Marco Antonio Spinelli*
José
Datrino era assolado desde a infância por premonições de sua missão na
Terra. Tinha alguns clarões de que teria família e bens, mas um dia
largaria tudo para realizar essa missão. Foi levado a curandeiros que
não conseguiriam tirar aquelas ideias da cabeça do menino.
Na
metade de Dezembro de 1961, na cidade de Niterói – RJ, três mil pessoas
se apertavam dentro de um famoso circo, o Gran Circus Norte-Americano
que, apesar do nome, era bem brasileiro. Reza a lenda que, um homem com
problemas mentais resolveu se vingar de um funcionário do circo, e ateou
fogo à lona para criar um tumulto. A trapezista, com a visão de cima
que seu número permitia, percebeu o início do incêndio, esperou que seu
marido, também trapezista e no meio de seu ato, terminasse o seu
movimento e gritou: “Fogo!”. O que se seguiu foi um Titanic de fogo, com
pessoas sendo pisoteadas e o incêndio se alastrando sobre a lona no
circo, coberta de parafina para ficar brilhosa, o que serviu como
gasolina para aquele fogaréu. Mais de quinhentas pessoas morreram,
pisoteadas e queimadas, naquela pira gigante. Em sua desolada maioria,
crianças. O mundo ficou chocado com a tragédia, e até o Papa enviou
donativo para ajudar os milhares de feridos e as famílias enlutadas.
José
Datrino ouvia as notícias escabrosas que chegavam sobre a tragédia do
Gran Circus. Relatou, muitas vezes, que “uma voz astral” avisou que ele
deveria abandonar o mundo da matéria e viver, apenas, no campo do
Espírito. Pegou um dos dois caminhões de sua empresa e foi para Niterói
consolar as pessoas, com palavras de bondade e gentileza. Nascia José
Agradecido, ou, o nome mais famoso, Profeta Gentileza, que passou os
anos seguintes de sua vida como andarilho e pregador da Gentileza e da
capacidade de troca humana, não pautada por dinheiro ou interesses
mesquinhos. Das cinzas do Gran Circus surgia um consolador e pregador
com barbas e ares de profeta bíblico. Quando era chamado de maluco, ou
louco, respondia: ”Sou maluco para te amar e louco para te salvar”. Eu
pergunto: quem é o louco afinal? O Profeta Gentileza, ou nossa
Sociedade?
Fritz
Perls, terapeuta alemão e criador da Gestalt Terapia, também tinha
barbas brancas longas e ares de profeta, como Gentileza. A Gestalt fazia
sessões que buscavam integrar os vários atores de nossa Psique cindida.
O processo ajudava a ampliar um conceito fundamental da Gestalt e que
foi o título provisório desse artigo: “Fronteira de Ego”. A Fronteira de
Ego é o ponto que delimita o Eu em relação ao Outro. O Nós, com relação
à Eles. Quando escrevo isso, lembro de uma paciente antiga, italiana,
que brigava com sua nora e esperava que seu filho ficasse do seu lado.
Dizia que a sua nora não era confiável. Confiança, segundo ela, só em
parentesco de sangue. Batia no seu braço, onde tiramos o sangue nos
exames, para enfatizar: “Sangue, dottore, sangue!”.
Esse
é um bom exemplo de Fronteira de Ego estreita. Só vivo, confio e me
relaciono com quem está do muro para cá, e o muro se delimita com os
laços de sangue. Quanto mais estreita a fronteira do Ego, mais mesquinha
e neurótica é a pessoa. Fritz e Gentileza dedicaram sua vida a expandir
as fronteiras relacionais e a capacidade de inclusão do Outro dentro de
nossos muros de Berlim pessoais que nos apequenam e amedrontam. Somos
todos parte da mesma aldeia, que é o mundo.
Vivemos
no momento de nossa história em que esse texto será publicado, se
aprovado, em grandes veículos de Imprensa, quase em Tempo Real. As
fronteiras para a informação e interação vem se apagando nesse novo
século. Estamos todos no mesmo barco digital. Isso gera uma reação em
contrário com igual ou maior intensidade, tentando preservar privilégios
e intensificar as fronteiras da separação. Isso se manifesta no “Nós
contra Eles”- A instrumentalização do ódio e da divisão, os gritos do
polarizações e tambores de guerra, reais e virtuais. A
instrumentalização do insulto e da ameaça, que é só abrir alguma página
do X, antigo Tweeter, para observar. O diálogo foi substituído pelo quem
grita mais alto ou quem faz a melhor Lacração, calando a boca ou
cancelando quem discorda de “Nós”.
Vejo
os drones do Irã atacando Israel e o ditador da Coréia do Norte
bradando que “está na hora de se preparar para a Guerra” para imaginar
que os limites das fronteiras de Ego vão apartando pessoas e Estados, na
exata medida da promoção da Ira e da anulação de qualquer possibilidade
de integração com esse Outro, que passa a ser meu Inimigo.
A
imagem de Gentileza oferendo flores nos semáforos, ou de Fritz,
integrando os pacientes com suas feridas e reconciliando as pessoas com
quem um dia lhes provocou o mal, parecem de dois malucos, com suas vozes
sufocadas pelos mísseis e pelos drones da grande Discórdia.
Quem está maluco, afinal?
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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