Ao derrubar monocraticamente uma decisão de tribunal superior para favorecer políticos bolsonaristas, Nunes Marques aprofunda a politização do Judiciário. Editorial do Estadão:
A
narrativa oficial bolsonarista sustenta que o Supremo Tribunal Federal
(STF) é um órgão aparelhado por facções políticas minoritárias que
ultrapassa sistematicamente as “quatro linhas” da Constituição para
impedir que o povo, encarnado no presidente Jair Bolsonaro, exerça sua
vontade. Na prática, o verdadeiro incômodo de Bolsonaro é que o Supremo
não esteja – ainda – aparelhado pela sua facção para exercer a sua
vontade pessoal.
Poucas
vezes o presidente se exprimiu de maneira tão cristalina a respeito
desse desejo como quando indicou Kassio Nunes Marques para o Supremo. O
novo ministro era confiável porque havia “tomado tubaína” com o
presidente, numa demonstração inequívoca de amizade – e, como enfatizou
Bolsonaro, “a questão da amizade é importante, né?”. Na posse de Nunes
Marques, não deixou margem a dúvidas: “Hoje, eu tenho 10% de mim no
STF”.
Por
isso, não surpreende que a encarnação de Bolsonaro no Supremo atue como
se fosse o presidente em pessoa. Em decisão monocrática, o ministro
Nunes Marques derrubou as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
que cassaram os mandatos de dois aliados de Bolsonaro: o deputado
estadual Fernando Francischini (União Brasil-PR) e o deputado federal
José Valdevan (PL-SE).
Ainda
que ministros do Supremo possam ter essa prerrogativa, não deixa de ser
afrontosa a anulação monocrática de decisões colegiadas de um tribunal
superior, ainda mais quando o placar é 6 votos a 1, no caso de
Francischini, e por unanimidade, no caso de Valdevan. O protocolo
institucional demanda que casos assim sejam levados ao colegiado do
Supremo.
Mais
acintosas são as questões de mérito. Segundo o TSE, Francischini
infringiu a LC 64/90, por uso indevido dos meios de comunicação e abuso
de poder político, ao afirmar em uma live que urnas fraudadas não
estavam aceitando votos em Bolsonaro. Como agravante, a mentira,
claramente voltada a tumultuar o processo eleitoral e manipular o
eleitorado, foi dita no dia do 1.º turno das eleições de 2018.
Já
Valdevan teve seu mandato cassado pelo Tribunal Eleitoral Regional
(TRE) de Sergipe por ter prestado contas de apenas R$ 353 mil dos R$ 551
mil gastos em campanha. O TSE confirmou a decisão, e a perda do mandato
foi declarada pela Câmara.
No
caso de Francischini, Nunes Marques alegou que a internet não pode ser
equiparada aos “meios de comunicação” de que fala a lei. No caso de
Valdevan, alegou que não houve a publicação do acórdão do TSE. Ainda que
a tecnicalidade fosse sanável sem mais atritos, o TSE apenas confirmou a
decisão do TRE, que deveria permanecer vigente.
Por
óbvio, as argumentações são irrelevantes, meros pretextos para um voto
decidido de antemão. Bolsonaro obviamente não perdeu a deixa: repetiu as
mentiras de Francischini e voltou a fazer acusações superlativas e
infundadas ao TSE.
Não
foi a primeira vez que Marques fez contorcionismos em nome de seu
princípio exegético peculiar: a lealdade a Bolsonaro. Fez o mesmo ao
julgar improcedente a ação contra o deputado bolsonarista Daniel
Silveira; ao liberar cultos religiosos presenciais no auge da pandemia;
ao interromper os julgamentos de decretos que facilitaram a compra de
armas; ao decidir reiteradamente contra a CPI da Covid; ou ao negar a
prerrogativa dos Estados de determinar a obrigatoriedade de vacinas
contra a covid.
“Quem
me conhece sabe que não me inibo com nada”, declarou Nunes Marques, em
altercação com outro ministro, logo no início de seu mandato. “Para os
que não me conhecem, ainda têm um pouco mais de 26 anos para me
conhecer”, disse, referindo-se ao longo tempo que lhe resta até a
aposentadoria como ministro do Supremo. De fato, o ministro, pouco
conhecido até Bolsonaro alçá-lo à Suprema Corte, mostra que não se inibe
com nada – nem com a Constituição, nem com as liturgias comezinhas do
Judiciário, nem mesmo com o imperativo do bom senso. Mas não serão
necessários 26 anos para conhecê-lo. Bastou pouco menos de um para que
mostrasse quem é: um fiel despachante de Jair Bolsonaro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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