MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 30 de janeiro de 2022

A paranoia da "covid zero"

 



A China mostra como o fanatismo na saúde pública pode se tornar perigoso. Brendan O'Neill para a Spiked, com tradução para a Oeste:


Imagine uma nação em tamanho estado de sofrimento que seus cidadãos foram reduzidos a fazer escambo de alimentos. Uma nação em que as mulheres estavam tão desesperadas para ter algo para cozinhar que começaram a trocar absorventes por vegetais. Uma nação em que famílias estavam com tanta fome que trocavam cigarros por repolho. Esse país na verdade existe. E não é uma das nações pobres, às vezes famintas, do sul global. É a China. Mais precisamente, a China sob a política da “covid zero”. Se você quiser ser testemunha do inferno da “covid zero”, a insanidade distópica de submeter todos os aspectos da vida à cruzada contra o coronavírus, basta olhar para o país onde o vírus surgiu.

O escambo por comida e outros itens básicos está ocorrendo na cidade de Xi’an, noroeste da China. Houve um aumento de infecções por covid-19 na comunidade de Xi’an, e as autoridades reagiram com um feroz autoritarismo. Em 23 de dezembro, 13 milhões de pessoas foram confinadas em casa. Inicialmente, elas só podiam sair a cada dois dias para comprar alimentos, mas até mesmo esse vestígio mínimo de liberdade foi eliminado em 27 de dezembro. A partir de então, a população de Xi’an ficou literalmente em prisão domiciliar. Eles não podiam sair de seu local de residência por nenhum motivo, nem mesmo para comprar comida. Sim, 13 milhões de pessoas confinadas em casa. Se colocassem o pé para fora, corriam o risco de ser presas.

Para lidar com a questão bastante séria de que as pessoas ficariam muito doentes se não se alimentassem, as autoridades de Xi’an organizaram a entrega de itens essenciais na porta dos cidadãos. Os residentes reclamaram de não receber alimentos suficientes. Outros disseram que não receberam nenhum auxílio. Eles recorreram à rede social Weibo para compartilhar imagens e vídeos de si mesmos trocando gêneros alimentícios. Em um clipe, um homem desesperado oferece um console de Nintendo em troca de macarrão instantâneo e pães cozidos no vapor. Outro oferece detergente para louça em troca de maçãs. As pessoas “não têm mais o suficiente para comer”, contou um morador de Xi’an à Rádio Free Asia. Outro disse que Xi’an vive um “retorno à sociedade primitiva”.

Não é apenas Xi’an que está sofrendo sob a opressão da “covid zero”. O 1,2 milhão de residentes da cidade de Yuzhou, na Província de Henan, foram colocados em lockdown depois que três infecções por covid-19 foram descobertas. Infecções assintomáticas, aliás. As regras são severas. Todo o transporte público foi suspenso. Foi proibido dirigir. Todas as escolas, todos os comércios e espaços de entretenimento foram fechados. Por sorte, diferentemente dos cidadãos cativos de Xi’an, os moradores de Yuzhou puderam ir a lojas que forneçam “itens da vida cotidiana”. Isto é, eles tinham permissão para comprar comida. E só. Sob a “covid zero”, você pode comer, e nada mais. Você pode sustentar seu corpo, mas todos os outros aspectos da vida humana — educação, socialização, lazer, trabalho, protesto — são negados. Tudo está implacavelmente subordinado à saúde pública. A vida está despida de todas as coisas que a fazem valer a pena; apenas a preservação corporal é permitida.

E pobres dos cidadãos chineses que se manifestarem contra a tirania da “covid zero”. Em uma assustadora repetição da era maoísta, a humilhação pública voltou. Surgiram imagens da polícia na cidade de Jingxi, no sul da China, desfilando com supostos criminosos da covid pelas ruas. Quatro pessoas em trajes de proteção e máscaras foram conduzidas em marcha por policiais por uma área da cidade, enquanto os demais observavam. Todos os quatro tinham cartazes pendurados no pescoço com seu nome e uma foto de seu rosto. Sua suposta infração foi ajudar pessoas a atravessar a fronteira da China — o crime mais grave no país da “covid zero”. O objetivo dessa humilhação, nas palavras da CNN, era conscientizar sobre “crimes ligados à fronteira” e encorajar “a conformidade da população com a prevenção à epidemia e as medidas de controle”. Talvez sair de casa para participar em sessões de “Dois Minutos de Ódio” contra criminosos da covid logo seja permitido em Xi’an? Qualquer espécie de alívio para os nove dias sombrios em que a população local ficou confinada com certeza será bem-vinda. (Ver vídeo no Twitter).

De alguma forma, essas restrições implacáveis e misantropas são exclusividade da China. Claro, trata-se de um país autoritário — a maioria de seus governantes tem poucos escrúpulos de privar as pessoas de suas liberdades mais básicas. Além disso, o Partido Comunista Chinês tem sua reputação a zelar. Como o jornal britânico The Guardian relata, pelos últimos 20 e tantos meses, a mídia estatal chinesa tem impulsionado a mensagem de que a disseminação da covid-19 em outros países se deve a uma “liderança fraca e às más decisões”. Abandonar a “covid zero” agora, e permitir a infecção da comunidade, ameaçaria a posição do presidente Xi e de sua administração. O mais preocupante de tudo, exatamente como resultado das políticas da “covid zero” — e também do fato de que suas vacinas não são tão eficazes quanto as produzidas no Ocidente —, a população da China tem baixo nível de imunidade contra a covid-19. Essa é a armadilha da “covid zero”, como a Austrália e a Nova Zelândia descobriram: no processo de proteger seus cidadãos contra a infecção, que é a justificativa dessas políticas de intolerância, você prejudica a capacidade biológica das pessoas de lidar com a covid quando ela inevitavelmente aparecer.

Mas, em outro sentido muito importante, a “covid zero” não é só uma “coisa chinesa”. Não, aqui no mundo ocidental supostamente livre, diversos especialistas e observadores fizeram lobby abertamente por políticas de “covid zero”, pela submissão da liberdade e das alegrias da vida a um programa para garantir que a covid-19 nunca mais se instale na nossa sociedade. No último ano, a “covid zero” se tornou um pouco como o slogan do movimento “Defund the Police” (ou “Cortem o Orçamento da Polícia”, em tradução livre), em que as pessoas que fizeram essa reivindicação agora negam que de fato fosse isso que estivessem pedindo. Assim como os apoiadores do “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”), na mídia dizem que “Não queríamos acabar com os recursos da polícia de verdade, você só não entendeu as nuances do nosso posicionamento”, os lobistas da “covid zero” no Reino Unido e em outros locais insistem que, na realidade, não queriam impor restrições tão severas para que os casos de covid fossem reduzidos a zero. Mas o fato é que queriam, sim.

Aliás, vale lembrar que diversos especialistas britânicos elogiaram a reação assustadora da China à covid-19. O professor Neil Ferguson, do Imperial College London, afirmou que seus colegas e ele nunca acharam que poderiam “chegar tão longe” quanto às implacáveis políticas que a China impôs no início de 2020. “E então a Itália o fez. E nós nos demos conta de que podíamos fazer também”, disse Ferguson. A professora Christina Pagel, a onipresente fatalista, murmurou que a China está “levando sua abordagem para a covid muito a sério”, quando foi revelado que os chineses tinham construído um centro de quarentena de 5 mil quartos para aqueles que chegavam do exterior. “A China tem um sistema coletivo e socialista… não uma sociedade individualista, voltada para o consumo e movida pelo lucro muito prejudicada pelos últimos 20 anos de políticas econômicas neoliberais”, a professora Susan Michie tuitou em março de 2020. Para reforçar sua mensagem, ela incluiu a hashtag #LearnLessons (#AprendamAsLições, em tradução livre). Ou seja, o Reino Unido deveria aprender com a China. Michie é uma das conselheiras do Sage — o grupo de cientistas que está prestando consultoria para o governo britânico durante a crise da covid-19. Qualquer um que duvide de que a liberdade está em situação precária só precisa considerar o fato de que uma fã do “sistema” chinês tem aconselhado o governo inglês no decorrer dessa terrível pandemia.

A verdade é: se tivéssemos seguido as recomendações dos fanáticos britânicos da “covid zero”, estaríamos em uma situação semelhante à da China agora. Teríamos aceitado que nada é mais importante que evitar a infecção do novo coronavírus. Teríamos reorganizado a sociedade de tal forma que a saúde fosse preservada em detrimento da vida — em detrimento da educação, da interação humana, do direito de andar do lado de fora da sua porta. Fizemos isso por alguns períodos, claro, durante diversos lockdowns. E gerações futuras com certeza vão olhar para trás e se perguntar por que nós, no Ocidente supostamente liberal, copiamos, por franca admissão de Ferguson, as políticas do Partido Comunista Chinês. Mas, por ora, enquanto lemos sobre os apuros desesperadores em que as boas pessoas de Xi’an se encontram, vamos lembrar que temos nossos próprios fanáticos da “covid zero”, e que suas políticas tresloucadas teriam nos colocado em uma situação similarmente distópica. Isso me assusta mais do que a covid-19 em si. Devolver a liberdade a seu devido lugar — como a característica mais importante da nossa sociedade — será a principal tarefa de 2022.

Brendan O’Neill é o repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast The Brendan O’Neill Show. 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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