Táticas e estratégias são diferentes, mas o modelo italiano, adotado na
Espanha e na França, é o que está funcionando pior, outros ainda vão ser
testados. Vilma Gryzinski:
Como é possível que a Itália, um país europeu avançado, já tenha mais
de 22 mil casos comprovados do novo coronavírus, com morte na casa dos 1
500?
É um panorama devastador, pior do que o da China, onde o novo vírus fez a transição animal-humano possivelmente em novembro.
Com mais de 80 mil casos e 3 200 mortes, a China continua a ser a
recordista dessa corrida que ninguém quer ganhar, mas pode ser
ultrapassada, e brevemente, pela Itália em termos de letalidade.
Os italianos estão fazendo alguma coisa errada, estão pagando o preço
pela alta expectativa de vida com uma doença que dizima os idosos ou o
próprio vírus tem um comportamento diferente?
Todas as hipóteses devem ser levadas em conta num caso como o atual,
em que a epidemia está se desenrolando diante de nossos olhos como um
filme do qual não sabemos o fim.
Mas já dá para ver os resultados de diferentes estratégias.
O isolamento de Wuhan, e depois da província toda da qual é capital,
Hubei, foi mais ou menos reproduzido, em fases, na Itália e agora na
Espanha e na França.
Nos três países europeus, as populações estão, em diferentes graus, confinadas, com o comércio não essencial fechado.
Mas nenhum reproduziu a capacidade chinesa de construir hospitais em
dez dias, despejar equipamento hospitalar em larga escala e “inundar” o
país com máscaras – as vantagens de ser a “fábrica do mundo”.
A opacidade, a censura e os erros iniciais tiverem resultados terríveis, mas a reação em massa mostrou resultados.
No último dia 7, foram registrados 99 casos em Wuhan. No ápice, nas
trágicas semanas entre janeiro e fevereiro, chegavam a 2 000 por dia.
Na Itália, foram 3 497 novos casos entre sexta-feira e ontem.
Um documento oficial do Piemonte, reportado pelo Telegraph,
estabelece que os pacientes com mais de 80 anos não serão admitidos nas
UTIs se “se tornar impossível prover cuidados intensivos a todos”.
Critérios para admissão: ter menos de 80 anos ou pontuação inferior a
cinco no Índice Charlson de Comorbidade, uma escala de avaliação da
soma de doenças graves que indica a probabilidade de óbito, existe desde
1987 (obra da médica Mary Charlson, de Cornell, utilizada em todo o
mundo).
“É um terremoto por dia”, comparou um médico italiano sobre os 60 a 80 doentes graves que recebe diariamente.
Uma comparação tem sido feita com certa frequência para tentar
entender, no meio do terremoto viral, outro enigma: por que a Itália e a
Coreia do Sul, a certa altura, não muito distante, da expansão da
doença, estavam “empatadas”, com certa de sete mil casos.
Mas o número de mortos não passou de 70 no país que tem um ótimo
nível de desenvolvimento, mas carrega as faixas de pobreza muito bem
vislumbradas no filme Parasitas.
O fator mais mencionado para o caso sul-coreano é da quantidade de
pessoas testadas. O país foi pioneiro no sistema drive-through.
Como nas lanchonetes com serviço de atendimento no carro, os
potenciais doentes passam em instalações isoladas, fazem o teste do
cotonete e esperam o resultado. Também preenchem formulários extensos
para o controle, por celular, de seus movimentos e contatos.
A ideia é agilizar os testes (uma empresa de biotecnologia
desenvolveu um tipo em três semanas) e evitar o contágio justamente nos
lugares mais perigosos – e vulneráveis -, hospitais e clínicas.
A força-tarefa de Donald Trump aproveitou a ideia, dando-lhe um toque
americano: áreas para testes no sistema drive-through nos
estacionamentos de gigantescos conglomerados de compras como Walmart e
Target.
Trump ressaltou o espírito animal da sua inciativa, cercando-se de
altos executivos do varejo e da indústria farmacêutica, além de convocar
o Google para fazer o que faz muito melhor do que qualquer governo, os
caminhos digitais para um projeto de guerra ao vírus.
Faz parte da cultura americana. Se der certo, será a maior parceria público-privada da história.
Os europeus, ao contrário, esperam tudo do sistema de saúde pública, evidentemente sobrecarregado.
E do governo, claro. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Suárez,
chegou a especificar que a ordem de sair de casa apenas para tarefas
essenciais, como trabalhar nos casos permitidos, comprar bens de
primeira necessidade e cuidar de vulneráveis, incluía “não ir almoçar na
casa de amigos”.
Os ingleses estão tentando um caminho próprio, cheio de perigos. Como tudo, aliás, nesse momento de incertezas.
O governo de Boris Johnson não fechou escolas e pretende adiar ao
máximo medidas restritivas, calculando que vão durar muito e desafiar a
paciência da população.
Só um exemplo, estarrecedor: está nos planos instar todas as pessoas
acima de 70 anos a se isolarem durante quatro meses, para se proteger do
risco de contágio. Repetindo: quatro meses.
Como alimentar, atender e não enlouquecer a população mais idosa, já tão evidentemente solitária?
Guerra é guerra, insinua o governo, muito criticado depois que o
principal assessor para assuntos científicos, Patrick Vallance,
professor de medicina e ex-executivo farmacêutico, disse que a
estratégia por trás da política de não fechamento de tudo, como no resto
da Europa, era atingir a imunidade de grupo através do contágio
controlado.
Deu até um número: 60 milhões de britânicos, ou seja, praticamente
toda a população (66 milhões) ajudariam o combate ao vírus ao entrar em
contato com ele e desenvolver anticorpos naturais, pois não dá tempo
para desenvolver uma vacina para combater a crise em expansão.
A questão, justamente, seria como e quando tirar de circulação os idosos enquanto os organismos mais jovens “trabalham”.
A expressão imunidade de grupo, ou o nada simpático efeito rebanho, é
usada justamente para espelhar a extensão das populações vacinadas
necessárias para proteger as minorias não-vacinadas.
Mas também funciona para o desenvolvimento de imunidade natural no caso de doenças sem altas taxas de mortalidade.
A contaminação de grandes faixas populacionais é frequente nos vírus gripais, da família influenza.
Em 20019, por exemplo, 59 milhões de americanos tinham o H1N1,
conhecido como gripe suína. Desses, 265 mil demandaram hospitalização e
12 mil morreram.
É claro que Vallance foi criticadíssimo por falar com naturalidade de
médico sobre o assunto e os políticos perceberam que não pegou bem
fazer com que eleitores se sentissem como cobaias. Ou gado.
O ministro da Saúde, Matt Hancock, tentou consertar, dizendo
especificamente que a imunidade de grupo “não faz parte do nosso plano”.
“É um conceito científico, não nosso objetivo ou nossa estratégia”, especificou.
Como na guerra, só dá para saber depois se a estratégia funcionou ou
não. Mas já dá para perceber o que está funcionando e o que não está.
Recursos, capacidade de liderança, conhecimento científico e cultura
influenciam muito. Da mesma maneira que colocar um manequim de loja com
roupa sexy e máscara cirúrgica pode funcionar em Barcelona e causar
horror no Irã.
Existem muitas vidas em jogo nessa confluência. Para não falar em carreiras políticas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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