Nosso problema é existencial. Não é a incapacidade de aprender, mas de não saber diferenciar um erro de um acerto. Fernando Schüler para a revista Veja:
Há
uma passagem famosa de Roberto Campos, no Roda Viva, coisa de trinta
anos atrás, dizendo que o Brasil não aprende. “Bismarck”, disse ele,
“classificava os povos em três grupos: os inteligentes, que aprendem com
a experiência alheia; os medíocres, que aprendem da própria
experiência, e os idiotas, que nunca aprendem”. O Brasil se encaixaria
nesse último grupo. Roberto era um sujeito cáustico, e talvez tenha sido
um pouco duro. Afinal, algum tempo depois daquela entrevista fizemos o
Plano Real, e em pouco mais de duas décadas conseguimos acabar com o
imposto sindical. Cada um pode fazer o seu balanço.
Eu
lembrei da provocação do Roberto quando lia sobre a conversa toda em
torno de “intervir no preço da Petrobras”. Há uma montanha de dados
sobre quanto a companhia penou com o congelamento dos preços do
combustível, para “segurar a inflação”, à época do governo Dilma. O
ex-conselheiro da empresa Mauro Cunha fala em um custo de 100 bilhões de
reais, mas há quem contabilize um valor maior. O preço das ações
derreteu, e até hoje pagamos aquela conta. Como se nada houvesse
acontecido, escuto agora que é preciso mexer no preço “para não
prejudicar a dona de casa”, e não é apenas Lula que diz essas coisas. Temos algum problema, ou é uma espécie de eterno retorno nietzschiano, um tanto prosaico?
Vejamos
um exemplo mais estrutural: a reforma administrativa. O Brasil gasta
mais de 13% do PIB com funcionalismo, mais do que a Alemanha e a França,
mas não me parece haver o menor acordo sobre se isso é pouco ou é
muito. Um dos pontos da reforma, que dorme no Congresso, era terminar
com as progressões por tempo de serviço. Leio agora que estamos prestes a
votar um projeto que dá 5% de aumento a cada cinco anos para nossos
magistrados, ou quem sabe para todos os servidores, como sugerem algumas
emendas. Pode ser que não passe, mas vamos lá: há alguma convicção
sobre essas coisas no Congresso? Gosto de implicar com a avaliação de
desempenho dos funcionários, que a Constituição manda fazer. Está lá há
24 anos para ser regulamentada, mas ninguém dá bola. Nem o Congresso nem
o Supremo nem as claques que gritam “mito, mito” ou “Lula-lá”. Temos
alguma convicção sobre isso? O caso é o mesmo com a reforma tributária
ou sobre cobrar ou não mensalidade nas universidades públicas. Até mesmo
sobre a privatização da Petrobras. Leio que 38% apoiam e 49% são
contra. Acho que o Roberto foi generoso. Nosso problema é existencial.
Não é a incapacidade de aprender, mas de não saber diferenciar um erro
de um acerto. O fato algo constrangedor de que não dispomos, no mundo
político e na sociedade, do menor consenso sobre o que efetivamente
queremos como país.
O
mesmo acontece com os direitos individuais. Dias atrás vi o ministro
Alexandre de Moraes dizer que a liberdade de expressão tem de ter
limites, mas “o que não pode é a censura prévia”. Me caiu os butiá dos
bolsos, pois o próprio ministro vive decretando censura prévia por aí.
Um dos últimos foi a de um jornalista chamado Claudio Lessa. Está lá, na
ordem que o ministro deu ao Telegram: tirem esse sujeito do ar. Podia
ter processado por calúnia ou injúria, não? Com o “devido processo”,
essas coisas cansativas do estado de direito. Mas não. Manda banir.
Tanta gente se orgulhou que o cala-boca já tinha morrido, e agora
estamos repetindo o erro? Aí que vem o problema: o ministro não acha que
é um erro. Talvez nem ache que censura prévia seja censura prévia. De
novo, o problema não é a incapacidade de aprender. É a falta de um
acordo básico sobre liberdades, direitos individuais, essas coisas sobre
as quais um dia imaginamos concordar, mas agora vimos que não.
Leio
agora um ótimo livro, organizado pelo colega Marcos Mendes, analisando
dezenas de erros que cometemos nos últimos anos. Um deles, relatado pelo
economista Tiago Sbardelotto, conta a história da avalanche de
subsídios dados pelo governo, sem lá muito critério, nas últimas duas
décadas. Mais de dois terços dos benefícios nem sequer continham estudo
de impacto fiscal ou medida compensatória, como manda a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Coisas como o financiamento a rodo de
caminhões, via BNDES, com os resultados que todos sabemos. Ao final, ele
mostra que o impacto dos benefícios no crescimento foi pífio, mas sobre
a dívida pública foi de 22% do PIB. Nossa dívida seria de 52% do PIB,
em 2019, e não 74%, caso não tivéssemos dado os subsídios. Fomos
concedendo benefícios e “regimes tributários especiais”, sobretudo no
período que vai da crise de 2008 até 2015, à base da pressão desse ou
daquele setor econômico. Mostramos, no fundo, o que somos: um país
vulnerável à captura. País com carga tributária alta e complicada, mas
sujeito a infinitas exceções. No fim, perdemos todos, e vamos levando.
Na
grande crise de 2015 e 2016, o Brasil quebrou. O PIB caiu 7,2% e mais
de 2 milhões de brasileiros cruzaram, para baixo, a linha da extrema
pobreza. Em 2016, o Congresso votou o teto de gastos. Ele funcionou, aos
trancos e barrancos, como freio ao vício da irresponsabilidade fiscal
brasileira e contribuiu para que o país alcançasse a menor taxa básica
de juros na série histórica. Pois bem, alguém acha que aprendemos?
Escuto agora alguns dos principais candidatos à Presidência dizendo que
vão “acabar com o teto” para retomar o investimento público, e por aí
fazer a economia crescer. É só um sinal. Podemos publicar livros e fazer
o balanço que quisermos. A verdade é que somos mesmo um país sem
convicção. Que anda em zigue-zague, sem ninguém aparentemente muito
preocupado com isso.
O
Brasil fez uma reforma trabalhista, a duras penas, mas esses dias
escutei que ela foi feita com “mentalidade escravocrata” e que é preciso
reabrir a discussão. Quem sabe até enquadrar o Uber e os aplicativos na
CLT, por que não? Levamos alguns anos para tornar obrigatória a
execução das emendas parlamentares, para que elas não fossem usadas como
moeda de troca, no Congresso. Agora criamos as emendas de relator, que
servem exatamente como moeda de troca, no Congresso. Nosso mundo
político malandro sacou 5 bilhões de reais do bolso dos contribuintes
para financiar suas campanhas, fazendo do Brasil, de longe, a democracia
que mais transfere dinheiro público para partidos e políticos.
Desculpem se hoje pareço um pouco amargo, mas talvez este seja o momento
exato para ser. Momento de olhar para dentro, parar de elogiar os
incríveis hábitos dos políticos suecos, e fazer exatamente o oposto.
O
país não precisa de unanimidade. Só precisa de uma mínima hegemonia
modernizadora, para avançar em um consenso básico em torno de uma frase
engraçada que escutei tempos atrás: “Só erros novos, por favor”. Em
momentos-chave de nossa história, como na transição democrática, nos
anos 80, o país soube produzir um incrível consenso. Não está escrito em
nenhum lugar que não possamos fazer isso no plano da economia, da
governança pública, de nossa dívida social. No fundo, é esse o debate
que precisamos fazer, neste ano em que as esperanças se renovam, uma vez
mais, em nossa grande democracia.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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