Natural
de Pelotas (RS) e vivendo no Rio há cerca de 20 anos, Camila se destaca
em livro de estreia, que também foi finalista no Prêmio Minuano de
Literatura 2024.
“Esse
livro nos ensina o quanto as narrativas que ouvimos sobre nossa própria
gênese nos marcam, moldam, determinam. Nossa própria mitologia
individual começa a ser contada pelos lábios agridoces das nossas mães. E
mesmo que escutemos de outros lábios, é dos delas que as palavras são
ditas, seja com a carga de sortilégio ou de maldição.”
Fernanda Samico no prefácio
O
primeiro elo de uma pessoa é com a mãe. Pela literalidade do cordão
umbilical, passando pela conexão da amamentação, a relação simbiótica de
construção de si física e psicologicamente nunca passa incólume à
figura materna. Em “De Amor e Outros Ódios” (Editora Patuá, 137 pág.), Camila Anllelini (@camilaanllelini) apresenta uma personagem recorte de suas próprias experiências em uma série de crônicas e cartas à mãe.
O livro, que foi semifinalista no Prêmio Jabuti 2024, na categoria de crônicas e também finalista no Prêmio Minuano de Literatura 2024
na categoria narrativas curtas, vem do desejo da autora de que as
pessoas possam fazer as pazes com suas contradições. “Cada leitor ou
leitora que me procura para dizer que encontrou nas páginas desse livro
algo da sua singularidade me faz acreditar um pouco mais nesse
trabalho.”, explica.
Escritora
e psicanalista, Camila relata a dificuldade de definir um estilo para
seu livro. “Tenho como fio condutor a poesia.” A construção de uma
linguagem poética que perpassa toda sua escrita, independente do gênero
textual. Para a autora, "este livro representa uma dose de coragem na
qual antes dele me parecia selvagem e depois dele passou a ser bonita.”
A contradição no amor de mãe e filha
Sigmund Freud reconhece a relação primitiva entre uma menina e a mãe como uma fase fundamental
permeada por uma combinação de sentimentos como amor e ódio. Camila
traduz essa ambivalência em “De Amor e outros Ódios” com uma personagem
que está emaranhada na figura materna no que ama, mas também no que
repele e rejeita dessa mãe.
Com
uma narrativa em primeira pessoa, as personagens não têm nomes, mas as
personalidades bem marcadas. A mãe é uma sobrevivente de um acidente que
quase a matou e também por isso valoriza a vida de forma muito
vibrante. Uma “mulher ao revés”, como explica a filha.
Esta
que se define de forma quase sempre contrária, como alguém que precisa
conferir ordem ao mundo, para compensar o espírito livre de sua mãe. Há
um olhar de preocupação e às vezes quase de rancor por essa mãe tão
“diferente”, mas também uma admiração genuína por parte da filha que
também costuma esquecer sua própria rigidez para se deslumbrar com a
forma bonita que a mãe escolhe existir. “Silenciei imediatamente a ânsia
de fazer funcionar um planeta inteiro no ritmo da minha engrenagem para
poder vê-la. Dançando fora de tom, de jeito engraçado como sempre,
alegre de sentir o corpo vivo.” (pág. 73)
Como
se os papeis pudessem se inverter, a filha encontra nessa mãe a
criança, que ela muitas vezes reprimiu em si mesma em um movimento de
compensar na família as funções de cada um.
Literatura com uma dose de psicanálise
Camila
Anllelini sempre nutriu uma admiração por cronistas. Desde menina
alimentava a imaginação com a ideia de autores com estante que cobriam
paredes, como nos filmes, que demandam uma escada para acessar livros
que chegam até o teto. Sonhava em assinar uma coluna de jornal enquanto
admirava o trabalho de autores de Martha Medeiros a Luis Fernando
Veríssimo, assim como a descoberta dos que vieram antes como Clarice
Lispector, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade. “Admiro o
trabalho de costura para alcançar a concisão necessária às narrativas
curtas, não há tempo para rodeios em uma crônica.”
Natural
de Pelotas, Rio Grande do Sul, Camila Anllelini apresenta em “De Amor e
Outros Ódios” um emaranhado da complexidade com a relação materna, a
partir da franqueza transparente de uma psicanalista. Radicada no Rio de
Janeiro desde os 15 anos, a autora de 35 anos passou por diversas áreas
incluindo administração, moda e dança, antes de se encontrar na
psicanálise. Com mestrado em Resolução de Conflitos e Mediação pela
Faculdade de Psicologia da Universidad Europea del Atlántico, da
Espanha, posteriormente seguiu sua formação junto ao Corpo Freudiano
Escola de Psicanálise e no fim de 2024 concluiu uma pós graduação em
Psicanálise, Arte e Literatura pelo Instituto ESPE. Atualmente é
associada ao Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.
“De
Amor e Outros Ódios” é seu primeiro livro publicado, após algumas
experiências de publicações com coletivos virtuais. Foi a partir do
momento que decidiu fazer da escrita um ofício que ela iniciou as
publicações autônomas. A autora aponta que esse processo ajudou a
entender a necessidade de distanciar do texto para publicá-lo. “Quando
estamos muito enroscados nele não conseguimos entregá-lo a outros
olhares.” Camila acredita que é importante se destituir parcialmente do
narcisismo para escrever, porque não se pode prever o que acontecerá com
o escrito após se tornar público. “Um texto publicado passa a ser de
quem o lê.”
Na
sua escrita, a leitura de outras mulheres é inspiradora para o seu
fazer artístico. Camila tem um apreço por ler autoras vivas e valoriza o
trabalho de autoras como Socorro Acioli, Carla Madeira, Aline Bei,
Liana Ferraz e Mariana Salomão Carrara. Mas valoriza também aquelas que
abriram as páginas dos livros como possibilidade para mulheres como
Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Adélia Prado e
Lúcia Berlin. A autora também reforça a importância de outras linguagens
artísticas no seu processo de inspiração. Nas esculturas de Maria
Martins, assim como nas obras de Lygia Pape, Adriana Varejão e Claudia
Andujar. “Há a música, o cinema, o teatro. Há a vida acontecendo pelas
ruas. Todas as formas de linguagem são influências em mim e para mim.”
O
processo de escrita de Camila se divide em dois momentos principais: a
escrita sem compromisso com forma e estilo, a partir de uma centelha
criativa que pode vir de suas leituras, de uma frase, de uma palavra.
Após esse despertar do texto, a autora precisa deixá-lo descansar por um
tempo. É depois disso que começa o trabalho realmente braçal, com as
metas de edição. “Acredito que um texto deve ser reescrito e editado
quantas vezes forem necessárias até chegar na forma intencionalmente
desejada.” Em “De Amor e outros ódios”, esse processo foi longo, levando
quase três anos. A autora conta que precisou esperar a própria ebulição
da história, até o ponto que fosse impossível guardá-la unicamente para
si mesma. “Mesmo quando eu não estava sentada escrevendo, essa história
estava sendo escrita em mim.”
Atualmente
está trabalhando em dois projetos, provavelmente o primeiro a ser
desenvolvido será um romance, mas ainda sem previsão de publicação.
Confira um trecho do livro:
“Perdoa
atropelar com mais brutalidade do que gentileza teu jeito de criança
infinita, mãe. Conseguir enxergar beleza quando a realidade se desfaz de
sentido é a herança mais valiosa que carrego. É o cordão umbilical que
me acompanha por aí afora. Se toda vez que me espanto com o mundo não
corro de volta para casa é porque sei que aprendi contigo a sustentar o
peso do corpo. É teu o meu amor atravessado para fora do osso, desculpa
se às vezes espeta.”
Adquira “De amor e outros ódios” pelo site da Editora Patuá
https://www.editorapatua.com.br/de-amor-e-outros-odios--cronicas-de-camila-anllelini/p
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