legisladores se parecem muitas vezes com poetas involuntários. A estrofe sobre órgãos colegiais citada acima, que ocorre na parte final do mais longo poema autobiográfico português ainda em vigor, acolhe algumas das melhores intuições poéticas de Sophia de Mello Breyner, nomeadamente a de que, quando o seu autor morrer, todas as coisas continuarão na mesma.
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