Quase todo o século XX colombiano se passou entre liberais e conservadores. Mas aquilo a que chamaram “a ditadura perfeita”, assente numa oligarquia de quase 100 anos, pode ter sucumbido nas eleições. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
A
primeira volta das eleições presidenciais na Colômbia, no passado
Domingo, 29 de Maio, foi mais um sinal da mudança política, ideológica e
sociológica que assalta o mundo euroamericano, com novas forças de
esquerda e de direita a concorrer com os partidos tradicionais ou mesmo a
tomar o seu lugar.
O
paradigma é válido para muitos países da União Europeia e está a
repetir-se no continente americano, de Norte a Sul. Nos Estados Unidos o
fenómeno aconteceu no interior dos partidos tradicionais, com o wokismo
democrata e o trumpismo republicano a ganharem terreno, numa
radicalização progressiva, não só de ideias mas também de métodos de
luta, que chega a pôr em causa a própria separação de poderes. Para
Robert Reich, é de uma verdadeira “guerra civil ideológica” que se
trata, ou foi assim que o antigo Secretário de Estado do Trabalho de
Bill Clinton recentemente descreveu o clima político norte-americano no
New York Times. Também no Brasil se espera um duelo final entre Jair
Bolsonaro e Lula da Silva nas próximas presidenciais já que nenhum dos
candidatos centristas deverá resistir à bipolarização.
Destinos trágicos
A
Colômbia, pela força da ficção (e da realidade), tem o infortúnio de
quase só ser conhecida como a pátria dos narcotraficantes, de Pablo
Escobar aos cartéis de Cali e Medellín. Mas tal como Portugal é mais do
que uma pátria de futebolistas ou o palco de um último sonho comunista
na quase velhice da URSS, também a Colômbia é mais do que o cenário dos
narcos.
Diz-se
em Espanha que é na Colômbia que se fala “o melhor castelhano das
Américas”; porém, mais importante do que esta ambígua distinção do
antigo colonizador, é a grande literatura que a Colômbia tem dado ao
mundo, a começar por Gabriel García Márquez mas sem se esgotar nele –
com autores como Hector Abad Faciolince, Laura Restrepo ou Juan Gabriel
Vasquez, todos traduzidos em português, ou como William Ospina, criador
de uma empolgante trilogia inspirada nas viagens, aventuras e
atrocidades de toda uma épica galeria de heróis “maus”: os
conquistadores e colonizadores espanhóis da América Pedro de Ursúa,
Francisco de Orellana, Gonzalo Pizarro, e Lope de Aguirre.
Há,
na vida real colombiana, um inequívoco destino trágico que paira sobre
as cabeças de quem lá vive: dizem a s estatísticas que, entre 1958 e
2012, foram ali assassinadas por razões políticas 220 mil pessoas.
Dessas 220 mil pessoas, pobres, remediadas e privilegiadas, 80% eram
civis, não combatentes.
Álvaro
Gómez Hurtado, que conheci em Washington em Dezembro de 1980 a seguir à
eleição de Ronald Reagan, foi um destes assassinados, e o seu
itinerário de político conservador colombiano e de homem do sistema diz
muito do país de que estamos a falar.
Álvaro
Gomez era filho de Laureano Gomez, chefe do Partido Conservador, várias
vezes ministro e eleito Presidente da República em 1950. Laureano ficou
doente e foi substituído por um político da sua confiança, o ministro
da Defesa Roberto Urdaneta; mas em 1953 o golpe militar do general Rojas
Pinilla interrompeu o governo de Urdaneta. O golpe aconteceu no quadro
de um conflito civil que ficaria conhecido por “La Violencia”. A família
de Laureano Gomez esteve exilada em Espanha, nos anos 50. No regresso à
Colômbia, Álvaro fez a sua carreira universitária e jornalística,
dirigindo El Siglo, e veio a assumir a liderança do Partido Conservador,
“sucedendo” ao pai. Enquanto líder dos conservadores negociou com o
chefe do Partido Liberal um acordo para uma Frente Nacional.
Candidatou-se pela primeira vez à presidência em 1974 (os outros dois
candidatos eram, como ele, filhos de ex-presidentes) mas perdeu para
Lopez Michelsen. Foi embaixador nos Estados Unidos e em 1986 voltou a
candidatar-se, sendo derrotado pelo liberal Virgilio Barco. Em Março de
1988 foi raptado por elementos do M-19 (Movimento 19 de Abril), uma
organização extremista de guerrilha urbana que acabou por libertá-lo ao
fim de 53 dias de cativeiro e de negociações. Concorreu outra vez à
presidência em 1990, numa campanha eleitoral em que três dos candidatos
foram assassinados, e voltou a perder, dessa vez para o liberal César
Gaviria. Em 2 de Novembro de 1995 Álvaro foi assassinado ao sair de dar
uma aula de História Constitucional. Não se sabe se por terroristas de
esquerda, se por paramilitares, se por narcos.
Uma “ditadura perfeita”
Quase
todo o século XX colombiano se passou, politicamente, entre liberais e
conservadores. Houve derivas à esquerda, influenciadas pelo Partido
Comunista da Colômbia, alinhado com Moscovo, e um período curto de
ditaduras militares, como a de Rojas Pinilla, que alguns qualificarão
como “populista de direita”, mas o bipartidarismo resistiu.
Com
a revolução cubana, o cisma sino-soviético e o Maio de 68 surgiram na
Colômbia esquerdas fora da tutela soviética. Apareceu ainda a Teologia
da Libertação, de que foi representante o padre colombiano Camilo
Torres, que integrou o Exército de Libertação Nacional e morreu em
combate na guerrilha. Assim, os anos 70 viram ali um revivalismo de
famílias de esquerda, trotskistas e chinesas, partidárias da acção
directa e hostis à luta eleitoral legal, mas sem que o sistema se
alterasse.
A
tudo isto viera juntar-se o narcotráfico, com os cartéis da droga e a
sua imensa riqueza e influência na política, pela corrupção e pelo medo.
Note-se que o país não alcançou o lugar cimeiro na economia narco pela
produção de cocaína, mas sim pela sua refinação e distribuição
internacional. Nos anos 80, as receitas da cocaína ultrapassaram as do
café.
Mas
nem esta a economia paralela alterou o rotativismo, que entrou pelo
século XXI e só foi aparentemente interrompido em 2010, com a eleição de
Juan Manuel Santos, pelo Partido Social da Unidade Nacional. Santos
sucedia a Álvaro Uribe, do Partido Liberal. O seu Partido Social da
Unidade Nacional tinha sido criado em 2005 por dissidentes do Partido
Liberal, que depois se juntaram a outros liberais e conservadores,
propondo reformas económicas liberalizantes e uma aproximação aos
Estados Unidos e afirmando um comum repúdio do bolivarianismo chavista.
Mas apesar da aparente novidade das siglas, as famílias dominantes eram
as mesmas e a oligarquia permanecia intacta. Ivan Duque, um protegido de
Uribe, venceria as eleições de 2018, derrotando Gustavo Petro, esse sim
candidato de uma nova esquerda alheia ao “sistema” e independente do
Partido Liberal.
Entretanto,
nem a fragmentação activista nem o narcotráfico nem a guerrilha
pareciam alterar substancialmente um sistema que, praticamente desde a
independência, mantinha o poder nas mãos de uma oligarquia não só de
classe, mas também de famílias, com o poder a rodar entre conservadores e
liberais e a passar de pais para filhos e de filhos para netos. Entre
1914 e 2010, tirando o quinquénio militar entre 1953 e 1958,
conservadores e liberais foram alternando na Presidência da República:
era, diziam os críticos, uma “ditadura perfeita”, em que o governo,
conservador ou liberal, acabava por ir parar “sempre aos mesmos”.
Os
filósofos e historiadores gregos, de Aristóteles a Tucídides,
perceberam e registaram a natureza inevitavelmente oligárquica do poder
político em estabilidade; coisa que as modernas escolas realistas, de
Maquiavel a Vilfredo Pareto, de Karl Marx a Raymond Aron, também
souberam perceber e registar, mesmo quando a criticavam. As excepções, o
poder pessoal de um Rei ou de Líder – a monocracia absoluta – ou o
poder de todos – a democracia plena – podiam ser formas constitucionais,
mas acabavam, na prática, por assumir contornos oligárquicos, num
processo de “circulação das élites”, como o descrito por Pareto. Daí a
“ditadura perfeita” da democracia liberal colombiana.
Entre dois “outsiders”
Nesta
eleição, o candidato apoiado pelas direitas sistémicas conservadoras e
liberais, na coligação Equipo por Colombia, era Frederico (“Fico”)
Gutiérrez, ex-alcaide de Medellin. Mas “Fico” ficou pelo caminho, com
24% dos votos.
O
candidato da Esquerda Unida, Gustavo Petro, pela Unión Patriótica, que
obteve 40% dos votos, tem um perfil diferente do dos políticos
colombianos tradicionais. Nascido em 1960, Petro integrou aos 17 anos a
guerrilha do M-19, o grupo terrorista que protagonizou o assalto ao
Palácio da Justiça, com mais de 100 vítimas, mas, desde então, mudou
muito. Em 1990 foi um dos signatários do acordo de paz com o Governo; em
2010 foi candidato à Presidência da República pelo Polo Democrático
Alternativo; em 2012 foi eleito alcaide de Bogotá e em 2018 concorreu
contra Ivan Duque e perdeu.
Agora
que os tempos são outros, volta a tentar a presidência. Petro apresenta
os clássicos programas de esquerda latino-americana – como as
nacionalizações no sector económico, na saúde e na educação – mas traz
versões neo-ecológicas, como proibir as novas explorações petrolíferas o
que na actual conjuntura nacional e mundial, em que a energia é um
recurso útil, peca por algum irrealismo. O candidato preocupou-se,
também, em actualizar-se “ideologicamente”, incluindo no programa os
temas da nova agenda woke e LGBT. Para tal, foi buscar como candidata a
vice-presidente uma mulher negra – Francia Marquez Mina –, que vem
denunciando o “racismo sistémico”, o “privilégio branco” e o
“supremacismo branco” como factores estruturantes da desigualdade social
na Colômbia.
Para
os críticos, a agenda agora agitada por Petro é uma importação
norte-americana sem tradução directa na Colômbia, onde dizem que nunca
houve Apartheid ou sequer segregação oficial. É a universalização cega
de uma cartilha neomarxista que quer substituir a luta de classes pela
luta de identidades, a fim de compensar a erosão do velho binómio
proletariado/burguesia com a constante adição de outros polos
conflituantes: brancos/negros; homens/mulheres;
heterossexuais/homossexuais, bissexuais, transgéneros e outros géneros.
Mas
a grande surpresa da eleição, com 28% dos votos, foi um outro
“outsider”: Rodolfo Hernandez, de 77 anos, empresário da construção
civil e ex- alcaide de Bucaramanga, capital da província de Santander, a
quinta província económica da Colômbia mas a primeira em renda per
capita e a que tem menos desemprego. Hernandez fundou em 2019 a Liga de
Gobernantes Anticorrupción e é descrito como “independente, controverso,
antipolítico e populista”. Qualifica-se como “um engenheiro que quer
tirar os ladrões do governo”, acrescentando que a corrupção é o maior
imposto que os colombianos pagam.
Quando
lhe chamam o Trump colombiano, fazem-no pela sua linguagem directa e
irreverente, o uso e abuso de redes sociais, como o Tiktok, onde tem
mais de meio milhão de seguidores. Algumas das suas propostas de
controlo de gastos públicos são engenhosas mas demagógicas, como nomear
embaixadores colombianos já residentes no exterior, ou premiar os
denunciantes de actos de corrupção de políticos e funcionários.
Populismo à porta?
Parte
dos estudiosos do populismo latino-americano considera que a Colômbia,
uma grande economia cafeeira, por razões da sua tardia industrialização,
não conheceu fenómenos populistas de tipo nacional-autoritário, como o
peronismo argentino e o varguismo brasileiro. Eliecer Gaitán, nos anos
30 e 40, terá estado próximo desse tipo de populismo, mas Gaitán não
triunfou e foi assassinado em 1948, em Bogotá.
O
confronto da segunda volta, em 19 de Junho, é, por isso, uma novidade, O
duelo entre dois metecos ou hilotas que capitalizaram o
descontentamento da maioria marca a ruptura da hegemonia de uma classe
política e político-social que monopolizou o poder num rotativismo
pactado e sobreviveu a décadas de violência e crime organizado.
“Fico”
Gutiérrez disse que iria votar em Hernandez; Hernandez respondeu-lhe
que não fazia alianças. Assim, num país importante de um subcontinente
também importante – que as últimas Administrações americanas descuraram e
onde a China tem vindo a avançar economicamente em grande força nos
últimos vinte anos – o resultado das eleições é ainda uma incógnita.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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