De um modo geral, o cenário que se desenha é o do fim da classe média, do fim dos pobres, do fim da propriedade privada para a esmagadora maioria da população. Esta ficará na mão de uma elite tecnocrática cheia de robôs. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
O
nome da vila suíça de Davos é conhecido há anos do espectador por causa
do fórum econômico que acontece lá anualmente. Com a pandemia, esse
Fórum vem sendo mais conhecido pela sua sigla em inglês, WEF, do que
pelo nome da cidade. E seu fundador, Klaus Schwab, veio para o centro
das atenções desde quando lançara o livro Covid-19: The Great Reset,
sobre o mundo pós-Covid. Klaus Schwab fundou o Fórum Econômico Mundial
em 1971 e preside-o desde então.
Klaus
Schwab tem alguns livros recentes com a temática globalista. O primeiro
deles é A Quarta Revolução Industrial, que, segundo informa, foi
escrito em apenas três meses em 2016, a tempo de ficar pronto para o
encontro do WEF. Há uma edição brasileira da Edipro. Os outros livros
com essa temática são os seguintes: Shaping the Future of the Fourth
Industrial Revolution [Moldando o Futuro da Quarta Revolução Industrial]
(2018), COVID-19: The Great Reset [COVID-19: O Grande Reinício] (2020),
Stakeholder Capitalism: A Global Economy that Works for Progress,
People and Planet [Capitalismo de stakeholder: Uma economia global que
trabalha pelo progresso, pelas pessoas e pelo planeta] (2021) e The
Great Narrative: For a Better Future [A Grande Narrativa: Por um futuro
melhor] (2022).
Nesses
títulos vemos ideias que se tornaram correntes nos últimos anos: a de
que a Covid seria uma oportunidade para rearrumar a sociedade (“grande
reinício”), a de que os acionistas (em inglês, shareholders) devem se
tornar “stakeholders” (algo como “partes interessadas”) e cuidar do
planeta em vez de se preocupar com lucro (ou seja, Klaus Schwab é o
mentor do capitalismo lacrador), e a de que narrativas têm um papel
político mais relevante que a mera verdade factual. A ideia de que
lidamos com uma quarta revolução industrial, porém, não entrou tanto no
temário das discussões. E é justo o primeiro assunto abordado por Klaus
Schwab em sua série de livros globalistas.
O que é a quarta revolução industrial
Klaus
Schwab lista as três revoluções industriais prévias assim: a primeira
ocorreu entre 1760 e 1840, provocada pelas invenções da ferrovia e da
máquina a vapor; a segunda, entre o fim do século XIX o século XX,
provocada pela eletricidade e pelas linhas de montagem; a terceira
começou na década de 1960, com a invenção do computador. Klaus Schwab
defende que na virada do século XX para o XXI iniciou-se a quarta
revolução industrial. “É caracterizada por uma internet ubíqua e móvel”
(p. 16), diz ele.
As
divisões das revoluções industriais variam conforme os especialistas.
Creio que a expressão “revolução industrial” traga à mente da maioria
das pessoas cultas os romances de Dickens ou os Tempos Modernos de
Chaplin. Seja como for, a expressão evoca o grande caos social e a
miséria que se abateram sobre a Europa, resolvido em parte com a
exportação de pobres para o Novo Mundo. Para dimensionarmos isto do
Brasil, talvez valha apontar que os italianos que formaram comunidades
rurais no Sul vêm do Norte da Itália, isto é, justo a parte
desenvolvida, rica e industrial do país. Os agricultores que sobravam
aceitavam vir para as Américas às vezes em condição análoga à
escravidão.
Não
à toa, Klaus Schwab diz: “tenho duas grandes preocupações sobre fatores
que podem limitar a realização efetiva e coesa da quarta revolução
industrial. Primeiro, acredito que os níveis exigidos de liderança e
compreensão sobre as mudanças em curso […] são baixos quando
contrastados com a necessidade, em resposta à quarta revolução
industrial, de repensar nossos sistemas econômicos, sociais e políticos.
[…] Em segundo lugar, o mundo carece de uma narrativa coerente,
positiva e comum que descreva as oportunidades e os desafios da quarta
revolução industrial, uma narrativa essencial caso queiramos empoderar
um grupo diversificado de indivíduos e comunidades e evitar uma reação
popular contra as mudanças fundamentais em curso” (p. 17, ênfase minha).
Estas
duas preocupações dão a tônica geral do livro. Há um problema, que é a
recusa da população em aceitar esse novo mundo, e há a crença inconteste
de que uma elite tecnocrática deve dirigir a revolução para que o mundo
não entre em colapso.
Por que o mundo entraria em colapso?
Imagine
agora que não houvesse América, e os europeus tivessem que se confinar à
Europa durante a Revolução Industrial. A Grã-Bretanha não teria os EUA
para despejar seus famélicos irlandeses; a Itália não teria o que fazer
com os pobres que vieram a povoar a América de Norte a Sul; a Prússia
idem. Estaria armado um cenário para caos social. Se as previsões de
Klaus Schwab se concretizarem, é mais ou menos nesse pé em que o mundo
está; pois não há um novo mundo desta vez. Assim, por mais que,
publicamente, o WEF fale em ambientalismo, a grande preocupação de Klaus
Schwab é a instabilidade social que o desemprego em massa há de causar.
O
mundo entraria em colapso por causa do desemprego em massa devido à
automação. Hoje muitos desempregados viram motoristas de Uber – mas o
Google já em 2016 investia em carros sem motoristas. E se as corridas do
Uber se tornarem mais baratas com carros sem motoristas? Para piorar,
as típicas profissões de classe média também são passíveis de
substituição por máquinas, e até a medicina poderia ser exercida por “um
médico-robô controlado por IA que poderia dar diagnósticos corretos,
perfeitos ou quase perfeitos” (p. 102).
A
duração das empresas vem caindo de 60 anos para menos de 20. Segundo
Klaus Schwab, a economia atual é significativamente diferente por
prescindir de um grande número de trabalhadores, de pouco trabalho, de
pouco capital financeiro e de muito capital intelectual, isto é, a
capacidade de ter novas ideias e impedir que as empresas pereçam em meio
à mudança constante. O dono do negócio demite os trabalhadores – seja
ele o do chão de fábrica substituído por robôs ou o advogado substituído
por inteligência artificial –, mas mantém um geniozinho capaz de ter
ideias importantes para salvar a empresa, isto é, mantê-la competitiva
num mundo de eterna instabilidade.
O
resultado disso seria uma massa de desempregados e uma meia dúzia de
reis. O fim da classe média, na verdade. Mas mesmo antes dessa automação
generalizada, “atualmente, um trabalho de classe média não garante mais
um estilo de vida de classe média; e nos últimos 20 anos as quatro
características tradicionais da classe média (educação, saúde,
aposentadoria e casa própria) tiveram um desempenho pior que a inflação.
[…] Uma economia de mercado em que o vencedor leva tudo, à qual a
classe média tem cada vez menos acesso, pode transformar-se lentamente
em mal-estar e abandono democrático, agravando os desafios sociais” (p.
96).
Para
dar uma dimensão da coisa, dou o número da pesquisa citada por ele,
“The Future of Employment”, de Carl Benedict Frey e Michael Osborne: “A
pesquisa concluiu que cerca de 47% do emprego total nos EUA está em
risco; algo que poderá ocorrer em uma ou duas décadas, sendo
caracterizado por um escopo muito mais amplo de destruição de empregos e
por um ritmo de alterações muito mais veloz do que aquele ocorrido no
mercado de trabalho pelas revoluções industriais anteriores. Além disso,
há uma tendência de maior polarização do mercado de trabalho. O emprego
crescerá em relação a ocupações e cargos criativos e cognitivos de
altos salários e em relação às ocupações manuais de baixos salários; mas
irá diminuir consideravelmente em relação aos trabalhos repetitivos e
rotineiros” (p. 44).
Klaus
Schwab reconhece o drama da situação prevista por ele: “É fundamental
que as pessoas acreditem que seu trabalho é importante para oferecer
apoio a si mesmas e às suas famílias, mas o que acontecerá se houver
demanda insuficiente para o trabalho, ou se as competências disponíveis
deixarem de coincidir com as demandas?” (p. 53).
Planificar o mundo por cima dos governos
Até
aí, poderíamos simpatizar com Klaus Schwab, já que ele aponta problemas
plausíveis. Estamos acostumados no Brasil a reclamar de leis
trabalhistas que impedem, por exemplo, de demitir cobrador ou frentista,
a falar que falta trabalhador qualificado etc. Mas e quando o emprego
qualificado também for automatizado? O mau médico vai alegar,
erroneamente, que seu trabalho é essencial; o bom médico, idem, mas
talvez não encontre ninguém disposto a pagar por ele. O cobrador, se
tivesse um lobby, talvez conseguisse encomendar uma pesquisa capaz de
apontar a redução de acidentes de trânsito. Mas ninguém liga; todos
querem uma passagem mais barata, uma consulta mais barata, tudo mais
barato. Talvez seja o caso de concluir que as democracias devam
reavaliar suas prioridades, sob pena de acabar todo mundo desempregado,
sendo servido por drones, vivendo como gado até talvez ganhar uma
eutanásia pública, gratuita, de qualidade, após solicitar o serviço por
meio de uma atendente robotizada de algum serviço social.
O
grande problema do livro, ao meu ver, é tratar tudo como inexorável – e
chamar para si a planificação do mundo. Como vimos, desde o começo ele
se autoincumbe a tarefa de guiar a revolução. As lideranças dos governos
não têm a competência necessária para tal. De fato, ele escreve qual
será o papel dos governos nesse novo cenário: a mera prestação de
serviços públicos. Acaba a soberania dos países.
“Os
governos devem […] se adaptar ao fato de que o poder também está
passando dos atores estatais para os não estatais e de instituições
estabelecidas para redes mais abertas”, diz à página 72. Na seguinte,
explica-se mais: “Estruturas paralelas [como o próprio WEF e as ONGs]
serão capazes de transmitir ideologias, recrutar seguidores, coordenar
ações a favor – e contra – os sistemas de governo oficiais. Os governos,
em sua forma atual, serão forçados a mudar à medida que seu papel
central de conduzir a política ficar cada vez menor devido aos
crescentes níveis de concorrência e à redistribuição e descentralização
do poder que as novas tecnologias tornaram possíveis. Cada vez mais, os
governos serão vistos como centros de serviços públicos, avaliados por
suas capacidades de entregar seus serviços expandidos de forma mais
eficiente e individualizada”. Por uma questão meramente técnica, os
governos estariam fadados a abrir mão dos cuidados com a soberania e a
deixar os assuntos sérios com entidades transnacionais. Mas em hora
nenhuma ele diz por que os cidadãos deveriam apartar a discussão
ideológica da discussão do governo. Eu devo aderir à ideologia da
Planned Parenthood só por ela ser “mais capaz” do que as organizações
partidárias brasileiras?
Numa
coisa ele tem razão: existem entidades transnacionais distintas do WEF e
das ONGs que todos queremos combater. A Al-Qaeda inaugurou esse tipo de
problema. Creio que John Gray tenha sido o autor mais sucinto e
convincente a descrever os problemas de segurança internacional causados
por essa nova realidade: em Missa Negra (2008), ele aponta o fato de
que é perfeitamente possível um desses grupos terroristas praticar
ataques nucleares, coisa que era monopólio estatal durante a Guerra
Fria. Klaus Schwab tem isso em mente, cita o Isis como exemplo. E fala
muito de segurança internacional. Ou seja, ele de fato se preocupa com o
assunto; não é que ele tenha esquecido o assunto ao tratar do Estado.
Essa importante atribuição saiu das mãos do governo.
Mas
não temos nada a ver com a Al-Qaeda, nem com o Isis. A maior ameaça à
nossa soberania é justamente a plêiade de ONGs que desempenha papel de
Estado. É bom que se diga que ONG abrevia “organização não-estatal”, o
que é o mesmo que organização privada. Privada e, naturalmente, não
eleita. Klaus Schwab não está nem aí para a democracia.
O cenário que se desenha
Klaus
Schwab fala de muitas coisas, algumas das quais de deixar os cabelos em
pé (como comercialização de bebês geneticamente desenhados e impressão
em 3D de seres vivos). Quem tiver interesse pelas inovações científicas
planejadas precisa ler o livro, pois não posso resumir.
De
um modo geral, o cenário que se desenha é o do fim da classe média, do
fim dos pobres, do fim da propriedade privada para a esmagadora maioria
da população. Esta ficará na mão de uma elite tecnocrática cheia de
robôs. Naturalmente, ninguém tende a gostar muito desse cenário, então é
preciso edulcorá-lo com narrativas. Estas devem tornar desejável ou
aceitável essa nova realidade de imensa concentração de propriedade e
espoliação generalizada. Somando-se este ideário a uma falta de noção,
explica-se por que o WEF promoveu o slogan “you will own nothing and be
happy”, você não será dono de nada e vai ser feliz. Resta saber por que
essa elite, esses Übermenschen, manteriam tantos humanos inúteis a troco
de nada. Assim, não é de admirar que sejam neomaltusianos e promovam o
aborto e a castradora ideologia de gênero mundo afora. Tampouco é de
admirar que já estejam expandindo a eutanásia para doentes mentais – e
Klaus Schwab menciona algumas vezes que saúde mental é um problema desta
nova revolução. O cidadão comum estará desamparado. O seu país, por
razões tanto econômicas quanto ideológicas, não vai peitar essa elite de
jeito nenhum. O governo foi diminuído e absorvido por ela.
No
mais Klaus Schwab fala muitas vezes sobre o efeito da vigilância para
deixar as pessoas mais obedientes. Assim, encerro este texto citando o
quadro “Bem estar e as fronteiras da privacidade”, à página 106.
“Bem estar e as fronteiras da privacidade”
“O
que está acontecendo atualmente com os dispositivos vestíveis nos dá
uma noção da complexidade da questão da privacidade. Um número crescente
de companhias de seguros tem pensado em fazer a seguinte oferta aos
seus segurados: se você usar um dispositivo que monitora o seu bem-estar
– quanto você dorme e faz exercícios, o número de passos que dá todos
os dias, o valor e o tipo de calorias que consome etc. – e se concordar
que essas informações possam ser enviadas para seu provedor de seguros
de saúde, ofereceremos um desconto em seu prêmio. Será que devemos dar
boas-vindas a esse avanço porque ele nos motiva a viver vidas mais
saudáveis? Ou ele toma um rumo preocupante a um estilo de vida em que a
vigilância – do governo e das empresas – irá tornar-se cada vez mais
intrusiva? No momento, esse exemplo refere-se a uma escolha individual –
a decisão de aceitar ou não usar um dispositivo de bem-estar. Mas
insistindo nisso mais uma vez, suponhamos que agora o empregador peça
que todos os seus funcionários usem um dispositivo que envia dados
relativos à saúde para a seguradora, porque a empresa quer melhorar a
produtividade e, possivelmente, diminuir seus custos com os seguros de
saúde. E se a empresa exigir que seus funcionários mais relutantes
aceitem o pedido ou paguem uma multa? Então, o que anteriormente parecia
ser uma escolha consciente individual passa a ser uma questão de
conformidade com as novas normas sociais, mesmo que alguém as considere
inaceitáveis”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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