Em artigo publicado pelo Instituto Liberal, Victor Cezarini disseca dois papers de Friedrich Hayek sobre o tema:
“Decidi
escrever esse artigo em memória ao meu amigo e colega de Mestrado em
Economia na Universidade de São Paulo, Gabriel Oliva. Em 2019, ele nos
deixou precocemente aos 29 anos de idade devido a um câncer de estômago
quando cursava o Phd em Economia na Universidade de Duke. Gabriel foi a
pessoa mais inteligente e brilhante que conheci; além de ser um gênio na
matemática, destacava-se dos demais alunos da turma por possuir
extraordinário conhecimento da evolução do pensamento econômico,
filosofia e história econômica. Gabriel tinha grande apreço pela Escola
Austríaca de Economia e foi por influencia dele que eu tive interesse em
começar a ler as obras de Hayek. Gabriel tinha um futuro brilhante e
promissor, foi uma perda incalculável para todos nós.”
Este
artigo tem como objetivo ser uma síntese de dois papers publicados pelo
economista Friedrich Hayek, Prices and Production e The Monetary Theory
and the Trade Cycle, nos anos de 1931 e 1932, respectivamente. Ambos
são derivados de seminários realizados na London School of Economics
(LSE) alguns anos antes da publicação. Hayek, que até 1930 lecionava na
Universidade de Vienna, após esses seminários foi convidado a ser
professor na LSE, cargo que permaneceu até 1950, quando depois foi para a
Universidade de Chicago.
Em
seus escritos, Hayek inicia tecendo uma crítica à Teoria Quantitativa
da Moeda, estabelecida pelo economista Irving Fischer, que buscava
relacionar o nível de preços médio com a quantidade de dinheiro na
economia. Por meio de uma equação simples M*V = P*Y, a teoria de Fischer
dizia que a multiplicação da quantidade de dinheiro (M) pela velocidade
de circulação (V) deveria ser igual à multiplicação do nível de preços
(P) pelo produto real da economia (Y). Como, no curto prazo, a
velocidade de circulação da moeda não se altera e o produto real é
constante, a única explicação para um aumento repentino nos preços só
pode ser dada pelo aumento da quantidade de moeda.
Hayek
não nega que um aumento da quantidade de moeda afeta positivamente o
nível geral de preços e também não nega que a Teoria Quantitativa da
Moeda (TQM) pode ser utilizada para explicar o aumento no nível médio
dos preços na economia. Contudo, sua crítica à TQM reside no fato de que
ela usurpa totalmente o problema central da Teoria Monetária, isto é,
se resume a dizer que a única contribuição que Teorias Monetárias têm
para Ciência Econômica é explicar o porquê do aumento ou da redução no
nível geral de preços.
Para
Hayek, Teoria Monetária é muito mais ampla do que isso: o efeito que o
aumento da quantidade de moeda tem no nível geral de preços é apenas um
campo a ser abordado, dentre diversos outros. Em primeiro lugar, Teorias
Monetárias não devem ter como foco “níveis gerais de preços” ou “nível
médio de preços”, mas sim quais são os efeitos de uma expansão monetária
sobre os preços relativos e como eles afetam a estrutura produtiva da
economia. De fato, se todos os preços subissem de forma idêntica, não
haveria alteração nenhuma na produção real e o problema monetário
estaria completamente resolvido, mas, claramente, não é isso o que
acontece.
De
acordo com Hayek, os efeitos de um aumento da oferta de moeda na
economia dependem fundamentalmente da forma como ele é realizado no
sistema. Os efeitos serão totalmente diferentes se a injeção de dinheiro
for realizada diretamente aos bancos comerciais ou por meio de crédito a
empresas, por meio de aumentos ao funcionalismo público ou até mesmo
pela descoberta de uma mina de ouro (na época, o padrão ouro era o
usual).
Uma
expansão monetária, em geral, beneficia alguns e prejudica outros; os
maiores beneficiados são os que estão mais “próximos” do novo dinheiro
injetado no sistema. No caso da descoberta de uma mina de ouro, os
principais beneficiados serão os que descobriram a nova mina, depois as
pessoas que fornecem bens e serviços próximo a mina, depois os
fornecedores dos fornecedores e assim por diante. No caso da injeção de
dinheiro para empresas, os maiores beneficiados serão os empresários que
comandam as empresas que receberam o novo dinheiro, depois os
fornecedores e credores dessas empresas, e assim por diante. No caso de
injeção por meio dos bancos comerciais, os principais beneficiados serão
os banqueiros e por aí vai. À medida que o novo dinheiro vai se
dissipando na economia, os preços vão aumentando e aqueles que estão
mais “longe da fonte” terão sua renda corroída pelo aumento de preços e
serão os maiores prejudicados.
Portanto,
fica claro que o problema de injeção de dinheiro na economia não é
somente seu efeito no “nível geral preços” ou no “nível médio de
preços”. Pelo contrário, a injeção de dinheiro afeta o preço relativo
entre os bens, serviços e fatores de produção da economia, transferindo
renda de algumas pessoas para outras, de forma complexa e pouco
previsível.
A
definição de “taxa de juros natural” para Hayek também é diferente das
teorias convencionais; enquanto nas últimas, em geral, a taxa de juros
natural é aquela que permite estabilidade no nível de preços, para Hayek
a “taxa de juros natural” é aquela cobrada pelos bancos em uma economia
onde a oferta de moeda é fixa e não existe multiplicador monetário.
Porém, observe que, em uma economia que apresenta crescimento econômico,
se a oferta de moeda é fixa, a tendência natural dos preços é cair.
Portanto, ou a taxa de juros fica no nível “natural” ou fica em um nível
que permite aos preços ficarem estáveis – os dois ao mesmo tempo é
impossível.
Dessa
forma, para que haja estabilidade de preços em uma economia em
crescimento, é necessário injeção de dinheiro novo, o qual pode ser
feito por meio da expansão de crédito pelos bancos comerciais ou emissão
monetária pelo Banco Central. Em ambos os casos, o efeito do aumento da
oferta de moeda na economia dependerá fundamentalmente da forma como
ele será realizado (se será na conta corrente dos indivíduos,
empréstimos para empresas, liquidez aos bancos, etc.) e isso terá
influência sobre os preços relativos e na estrutura produtiva. Portanto,
temos aí uma outra importantíssima conclusão da Teoria Monetária em
Hayek: mesmo com os preços estáveis, é possível que ocorram distorções
na economia causada por fatores monetários – algo totalmente contrário
às teorias monetárias convencionais, as quais defendem que basta ter
estabilidade de preços para que seja eliminada qualquer disfunção
causada pela expansão monetária.
A
estrutura produtiva da economia, isto é, a forma como as empresas se
organizam e como os produtos são produzidos, depende principalmente da
estrutura de preços. Uma empresa só existe se a estrutura de preços que
ela enfrenta, como preço de clientes, fornecedores, credores, etc.,
permitir que ela apresente lucro e rentabilidade positiva durante
determinado período de tempo. Já a estrutura de preços depende do padrão
de consumo da sociedade. Caso haja uma mudança no padrão de consumo da
sociedade, os preços se alteram e a forma como as empresas se organizam
terá de ser revista, isto é, ocorrerá uma mudança na estrutura produtiva
da economia.
Hayek
introduz um conceito curioso, o qual ele chama de “método mais (ou
menos) capitalista de produção”. Em linhas gerais, um método mais
capitalista de produção significa um método que exige mais recursos e
mais tempo, mas que no final das contas permite produzir mais bens e
serviços e/ou bens e serviços de melhor qualidade. A transição de um
método menos capitalista de produção para um mais capitalista ocorre de
forma suave e efetiva caso haja um aumento voluntário da poupança por
parte dos indivíduos. Se as pessoas diminuem seu consumo e aumentam a
sua poupança, há mais recursos disponíveis para investimentos. Esses
recursos podem ser disponibilizados para as empresas, que os utilizam
para investir e aumentar sua estrutura, isto é, adotam um método mais
capitalista de produção. Toda essa transição é guiada pela mudança na
estrutura de preços da economia, que se comporta de forma a deixar
rentável e lucrativo investimentos que antes não eram.
Uma
expansão monetária realizada, por exemplo, por meio de um aumento da
oferta de crédito às empresas, tem um efeito inicial similar ao aumento
voluntário da poupança. Com mais crédito, as empresas são estimuladas a
realizar novos investimentos, a aumentar a sua estrutura produtiva e a
adotar um método mais capitalista de produção. Inicialmente, a estrutura
de preços na economia se comporta como se tivesse ocorrido um aumento
real da poupança. Contudo, há uma diferença fundamental entre os dois
exemplos: enquanto no primeiro houve um prévio aumento da poupança para
financiar os novos investimentos, no segundo não houve. Enquanto no
primeiro a transição para um método mais capitalista de produção ocorreu
de forma voluntária, no segundo ela ocorreu de forma forçada. Se
ocorreu de forma forçada, a tendência é que a nova estrutura de preços
não seja sustentável no longo prazo. Portanto, quando a expansão
monetária cessar, a estrutura de preços voltará a seu padrão antigo,
todos os investimentos realizados mostrarão que na verdade não eram
rentáveis e as empresas terão de rever toda a forma de organização da
produção, vendendo ativos, encurtando o processo e voltando a um método
menos capitalista de produção. Esse retorno inevitável a um método menos
capitalista é representado por uma crise econômico-financeira.
Toda essa explicação pode ser realizada de forma mais didática e ilustrativa em um simples exemplo:
“Imagine
uma ilha onde vivem cinco pessoas, cada uma delas detém a propriedade
de três coqueiros que geram dois cocos por dia cada. Além disso, cada
pessoa tem a habilidade de pescar um peixe por dia. Nessa economia, o
consumo de cada pessoa é equivalente a seis cocos e um peixe por dia.
Essa alimentação é de certa forma desbalanceada, já que é muito coco
para cada pessoa, porém pouco peixe.
Uma
das pessoas que vivem na ilha chama-se “Empreendedor”. Um belo dia,
Empreendedor tem uma ideia de montar uma ferramenta de pesca que
permitirá aumentar o número de peixes pescados. Na verdade, ele tem duas
ideias; ambas consistem de uma ferramenta de pesca, porém a primeira é
uma ferramenta menos capitalista, exige menos madeira e permite pescar
três peixes por dia. A segunda é uma ferramenta mais capitalista, exige
mais madeira, mas permite pescar dez peixes por dia.
Empreendedor
apresenta seu projeto para as outras quatro pessoas da ilha, todas
gostam muito e se mostram dispostas a financiá-lo. Então, Empreendedor,
entusiasmado com o projeto e com o apoio recebido, faz as contas e
descobre que para montar a ferramenta menos capitalista seria necessária
uma quantidade de madeira equivalente a cinco coqueiros, enquanto para a
ferramenta mais capitalista seria necessária uma quantidade de madeira
equivalente a dezesseis coqueiros.
Portanto,
para montar a ferramenta menos capitalista basta que Empreendedor
utilize um dos seus coqueiros e consiga mais um de cada um dos quatro
demais habitantes da ilha. É verdade que, durante um tempo, o consumo
das pessoas será reduzido de seis cocos por dia para apenas quatro cocos
por dia, mas, após esse período, cada um terá três peixes por dia,
muito melhor do que apenas um. Além disso, no futuro, novos coqueiros
poderão ser plantados, fazendo com que, no final das contas, haja um
aumento no consumo de peixe e manutenção do consumo de coco. Será melhor
para todo mundo!
Já
para montar a ferramenta mais capitalista seriam necessários todos os
coqueiros da ilha mais um. Algo financeiramente inviável, porque não há
recursos suficientes na ilha para a construção, ou seja, não existe
poupança disponível para financiamento. Portanto, a construção da
ferramenta mais capitalista é descartada por todos os habitantes e
opta-se por financiar a construção da ferramenta menos capitalista.
De
acordo com Hayek, o que a expansão monetária faz é criar um tipo de
ilusão que leva os habitantes da ilha a acharem que a construção da
ferramenta mais capitalista é viável, mesmo com a quantidade de
coqueiros sendo insuficiente para financiar o investimento. Portanto,
esses investimentos não sustentáveis são realizados e, quando a
realidade vem à tona, já é tarde demais, criando uma crise
econômico-financeira de grandes proporções. No exemplo da ilha, teria
sido iniciada a construção da ferramenta de pesca mais capitalista sem
madeira suficiente para finalizar o projeto. As pessoas que antes viviam
com seis cocos e um peixe por dia vão acabar ficando sem coco e sem
peixes, mesmo com o Empreendedor agindo com as melhores de suas
intenções.”
Portanto,
para garantir condições saudáveis e sustentáveis da estrutura de
produção, é necessário que as decisões de consumo e poupança sejam
realizadas de forma espontânea e voluntária. A partir do momento em que
essas decisões voluntárias são distorcidas por algo artificial, como uma
expansão monetária, a estrutura produtiva, os investimentos realizados e
os recursos alocados passam a ser direcionados a um caminho equivocado e
um ajuste futuro, necessário para a correção da estrutura, se torna
inevitável. Hayek chama esse direcionamento equivocado da produção de
“malinvestments”.
Cabe
ressaltar que uma expansão monetária pode ser realizada de várias
formas. Ela pode ser realizada por meio da intervenção do Governo, como,
por exemplo, quando um Banco Central imprime dinheiro e injeta esses
recursos nos bancos comerciais, aumentando a liquidez do sistema
financeiro (é assim que funciona no Brasil nos dias atuais). O Banco
Central também pode optar por imprimir dinheiro e comprar dívidas de
empresas quebradas ou mesmo financiar o Tesouro Nacional; mas expansão
monetária não é gerada somente pela intervenção do Governo, o próprio
livre mercado pode ser causador dessa expansão. Por exemplo, em uma
economia onde se utiliza o padrão ouro, a descoberta de uma nova mina é
uma forma de expansão monetária. Além disso, os bancos comerciais
privados, ao emprestarem um montante de dinheiro superior ao valor
captado, por meio do multiplicador monetário, também provocam expansão
monetária.
De
acordo com Hayek, todas essas formas de expansão monetária são
“distorcivas”, independentemente de se o que as causou foi um ato de
intervenção governamental ou se foram ações corriqueiras de instituições
privadas competindo no livre mercado. Dessa forma, Hayek entende que os
bancos comerciais, ao utilizarem do multiplicador monetário, criam
ciclos de expansão e contração na economia, acelerando o crescimento
econômico em determinado período de tempo, mas que é corrigido em um
período seguinte. Logo, mesmo em uma sociedade totalmente liberal, que
adote uma moeda não controlada pelo governo (como, por exemplo, o ouro),
ciclos econômicos irão ocorrer e é impossível tentar impedir essa
dinâmica. Por outro lado, caso o governo atue tentando impedir esses
ciclos, como, por exemplo, por meio da impressão de dinheiro pelo Banco
Central para amenizar o período de contração, a única coisa que será
obtida é o adiamento e aprofundamento do ajuste necessário, o que pode
agravar ainda mais as crises financeiras sob o pretexto de preveni-las.
Além
disso, cabe ressaltar que as expansões monetárias provocadas pelos
bancos comerciais privados são muito mais limitadas do que as expansões
provocadas por um ato de intervenção governamental. Isso porque os
bancos comerciais não podem sair emprestando dinheiro sem limite
definido, pois estão submetidos a uma restrição de liquidez devido a um
volume periódico de saques em suas reservas. Já as expansões monetárias
provocadas por atos governamentais podem atingir limites exorbitantes,
dado que em tese não existe limite para a impressão de moeda fiduciária.
Portanto, de acordo com Hayek, quando ocorrem ciclos econômicos de
expansão e contração provocados pela expansão monetária por parte dos
bancos comerciais, o melhor que o Estado pode fazer no momento da
contração é não fazer nada. Isso porque a contratação é simplesmente um
ajuste da economia à sua estrutura produtiva natural. Se o Estado tentar
intervir por meio de uma nova expansão monetária visando a eliminar a
contração, na verdade o que ele estará fazendo é somente adiando um
ajuste inevitável, o qual virá mais forte e mais acentuado em um futuro
próximo.
Ao
chegar na parte final deste artigo, o leitor deve estar se perguntando:
“então, qual é o sistema monetário ideal proposto por Hayek?”.
Infelizmente, essa pergunta não é respondida em nenhum dos dois papers
publicados por Hayek no início da década de 30. Porém, ele nos deixa uma
reflexão interessante sobre o tema, em particular para o momento
econômico da época em que se discutia o abandono ou não ao padrão ouro.
Nos dias atuais, onde níveis de expansão monetária provocadas pelos
Bancos Centrais atingiram níveis nunca antes imagináveis, vale a pena
recapitular:
“Enquanto
nós não conseguirmos analisar de forma mais profunda os verdadeiros
problemas da teoria monetária, nem chegarmos a um consenso sobre as
questões teóricas mais essenciais, não estaremos em uma posição de
reconstruirmos drasticamente o nosso sistema monetário. Em especial, não
estaremos em uma posição confortável para substituir o padrão ouro de
ajuste semi-automático por uma moeda mais ou menos administrada
arbitrariamente por uma instituição governamental. Na verdade, temo que,
no estado atual do conhecimento, os riscos relacionados a tal tentativa
sejam maiores do que o possível dano causado pelo atual padrão ouro.”
(F.A. Hayek, Prices and Production, 1931)
*Victor
Cezarini é Graduado em Economia pela UFMG e Mestre em Economia pela
Universidade de São Paulo. Trabalhou nos Bancos de Investimento Brasil
Plural e Indusval & Partners, foi coordenador do diagnóstico
financeiro da equipe de transição do Governador Romeu Zema e atualmente
trabalha como Assessor de Desestatização no Governo de Minas Gerais./
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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