A
Organização Mundial da Saúde (OMS) se manifestou nesta semana sobre o
“passaporte de imunidade”, ideia que vem ganhando força à medida que a
vacinação avança no planeta: trata-se da permissão para pessoas que já
tiveram Covid-19 ou já receberam as doses recomendadas de alguma vacina
voltem à vida normal – e também da permissão para que turistas nas
condições acima entrem no (ou saiam do) país. Ou seja, quem estiver
imunizado pode voltar a circular livremente. Não parece uma boa medida?
Israel,
por exemplo, já usa o passaporte há meses: pessoas vacinadas ou que
tenham se recuperado totalmente da doença recebem um certificado que
lhes permite frequentar hotéis, academias e teatros. Outros países
europeus – como a Dinamarca, a Suíça e a Noruega – planejam criar um
documento digital que permita viajar para países vizinhos, a partir de
junho deste ano.
Particularmente
em países cujas economias dependem fortemente do turismo, o passaporte
de imunidade está longe de resolver a crise provocada pela pandemia, mas
representa uma luz no fim do túnel, uma vez que permite a volta ao
trabalho de pessoas que viram sua renda despencar e estão sobrevivendo
sabe-se lá como, diante da prorrogação periódica das políticas de
isolamento social como forma de prevenção à circulação do vírus.
Pois
bem, a manifestação da OMS foi, vejam só, contrária ao passaporte, por
dois motivos – um razoável, mas preocupante; o outro absurdo e
assustador, mas típico da escalada de insanidade que estamos vivendo.
A
primeira justificativa da OMS para se opor a adoção do passaporte e
imunidade é a incerteza em relação a uma questão básica: pessoas já
vacinadas continuam transmitindo o vírus? Isso mostra como, apesar de
todos os avanços e conquistas dos médicos e cientistas, ainda
permanecemos ignorantes sobre aspectos essenciais da Covid-19. Porque a
resposta a essa questão muda tudo, não? Pelo menos para mim, que não sou
médico nem cientista, o fato de a ciência ainda não ter essa resposta
básica é altamente preocupante.
A
universalização da vacinação é hoje a maior aposta da humanidade para
sair do caos em que mergulhou desde o surgimento do vírus. O que a OMS
está dizendo – reforçando uma informação que vem circulando há algum
tempo na mídia, mas de forma vaga – é que quem toma a vacina se imuniza
(provavelmente), mas pode continuar transmitindo o vírus por aí. Mas a
OMS não é categórica, ela está apenas fazendo uma confissão de
ignorância: nem ela nem ninguém tem convicção ou opinião formada sobre o
assunto.
Ou
seja, por urgente e necessária que seja, a vacinação pode estar longe
de ser a solução definitiva e rápida que se espera para a pandemia,
porque não temos sequer evidências científicas de que os vacinados podem
voltar à vida normal. É claro que isso pode se tornar um problema a
médio prazo, pois se daqui a seis meses ficar constatado que as vacinas
são ineficazes para impedir a circulação do vírus, sobretudo em suas
novas cepas e variantes, a frustração será imensa, com a consequente
perda da fé das pessoas na ciência, na mídia e nas autoridades – esse
processo de erosão de confiança, aliás, já está em curso.
Mas ok, este é ao menos um motivo racional para a OMS se declarar contrária ao passaporte.
Já
a segunda justificativa da OMS para se opor ao documento é, nas
palavras da porta-voz da entidade, Margaret Harris, “a questão da
discriminação contra as pessoas que não podem receber a vacina por uma
razão ou outra”. A falta de acesso à vacina em países pobres e a
exigência do passaporte em viagens internacionais privilegiariam
americanos e europeus, o que é inadmissível. Ou seja, a OMS está
acusando o passaporte que pode salvar a vida de milhões de pessoas
(economicamente falando) de ser discriminatório e politicamente
incorreto: se não for para todo mundo, não pode ser para ninguém.
Segundo
a OMS, até que o acesso à vacina seja igualitário, a adoção do
passaporte não deve ser defendida. No Brasil, “especialistas” já estão
usando o mesmo argumento: passaporte só quando o SUS assegurar vacina
para todos – ou seja, quando o passaporte não for mais necessário... Um
especialista brasileiro também alega que liberar a circulação de parte
da população e restringir a circulação a outra parte é uma “ofensa aos
direitos humanos” (mas restringir a circulação a 100% das pessoas não é,
aparentemente).
Outros “especialistas” já classificaram o passaporte como um “instrumento de segregação e controle” e declararam o seguinte:
"Classificar
pessoas entre vacinadas ou não nos faz correr um grande risco de
discriminação, de ofender os direitos humanos. Estaremos dizendo que uma
pessoa tem mais direito que a outra por ter recebido a vacina antes e
isso trará uma insegurança muito grande para a sociedade";
"Não
é ético termos estabelecimentos e eventos exigirem um certificado de
vacinação para deixar apenas um grupo de pessoas entrar”;
"Só
podemos exigir um certificado desse tipo quando o sistema de saúde
conseguir assegurar a vacina para todos. Caso contrário, estaremos
criando barreiras de acesso ao emprego e serviços às pessoas que não
tiveram como se vacinar por falta de vacina".
Etc.
Ora,
seguindo esse raciocínio nenhuma pessoa, mesmo imunizada, estará
moralmente autorizada a voltar a trabalhar e viver enquanto houver
indivíduos que ainda não foram vacinados por falta de acesso à vacina. É
a tragédia da burrice igualitária, que aliás está por trás de muitos
outros fenômenos contemporâneos: a medida da moralidade pessoal hoje não
é analisar qualquer questão de forma racional, mas lacrar e bater no
peito ostentando virtude como justiceiro social, porque isso rende mais
audiência e reconhecimento dos pares. E vivemos uma época na qual a
audiência e o reconhecimento dos pares importam muito mais do que a
verdade e a razão.
Cancele-se, portanto, o passaporte da imunidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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