Autor
de livros de livros de sucesso para o leitor "comum", o britânico
Kieran Setiya explica como a filosofia pode ajudar a lidar com as
dificuldades da vida, tais como dores, luto e solidão. Entrevista a
Carlos Graieb, da Crusoé:
Todo
mundo sabe que a vida é dura. Em 2022, o filósofo britânico Kieran
Setiya decidiu fazer algo a respeito e escreveu um dos livros do ano
para as revistas The Economist e The New Yorker. Life is Hard (A Vida é
Dura) parte de problemas concretos como a dor crônica que aflige o
autor, a solidão experimentada por muitos durante a pandemia e o
fracasso pessoal em suas muitas manifestações e utiliza variadas
ferramentas filosóficas para descobrir como lidar com eles da melhor
maneira. O livro tem parentesco com as obras de autoajuda, mas não reduz
nada àquelas proverbiais “sete regras” ou “cinco passos”.
Esta
não é a primeira incursão de Setiya na “filosofia prática”. Ele
desenvolveu o método que aplica em Life Is Hard em 2017, quando
enfrentou uma típica crise de meia idade e, sendo filósofo, procurou uma
saída filosófica para os seus dilemas. Midlife (Meia Idade) tornou-se
um best seller e abriu novas perspectivas para o autor, que ensina no
departamento de filosofia do Massachussets Institute of Technology
(MIT), uma das mais renomadas universidades americanas, além de manter
um blog e um podcast populares.
Nesta entrevista a Crusoé, Setiya explica por que não se pode confundir uma boa vida com a felicidade.
Se a questão é enfrentar as dores do dia a dia, o que a filosofia pode oferecer que vai além da autoajuda?
A
autoajuda, de maneira geral, se preocupa com a felicidade individual,
com o “sentir-se bem”. Os grandes filósofos morais se interessam pelo
significado da boa vida. Fugir da realidade pode ser um caminho para ser
feliz. Mas você não dirá que alguém que ficou sempre mergulhado em
mentiras e fantasias teve uma boa vida. Há coisas que talvez precisem
mesmo ser dolorosas, como o luto pela perda de uma pessoa amada ou a
percepção das injustiças sociais. Viver bem significa enfrentar o mundo
como ele é. Dito isso, creio que alguns autores de autoajuda fazem
reflexões bem filosóficas. Oliver Burkeman, por exemplo, autor de Quatro
Mil Semanas: Gestão de Tempo para Mortais (Objetiva). Na superfície
esse é um livro sobre gerenciamento de tempo, mas acho que no fundo ele
trata da nossa finitude, de como lidar com o fato que somos mortais.
O senhor menciona pouco a religião em seu livro, embora grandes filósofos tenham explorado o assunto com profundidade. Por quê?
Parte
da resposta é banal. Como não sou religioso, minha tendência natural
nunca foi recorrer aos remédios da religião diante das dificuldades da
vida. Mas, se reflito sobre o assunto, acabo achando que as consolações
da religião são fáceis demais. Não quero ser desdenhoso nem zombeteiro.
Respeito e compreendo quem abraça a religião. Mas não funciona para
mim. Tenho no livro um capítulo em que dedico umas tantas páginas a essa
questão. O filósofo americano William James disse que a religião
oferece ao crente uma “resposta total sobre a vida”. Ela nos diz como
devemos nos sentir a respeito de nossa própria existência, do universo,
de tudo. No livro, argumento que a razão, em vez dessas grandes
narrativas religiosas que herdamos, também pode orientar nossa “resposta
total sobre a vida”. E não vejo problema em que o trabalho a realizar,
nesse caso, seja um tanto mais árduo.
Além
da religião, a medicina também disputa espaço com a filosofia quando se
trata de lidar com as dores da vida. Por que não frequentar a farmácia
em vez de pelejar com os livros complicados dos filósofos?
Não
vejo como um caso de “ou isto, ou aquilo”. Já fiquei deprimido e os
remédios me ajudaram. Você pode tomar antidepressivos e ser um filósofo
ao mesmo tempo. Aliás, muitos de nós fazem isso. Remédios podem ajudar a
não ficar paralisado, a não cair no desespero ou mesmo se autodestruir.
Há remédios que ajudam você a se sentir feliz, quase como acontece no
romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, em que o governo
distribui uma droga chamada “soma” aos cidadãos. Voltando ao que eu
disse antes, contudo, remédios não trazem respostas sobre o que é uma
boa vida. Isso não consta de nenhuma bula.
Das
escolas filosóficas da Antiguidade, a estoica é a única que conseguiu
se popularizar nos dias de hoje. Por que há tantos best sellers sobre o
estoicismo em circulação?
Na
maioria das formulações contemporâneas, o estoicismo é uma doutrina que
oferece uma resposta para todos os problemas. Essa resposta é que você
deve buscar uma atitude de distanciamento em relação àquilo que não pode
controlar. Às vezes vezes esse é um bom conselho. Às vezes, não. Se
você responde à morte de um parente dizendo simplesmente que, bem, todas
as pessoas são mortais, creio que está fazendo muito menos, talvez até
mesmo o contrário do que o luto requer de você. A outra causa da
atratividade do estoicismo, e isso eu acho muito interessante, é o fato
de ele estar ligado a exercícios práticos. Ele propõe exercícios
espirituais, meditações, e mostra que internalizar uma visão filosófica
tem muito a ver com isso. Esse tipo de atividade preenche a lacuna que
existe entre pensar e sentir. Preencher essa lacuna é um sério desafio
para filósofos como eu, que tentam dialogar com um público mais amplo.
Ainda não descobri como emular essa característica das filosofias
antigas.
O
senhor ensina filosofia em uma das grandes universidades americanas. O
que o levou a escrever livros para os leigos e não apenas os textos
acadêmicos que fazem uma carreira avançar?
Não
foi algo que eu planejei. Acontece que alguns anos atrás experimentei
uma típica crise de meia idade, durante a qual passei a duvidar do valor
das conquistas profissionais pelas quais eu havia me esforçado
tremendamente. Era aquilo mesmo que eu queria fazer da minha vida? De
repente, percebi que essa era uma questão legitimamente filosófica e me
pareceu que eu poderia continuar trabalhando na minha disciplina, mas de
um jeito diferente, abordando essa questão vital. Quando eu percebi
que esse trabalho estava me ajudando de verdade, senti vontade de
compartilhá-lo. Quando escrevi o livro sobre a meia idade, não tinha o
plano de fazer outro na mesma linha. Mas eu gostei da maneira como você
se relaciona com as pessoas quando escreve para não filósofos. Este novo
livro me levou a escrever sobre questões ainda mais pessoais, como a
minha dor crônica nas costas. No livro, eu digo que devemos resistir à
tentação de pensar em nossas vidas como se fossem uma narrativa
cuidadosamente estruturada. Foi assim mesmo que aconteceu no caso desses
dois livros. Eu fiz o que parecia adequado fazer naquele momento.
Por que o senhor, em vez de aderir a uma escola filosófica, tem uma abordagem eclética?
Nenhuma
escola ou filósofo acerta em tudo. Aliás, parte de qualquer filosofia é
criticar outras formas de pensar. Nas universidades, isso pode assumir
inclusive algumas formas bem cortantes. Em segundo lugar, se você, como
eu, deseja mostrar a filosofia como algo vivo, não é um bom começo
acatar a sabedoria de um guru de 200 ou 2.000 anos. Você mesmo precisa
lidar com as questões espinhosas. A vida é dura de várias maneiras. O
único meio de enfrentar essas dificuldades é abordá-las uma por vez,
com os recursos que estiverem ao seu dispor. Acompanhe aqueles que o
persuadirem de verdade, caso contrário, sinta-se livre para divergir.
Daí o meu ecletismo.
Se tivesse de escolher uma das escolas filosóficas da Antiguidade para seguir, qual seria?
A
escola que mais me atrai é a menos doutrinária: o cinismo. Sinto
afinidade e admiração por seu maior expoente, Diógenes de Sínope. Ele
era uma espécie de artista performático. Quando Platão definiu o ser
humano como um bípede sem plumas, Diógenes apareceu na frente da
academia onde Platão ensinava carregando uma galinha depenada. “Eis o
homem de Platão”, ele disse. Diógenes vivia nas ruas, sem roupas, e essa
era sua resposta à proposição socrática que devemos escolher a virtude
no lugar da riqueza, Eu gosto da ideia de que a filosofia é um modo de
vida, e não só reflexão distanciada. A propósito, a palavra “cinismo”
mudou profundamente de sentido ao longo dos séculos. O cínico de hoje em
dia é alguém que sabe o preço de tudo e não reconhece o valor de nada,
para citar a frase de Oscar Wilde. Ele sempre age com um distanciamento
sarcástico. Os cínicos da Antiguidade receberam esse nome porque os
gregos diziam que eles vivam como os cães. Cão, em grego, é cyno. O
desapego deles era diferente do desprezo dos cínicos de hoje. Diógenes
criticava a sociedade em que vivia e mostrava que era possível viver de
outras formas. Ele também disse que o mais importante na vida é a
esperança.
O
senhor escreve sobre o sofrimento causado pela solidão, mas eu gostaria
de lhe perguntar sobre outra coisa que também pode tornar nossa vida
infeliz: o confronto permanente de visões políticas, que abala amizades e
até famílias. Como tolerar os outros quando eles são o inferno?
Acho
que a resposta, nesse caso, está em apontar aquilo que a filosofia não
faz bem. Pessoas cerebrais tendem a superestimar o poder da persuasão.
Diante de uma divergência, filósofos tendem a reagir com mais diálogo
ainda. Tudo bem, mas não devemos ser muito otimistas com essa abordagem.
Na política, em vez de conquistar as mentes para fazer mudanças, o
melhor caminho pode ser o da ação. Lidere, realize coisas, transforme o
mundo e deixe que isso convença os seus adversários. Avanços políticos
dependem de pragmatismo, de uma dose de realpolitik, e não de buscar sem
descanso um consenso que, realisticamente, não pode ser alcançado.
O
filósofo alemão Friedrich Nietzsche disse que toda grande filosofia é
uma espécie de autobiografia. O senhor concorda? Se isso for verdade,
por que devemos nos ocupar das obras de um neurastênico, como o próprio
Nietzsche, ou de um autoritário, como era Platão?
Eu
tendo a concordar que a filosofia, especialmente a filosofia moral, tem
elementos de autobiografia, talvez seja moldada até mesmo pelo
temperamento do autor. Essa é uma das razões para nunca tratar um
filósofo como um guru ou autoridade infalível, e sim como o proponente
de uma visão do mundo que você precisa avaliar por si mesmo. Algumas
visões de mundo, mesmo que personalíssimas, trazem revelações
surpreendentes sobre a realidade.
O
senhor menciona com frequência a inglesa Iris Murdoch, que começou a
publicar como filósofa, mas se tornou muito mais conhecida como
romancista. O que a obra filosófica de Murdoch tem a oferecer?
O
Reino Unido viu surgir uma geração extraordinária de filósofas nos anos
em torno da Segunda Guerra. Iris Murdoch, Elizabeth Anscombe, Philippa
Foot, eram todas amigas que conviviam em Oxford. Elas despontaram em um
momento em que o sexismo estrutural das universidades estava em
suspenso, porque os homens haviam sido convocados para lutar na guerra.
Não sei se devemos dizer que elas tiveram sorte. Iris, em particular,
foi revolucionária. Depois, sua fama como romancista eclipsou sua obra
filosófica. Ela vem sendo redescoberta nos últimos 20 anos por
filósofos analíticos como eu. O que ela tinha de mais peculiar era não
apreciar em argumentações puramente abstratas. Sua filosofia é
descritiva. Ela mostra aos seus estudantes que o esforço para descrever
com precisão uma realidade já é, por si só, uma espécie de trabalho
filosófico. Quando você chega a uma descrição adequada, percebe que já
avançou bastante na solução do problema inicial. Para entender do que
estou falando, pense na maneira como todos nós conversamos com nossos
amigos ou parentes quando estamos diante de situações difíceis. Meus
pais estão sendo autoritários comigo ou apenas um pouco invasivos,
porque se preocupam com meu bem estar? Não dizemos “deixe eu lhe
apresentar alguns argumentos sobre isso”, mas narramos episódios e
descrevemos comportamentos. Esse método descritivo é o que tenho
procurado usar em meus livros. Boa parte do trabalho é pôr em evidência o
significado da solidão ou da dor física em nossas por meio do relato de
situações concretas. As teorias filosóficas vêm depois, juntamente como
a deliberação sobre como podemos reagir aos nossos problemas. Tudo isso
é inspirado em Murdoch. Quem quiser conhecê-la, deve ler a sua
obra-prima, The Sovereignty of Good (A Soberania do Bem). Ele é um pouco
datado no começo, é fácil se aborrecer com as 20 primeiras páginas, mas
se você perseverar verá que é um dos poucos livros filosóficos que você
pode ler para obter tanto apoio intelectual quanto apoio emocional.