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Sophia de Mello Breyner |
Um contemporâneo de William Wordsworth declarou que os poetas são os “legisladores oficiosos deste mundo.” Não temos a certeza de que assim seja, ou que sempre seja assim. Texto do professor Michel Tamen, publicado pelo Observador:
Num
poema de 1947 a poetisa Sophia de Mello Breyner (1919-2004) escreveu
que “Outros amarão as coisas que eu amei.” O verso contém uma previsão.
Cita quase exactamente um verso e meio do poeta inglês William
Wordsworth (1770-1850), no fim do seu poema The Prelude, porventura o
melhor e o mais longo poema autobiográfico de sempre: “what we have
loved, / Others will love, and we will teach them how.”
Os
dois versos são muito parecidos, e o primeiro parece praticamente uma
tradução da primeira parte do segundo. No entanto querem dizer coisas
completamente diferentes. No primeiro poema a poetisa imagina-se morta
mas isso não lhe parece fazer diferença, diz, porque tudo será “como se
eu não estivesse morta.” No segundo poema, o poeta declara que depois de
morto vai continuar a dar lições de poesia a toda a gente, e
explicar-lhes “how the mind of man becomes / A thousand times more
beautiful than the earth.”
Vistas
as coisas deste modo, não parece sensato dizer que o primeiro verso é
uma tradução do segundo. Numa tradução explica-se normalmente aquilo que
outra pessoa quis dizer, frequentemente, mas nem sempre, numa outra
língua. Ora Wordsworth não quis dizer que as coisas ficariam iguais
depois de ele morrer. Muito pelo contrário, parece que quis dizer que
ficariam muito diferentes, e tudo por causa da sua poesia.
Dois
versos muito parecidos podem querer dizer coisas muito diferentes. Isto
não confirma uma ideia que se tem sobre poemas, que é a de que todos
querem mais ou menos dizer a mesma coisa, a saber, coisa nenhuma. Para
dar recados, mandar mensagens e estabelecer regras usaríamos prosa; e
para o resto, quando não é muito preciso sermos entendidos, usamos
poesia. A ideia é falsa: será raro dar recados e fazer leis em poesia;
mas na maior parte da prosa que se faz também não se percebe o que quem a
usa quer dizer com ela. Por exemplo, a frase “O órgão executivo
colegial é constituído por um número adequado de membros” pode, para
muitos leitores comuns de poesia, e mesmo para constitucionalistas, ser
indistinguível de um poema, embora mau; não é fácil determinar que
recado, mensagem ou regra possa conter.
Um
contemporâneo de Wordsworth declarou que os poetas são os “legisladores
oficiosos deste mundo.” Não temos a certeza de que assim seja, ou que
sempre seja assim. Podemos no entanto estar seguros de que os
legisladores se parecem muitas vezes com poetas involuntários. A estrofe
sobre órgãos colegiais citada acima, que ocorre na parte final do mais
longo poema autobiográfico português ainda em vigor, acolhe algumas das
melhores intuições poéticas de Sophia de Mello Breyner, nomeadamente a
de que, quando o seu autor morrer, todas as coisas continuarão na mesma.
Postado há 5 hours ago por Orlando Tambosi
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