Humanos seriam mais felizes se imitassem a vida dos gatos, diz John Grey. Coluna de João Pereira Coutinho, via FSP:
Sou
um amante de gatos. Se a humanidade se divide entre amantes de gatos e
amantes de cachorros, pertenço ao primeiro time. O que gosto neles?
Exatamente o mesmo que detesto neles: o fato de serem tão diferentes de
mim, de você, de nós, humanos. Eu, perdido nas minhas ansiedades, não
consigo habitar o presente como eles o fazem. A minha cabeça oscila
entre o passado e o futuro, entre os erros e a mortalidade.
Os
gatos são imortais, se entendermos pelo conceito o que Wittgenstein
entendia por imortalidade: a ausência de tempo. Esse conceito não existe
para eles. Por isso são felizes, ou parecem felizes, repetindo os seus
rituais como se fosse a primeira vez.
Sou
amante de gatos, repito. Mas será que tenho alguma coisa a aprender com
eles? Será que os comportamentos felinos podem aliviar o peso da minha
mortalidade? O filósofo John Gray, em livro recém-publicado (Feline
Philosophy: Cats and the Meaning of Life), acredita que sim. E eu
agradeço-lhe o fato de me ter oferecido os sofisticados conceitos com
que abri a minha apologia dos bichos.
Como
escreve Gray, os gatos são “arquirrealistas”: a realidade, da qual não
duvidam nem procuram escapar, é suficiente para eles. Não para nós.
Conscientes e autoconscientes, sabemos do fim que nos espera. Que fazer?
O óbvio: se a realidade não é promissora, o melhor é escaparmos dela.
A
história das religiões ou a história da filosofia têm sido uma longa
tentativa de aliviarmos a nossa condição. Pela promessa da vida eterna,
ou pelo menos da tranquilidade possível (a “ataraxia” de que falavam os
gregos), preenchemos a realidade com ficções e simulacros.
Se
estivermos dispostos a aprender com os gatos, abandonaremos essas
ficções – e Gray oferece uma lista com conselhos felinos. Entre esses
conselhos, e por irônico que pareça, está a recomendação para nunca
levarmos a sério alguém que nos dá conselhos sobre a vida feliz. A
ironia escapou a Gray. Mas não foi apenas a ironia. Temo que também
tenha sido a coerência e a racionalidade, sobretudo quando o seu
anti-humanismo se revela.
Nada
de novo. Sou leitor de Gray há muitos anos e acompanhei o seu trajeto
intelectual: do liberalismo clássico para o pluralismo (via Isaiah
Berlin), até chegar a esse quietismo zen que atribui os males do mundo
às ilusões do ego. Pelo caminho, perdeu-se a sutileza e o rigor
filosóficos. Um exemplo: se a natureza humana, que para Gray é
irredimível, se define por essa busca de sentido para a existência, como
argumentar, ao mesmo tempo, que os homens tentam escapar à realidade na
busca de um sentido para a existência?
Logicamente,
se aquilo que define e enobrece os gatos é eles serem como são, o mesmo
pode ser dito sobre os humanos: a nossa sede de conhecimento, de
beleza, de justiça ou de fé é a expressão genuína da nossa humanidade.
Não é uma fuga, muito menos um defeito que é preciso extinguir. Nessa
sede pode existir sofrimento, ansiedade, miséria e até ruína. Mas pode
existir também literatura, arte, amor, aventura. E, quem sabe, talvez
felicidade.
Além
disso, ainda está por demonstrar que os homens seriam mais felizes se
abandonassem a sua natureza e seguissem a vida bestial dos gatos. Basta
olhar para algumas das recomendações de Gray no fim do ensaio. “Nunca
tentes persuadir os seres humanos a serem razoáveis.” “Não procures um
sentido no sofrimento.” “É preferível ser indiferente aos outros do que
sentir que devermos amá-los.” Pessoalmente, posso concordar com alguns
desses pensamentos, sobretudo com o último. Mas o que funciona para mim
pode não funcionar para o meu vizinho, porque essa é uma lição que Gray
já conheceu um dia: a lição do pluralismo.
Será
que Gray não entende que apresentar a vida dos gatos como o modelo
supremo a imitar é uma rendição ao pensamento dogmático que ele passou a
carreira a combater? Depois da ruína do nazismo, Heidegger afirmou: só
um Deus nos pode salvar. John Gray substituiu esse altar divino por um
altar felino. Triste consolação.
Sou
um amante de gatos, sim. Há momentos em que invejo aquele
autocontentamento fora do tempo, deplorando o nosso calcanhar de
Aquiles: a consciência da mortalidade. Mas é preciso lembrar, ó
filósofos felinos, que era precisamente o calcanhar que tornava Aquiles
humano.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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