A festa brega do Réveillon vem aí para ajudar a aumentar a segunda onda. Luiz Felipe Pondé, via FSP:
Muitos
deveriam confessar o seu amor inconfesso pela pandemia. Mas pega mal. O
mundo hoje é mais hipócrita do que na era vitoriana.
A
propósito, segunda onda de de contágio por coronavírus não é uma
conversinha. Pessoas morrem de Covid. E cada vida é um absoluto, um
mundo que termina junto com ela. Há que se reverenciar os mortos e os
que sofrem.
Mas
isso é coisa difícil de pegar hoje em dia. Não só Bolsonaro é um boçal.
A boçalidade é uma tendência de mercado - um marqueteiro bom ensina
você a ser boçal com estilo. De cara, ele mostrará que reverência é algo
da ordem do preconceito e da heteronormatividade patriarcal opressora. A
crítica tornou-se ridícula.
Voltemos
à segunda onda. Para começo de conversa, com a sensibilidade de
vira-latas que temos, se houve um segundo aumento de infecções por
coronavírus na Europa, somos obrigados a registrar isso por aqui também.
Do contrário, seríamos pobres demais até para a Covid. A festa brega de
Réveillon está aí para nos ajudar.
Talvez
essa pandemia não acabe nunca. Se o ar da morte já teve sua majestade -
nas palavras do escritor Georges Bernanos, no século 20 -, hoje o ar da
morte é aquele clima da banalidade de uma feira. Estamos a caminho de
naturalizar isso como um ativo. O mercado não nos deixará esquecer.
Até
aí, nada de novo. No romance "Almas Mortas", de Nikolai Gógol, autor
russo do século 19, o personagem central compra nomes de servos mortos,
mas que ainda não constam na lista de óbitos do último censo, para posar
de rico, como se tivesse muitos criados. Quando chega a uma nova
cidade, sempre pergunta: "Qual é a febre que está matando por aqui?
Quantos já morreram?".
A
Covid-19 não é mais só uma commodity - ela se tornou networking.
Profissionais da ciência tem seus avatares para investir no seu
marketing digital. Trabalhos fragmentados e previsões apressadas não
respondem à velocidade da demanda da mídia por informação. A ciência não
foi feita para o frenesi das câmeras. Sua vocação é mais monástica.
As
pessoas falam de segunda onda agora como se falava da última moda na
França e das mulheres que traem seus maridos fumando Gitanes. A Covid é
uma sociabilidade. E, por isso mesmo, uma fofoca. Logo farão webinários
sobre a nova "consciência da Covid".
A
doença é uma das melhores efemérides para a mídia nos últimos anos.
Torres gêmeas, Charlie Hebdo, Bataclan, Estado Islâmico, Trump (logo a
imprensa vai se cansar de festejar a vitória de Biden e vai chorar a
perda de assinantes), Bolsonaro e Covid.
Já a política na pandemia demonstrou estar acima até mesmo da morte. A política é mais importante do que a epidemiologia.
Existem
causas que têm o direito de espalhar vírus, mas outras que não. No
fundo do coração, ficamos até felizes de ter mais uma desculpa pra
humilhar algumas pessoas e dizer: "Você viu que ela não estava usando
máscara?! Sempre soube que ela era umazinha".
O
marketing como um todo festeja a pandemia como "a tendência". Como "o
rompimento de paradigma". O século 21 finalmente aconteceu. Agora
podemos mandar embora e despedir todos os velhos com amor, já que eles
são grupo de risco e precisam ficar em casa.
Quem
ia imaginar que um dia a natureza nos daria uma graça dessas? Hoje a
inovação é necessária. Todos serão millennials - ou morrerão.
O
marketing está em festa com toda uma linha de produtos novos e aliados a
uma ideia que a modernidade sempre adorou - a de que devemos eliminar
germes e qualquer impureza do cotidiano.
Até
os mais paranoicos são contemplados pela graça da pandemia. Afinal, o
mundo é mesmo um monstro e devemos ter medo. Felizes, fazem selfies com
máscaras e mantêm a autoestima em alta.
Os
grupos de WhatsApp de mães das escolas infantis terão muito tempo para a
"Chucky Covid" e todo o gozo de terror que elas adoram. Será que as
crianças sobrevirão às projeções narcísicas dos jovens pais que não
deixarão os filhos pequenos voltarem à escola?
Enfim,
rasguem a fantasia, saiam do armário e gritem alto: "Pandemia, meu
amor, não vás embora, pois meu coração ficaria vazio sem ti!".
Espero
que a velha inércia triste desta espécie pré-histórica nos salve desse
ridículo e, com o charme do Alto Paleolítico, varra esse gozo mórbido
para a lata de lixo dos tempos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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