Acredito numa sociedade aberta, com uma sólida economia de mercado e com um estado social realmente eficaz. Uma sociedade que invista nos cidadãos, sabendo que, estes sim, são o nosso bem mais valioso. Teresa Roque para o Observador:
Haverá
poucos países no mundo desenvolvido que encarem o liberalismo com tanto
cepticismo como nós. Nunca o compreendi muito bem. Podemos dizer que
este medo provém, em parte, da identificação incorrecta do liberalismo
com o neoliberalismo, duas propostas políticas radicalmente diferentes,
mas que parecem estar equiparadas na mente da maioria dos nossos
concidadãos. O liberalismo não visa destruir o Estado Social. Não
pretende aliar-se aos “ricos” ou aos grandes interesses capitalistas à
custa da desgraça dos pobres. Não é imune ao sofrimento dos membros mais
frágeis da nossa sociedade.
Muito
pelo contrário. O Estado Social, como o conhecemos, foi criado por
liberais e não por social-democratas ou socialistas como muitas vezes se
pensa. Não há nenhum liberal confesso, que tenha vivido no passado ou
viva no presente, ou qualquer partido liberal existente que não
continuem a defender um Estado Social, em que certos serviços essenciais
ao bem-estar dos cidadãos, como a saúde e a educação, sejam assegurados
pelo Estado. Um dos maiores defensores do investimento público e do
intervencionismo fiscal e monetário foi o John Maynard Keynes, um
liberal confesso. Sir William Beveridge, o arquiteto do “welfare state”
inglês, era membro do Partido Liberal e não dos trabalhistas.
Não
há nenhum liberal que não defenda um Estado forte, capaz de garantir o
estado de direito, a igualdade de todos perante a lei, um sistema
judicial eficiente e imparcial, e um Estado capaz de zelar pelo bom
funcionamento de um mercado livre mesmo quando confrontado com
deficiências de mercado – derivem estas de problemas no fornecimento de
bens de interesse público, do poder dos mercados concentrados, de
assimetrias de informação ou de externalidades negativas. Não há um
único liberal que acredite que um mercado livre deixado à sua sorte
consiga vir a produzir ou distribuir recursos perfeita e
ininterruptamente. Há que proceder a ajustes regulares. A
desregulamentação excessiva acaba por conduzir a mercados ineficientes,
onde se acentuam as desigualdades de oportunidade e que, em última
análise, trabalham precisamente contra um dos princípios basilares do
liberalismo: aquele que assevera que cada indivíduo tem o direito de
concretizar todo o seu próprio potencial.
A
pretensa associação entre liberalismo e neoliberalismo tem vindo a ser
propagandeada de forma consistente e bem-sucedida pelo partido
socialista e pelos seus amigos de esquerda mais radicais. No entanto são
duas propostas políticas muito diferentes. Talvez isto ajude, em parte,
a explicar a razão pela qual é quase um insulto em Portugal
referirmo-nos a alguém como sendo um liberal. A ironia é que todos os
países que consideramos exemplares e que almejamos imitar – como a
Alemanha, a Dinamarca, a Finlândia, a Irlanda, a Suécia e assim por
diante – têm partidos liberais fortes. Coincidentemente, todos estes
países têm níveis mais elevados de justiça social, um maior respeito
pelo Estado de Direito, menos corrupção, e, para cúmulo, os seus
cidadãos gozam de maior índices de felicidade. Em suma, o liberalismo,
seja ele político ou económico, não é sinónimo de injustiça social.
Também
nunca consegui perceber por que razão acreditamos que os funcionários
públicos têm visões mais esclarecidas sobre o bem comum ou que os
gestores públicos representam melhor os interesses públicos. Afinal, o
que os torna mais iluminados? É verdade que não são influenciados pela
motivação do lucro como os privados. Mas, tal como estes, acabam por se
enredar nas teias do clientelismo, dos interesses instalados e do
tribalismo da política partidária, nenhum dos quais, como sabemos, se
pauta pela defesa do bem comum.
O
liberalismo assenta na crença fundamental no progresso e na nossa
capacidade de construir um mundo melhor. Os liberais tradicionais
valorizam o individualismo, a liberdade, a igualdade de direitos, a
limitação de poderes do governo, a economia de mercado, a igualdade de
oportunidades e o bem comum. O individualismo não significa ter licença
para fazer o que nos der na gana ou descurar tudo à nossa volta,
desrespeitando o bem-estar dos outros. Infelizmente, a maioria das
pessoas conhece pouco mais do que a famosa “mão invisível” da obra
extensa de Adam Smith (pai da nossa economia de mercado), segundo a qual
o mercado regular-se-ia automaticamente canalizando o interesse próprio
para fins sociais desejáveis. Mas, na sua obra anterior a Teoria dos
Sentimentos Morais, Smith observou que: “por mais egoísta que se possa
admitir que o homem seja, é evidente que existem certos princípios na
sua natureza que o levam a interessar-se pela sorte dos outros e que
fazem com que a felicidade destes lhe seja necessária, embora, disso,
ele não obtenha nada mais do que o prazer de a testemunhar.”
Apesar
de Adam Smith ter escrito sobre o papel do interesse próprio nos
assuntos humanos, ele considerava que a tentativa de reduzir toda a ação
humana à procura desse mesmo interesse era francamente absurda. Smith
acreditava que temos uma obrigação moral de ajudar os nossos concidadãos
em momentos de dificuldade. O homem não é apenas movido pela ganância,
mas por sentimentos de pertença e de estima. O homem valoriza a
lealdade, a justiça e a obrigação mutua. Smith até foi um precursor do
ensino público.
O
individualismo do liberalismo não é a mesma coisa que dizer que não
existe sociedade, como muitos à esquerda gostam de frisar.
Individualismo é dar o primado ao individuo. Um liberal acredita que
todos nascemos com direitos inalienáveis e que todos temos o mesmo valor
e o mesmo direito de exercer o livre arbítrio. Uma boa sociedade é
aquela que concede aos seus cidadãos o direito de perseguirem os seus
próprios objectivos e de alcançarem o seu máximo potencial. Por via de
regra, os indivíduos sabem melhor do que o Estado o que é melhor para
eles. Isto não significa que não cometam erros. Mas têm a liberdade de o
fazer, desde que não prejudiquem os outros.
Como
poderemos assegurar uma sociedade como essa? Os liberais acreditam em
governos constitucionais, em freios e contrapesos, no estado de direito,
na igualdade de todos perante a lei e na existência de certos direitos
inalienáveis, como a liberdade de expressão, a liberdade de religião, a
liberdade de associação, o direito à propriedade e assim por diante.
Acreditam num Estado forte que possa garantir essas liberdades
eficazmente. Porém, reconhecem também que o Estado pode representar uma
ameaça à liberdade. Daí que defendam a necessidade de um equilíbrio
saudável entre o Estado e a sociedade civil.
O
liberalismo sempre foi um impulsionador de mudança. Professa uma fé
inabalável no progresso humano criado pelo confronto de ideias e por
constantes melhorias. Foi o liberalismo que concebeu o mundo moderno e,
apesar de todas as suas imperfeições, os seres humanos nunca viveram num
mundo melhor. Foi graças ao mercado livre e à globalização que milhões
de pessoas se viram finalmente livres da pobreza extrema. No seu muito
aclamado livro O Novo Iluminismo, Steven Pinker argumentou contra a
perceção pública comum que existe hoje de que o mundo está “perdido”. No
mundo industrializado em que vivemos, “as pessoas mais depressa
morrerão de obesidade do que de fome”. Desde a segunda metade do século
XIX a esperança média de vida global aumentou de menos de 30 para mais
de 70 anos. As taxas de alfabetização são agora cinco vezes mais altas.
Os direitos civis e o estado de direito são hoje incomparavelmente mais
sólidos do que há apenas algumas décadas. Em muitos países, as pessoas
são agora livres de escolher como vivem – e com quem. Tudo isto foi
alcançado por via da razão, da ciência e do humanismo liberal.
Os
liberais defendem que as sociedades podem mudar gradualmente para
melhor e de baixo para cima. Divergem dos revolucionários, quer de
esquerda, quer de direita, que insistem que, para construir um mundo
melhor é preciso primeiro destruir o que temos à frente, partindo da
tábua rasa. Divergem dos conservadores porque reconhecem que a
aristocracia e a hierarquia, ou melhor, todas as concentrações de poder,
têm tendência para se revelar impulsionadores da opressão. Se não fosse
o idealismo liberal, o fim da escravidão, a descolonização, os direitos
das mulheres, o fim da segregação racial e, mais recentemente, os
movimentos LGBTQ e Black Lives Matter nunca poderiam ter ocorrido.
No
meio de tudo isto, qual deve ser o papel do Estado? Esta pandemia
colocou, mais uma vez, esta questão no centro da agenda política.
António Costa acredita que ela veio expor o fracasso absoluto do
neoliberalismo, uma proposta política que acredita num Estado mínimo. Na
realidade, em Portugal, nunca tivemos liberalismo excessivo – muito
menos neoliberalismo. Em Portugal nunca tivemos uma cultura liberal. O
que temos é um estadismo excessivo, um Estado que complica a vida dos
seus cidadãos com a sua excessiva burocracia, “overlapping” de serviços e
um peso excessivo de impostos face ao nosso rendimento médio per
capita. Em resultado disto, temos um Estado que é pouco eficiente em
encorajar o investimento privado produtivo, criador de emprego, seja ele
estrangeiro e nacional, a inovação e o progresso. Acima de tudo, temos
um Estado que se deixou cegar pelo seu preconceito ideológico de que a
iniciativa privada é má e constitui uma ameaça ao bem comum.
Paralelamente,
temos um Estado fraco, onde o sistema judicial é ineficiente e moroso e
onde as autoridades reguladoras têm falhado vezes sem conta, sem nunca
terem sido responsabilizadas por isso. Temos um Estado que acredita que
o seu papel é administrar empresas em vez de estabelecer regras claras.
Temos um Estado que acredita apenas na redistribuição (e falha
miseravelmente ao tentar fazê-la), sobrecarrega de impostos os seus
cidadãos, incorre enormes défices, está pejado de clientelismo e que
prefere uma sociedade civil fraca e que dependa totalmente dele. Se o
liberalismo fosse um atleta forte de alta competição, o Estado português
assemelha-se mais a um atleta gordo e lento.
Acredito
num Estado forte, que possa garantir o estado de direito e um sistema
judicial eficiente; que acredite e que promova uma economia robusta e
que, acima de tudo, esteja ao serviço da comunidade. Acredito num Estado
que seja inclusivo, que garanta a igualdade de oportunidades para
todos, que avalie as suas políticas públicas pelo funcionamento das
mesmas e não segundo doutrinas ideológicas abstractas. O Estado não
deveria ser o motor da economia. Deveria sim fortalecer o sector
privado, garantir que os seus cidadãos tenham boas qualificações,
encorajar o investimento nacional e estrangeiro por meio de políticas
fiscais competitivas e evitar regulamentações desnecessárias.
Infelizmente
temos um enorme défice de investimento e capital, especialmente de
capital nacional. Estamos a perder os nossos jovens profissionais mais
qualificados que partem para o estrangeiro em busca de melhores
oportunidades. Um país que, já de si, tem uma população adulta
subqualificada, quando comparado com os seus homólogos europeus, não
pode dar-se ao luxo de perder talentos, competências e qualificações. O
Estado deve de utilizar o que o país tem de melhor, seja no setor
público, privado o social para melhorar as qualificações da sua
população adulta. Finalmente, sem uma economia forte, não poderemos ter
um Estado Social com os meios necessários para investir na saúde, na
educação, nos serviços sociais ou que cuide eficazmente dos membros mais
frágeis da sociedade. Não há justiça social sem criação de riqueza.
Os
fanáticos revolucionários de esquerda ou de direita nunca conseguiram
melhorar a equidade social nem, tão pouco, contribuíram muito para a
justiça social. Têm tendência para se tornar cativos de interesses e
geralmente são impelidos por sentimentos de ressentimento ou de ódio.
Acredito
numa sociedade aberta, que não se deixe cegar por dogmas ideológicos.
Uma sociedade com uma sólida economia de mercado e com um estado social
verdadeiramente eficaz. Uma sociedade que invista nos seus cidadãos,
sabendo que, estes sim, são o nosso bem mais valioso. Uma sociedade que
cuide de quem não pode cuidar de si mesmo. Se tudo isto, faz de mim um
liberal, tenho orgulho de o ser.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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