sábado, 31 de dezembro de 2022

Viver bem é enfrentar o mundo como ele é

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Autor de livros de livros de sucesso para o leitor "comum", o britânico Kieran Setiya explica como a filosofia pode ajudar a lidar com as dificuldades da vida, tais como dores, luto e solidão. Entrevista a Carlos Graieb, da Crusoé:


Todo mundo sabe que a vida é dura. Em 2022, o filósofo britânico Kieran Setiya decidiu fazer algo a respeito e escreveu um dos livros do ano para as revistas The Economist e The New Yorker. Life is Hard (A Vida é Dura) parte de problemas concretos como a dor crônica que aflige o autor, a solidão experimentada por muitos durante a pandemia e o fracasso pessoal em suas muitas manifestações e utiliza variadas ferramentas filosóficas para descobrir como lidar com eles da melhor maneira. O livro tem parentesco com as obras de autoajuda, mas não reduz nada àquelas proverbiais “sete regras” ou “cinco passos”.

Esta não é a primeira incursão de Setiya na “filosofia prática”. Ele desenvolveu o método que aplica em Life Is Hard em 2017, quando enfrentou uma típica crise de meia idade e, sendo filósofo, procurou uma saída filosófica para os seus dilemas. Midlife (Meia Idade) tornou-se um best seller e abriu novas perspectivas para o autor, que ensina no departamento de filosofia do Massachussets Institute of Technology (MIT), uma das mais renomadas universidades americanas, além de manter um blog e um podcast populares.

Nesta entrevista a Crusoé, Setiya explica por que não se pode confundir uma boa vida com a felicidade.

Se a questão é enfrentar as dores do dia a dia, o que a filosofia pode oferecer que vai além da autoajuda?

A autoajuda, de maneira geral, se preocupa com a felicidade individual, com o “sentir-se bem”. Os grandes filósofos morais se interessam pelo significado da boa vida. Fugir da realidade pode ser um caminho para ser feliz. Mas você não dirá que alguém que ficou sempre mergulhado em mentiras e fantasias teve uma boa vida. Há coisas que talvez precisem mesmo ser dolorosas, como o luto pela perda de uma pessoa amada ou a percepção das injustiças sociais. Viver bem significa enfrentar o mundo como ele é. Dito isso, creio que alguns autores de autoajuda fazem reflexões bem filosóficas. Oliver Burkeman, por exemplo, autor de Quatro Mil Semanas: Gestão de Tempo para Mortais (Objetiva). Na superfície esse é um livro sobre gerenciamento de tempo, mas acho que no fundo ele trata da nossa finitude, de como lidar com o fato que somos mortais.

O senhor menciona pouco a religião em seu livro, embora grandes filósofos tenham explorado o assunto com profundidade. Por quê?

Parte da resposta é banal. Como não sou religioso, minha tendência natural nunca foi recorrer aos remédios da religião diante das dificuldades da vida. Mas, se reflito sobre o assunto, acabo achando que as consolações da religião são fáceis demais. Não quero ser desdenhoso nem zombeteiro. Respeito e compreendo quem abraça a religião. Mas não funciona para mim. Tenho no livro um capítulo em que dedico umas tantas páginas a essa questão. O filósofo americano William James disse que a religião oferece ao crente uma “resposta total sobre a vida”. Ela nos diz como devemos nos sentir a respeito de nossa própria existência, do universo, de tudo. No livro, argumento que a razão, em vez dessas grandes narrativas religiosas que herdamos, também pode orientar nossa “resposta total sobre a vida”. E não vejo problema em que o trabalho a realizar, nesse caso, seja um tanto mais árduo.

Além da religião, a medicina também disputa espaço com a filosofia quando se trata de lidar com as dores da vida. Por que não frequentar a farmácia em vez de pelejar com os livros complicados dos filósofos?

Não vejo como um caso de “ou isto, ou aquilo”. Já fiquei deprimido e os remédios me ajudaram. Você pode tomar antidepressivos e ser um filósofo ao mesmo tempo. Aliás, muitos de nós fazem isso. Remédios podem ajudar a não ficar paralisado, a não cair no desespero ou mesmo se autodestruir. Há remédios que ajudam você a se sentir feliz, quase como acontece no romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, em que o governo distribui uma droga chamada “soma” aos cidadãos. Voltando ao que eu disse antes, contudo, remédios não trazem respostas sobre o que é uma boa vida. Isso não consta de nenhuma bula.

Das escolas filosóficas da Antiguidade, a estoica é a única que conseguiu se popularizar nos dias de hoje. Por que há tantos best sellers sobre o estoicismo em circulação?

Na maioria das formulações contemporâneas, o estoicismo é uma doutrina que oferece uma resposta para todos os problemas. Essa resposta é que você deve buscar uma atitude de distanciamento em relação àquilo que não pode controlar. Às vezes vezes esse é um bom conselho. Às vezes, não. Se você responde à morte de um parente dizendo simplesmente que, bem, todas as pessoas são mortais, creio que está fazendo muito menos, talvez até mesmo o contrário do que o luto requer de você. A outra causa da atratividade do estoicismo, e isso eu acho muito interessante, é o fato de ele estar ligado a exercícios práticos. Ele propõe exercícios espirituais, meditações, e mostra que internalizar uma visão filosófica tem muito a ver com isso. Esse tipo de atividade preenche a lacuna que existe entre pensar e sentir. Preencher essa lacuna é um sério desafio para filósofos como eu, que tentam dialogar com um público mais amplo. Ainda não descobri como emular essa característica das filosofias antigas.

O senhor ensina filosofia em uma das grandes universidades americanas. O que o levou a escrever livros para os leigos e não apenas os textos acadêmicos que fazem uma carreira avançar?

Não foi algo que eu planejei. Acontece que alguns anos atrás experimentei uma típica crise de meia idade, durante a qual passei a duvidar do valor das conquistas profissionais pelas quais eu havia me esforçado tremendamente. Era aquilo mesmo que eu queria fazer da minha vida? De repente, percebi que essa era uma questão legitimamente filosófica e me pareceu que eu poderia continuar trabalhando na minha disciplina, mas de um jeito diferente, abordando essa questão vital. Quando eu percebi que esse trabalho estava me ajudando de verdade, senti vontade de compartilhá-lo. Quando escrevi o livro sobre a meia idade, não tinha o plano de fazer outro na mesma linha. Mas eu gostei da maneira como você se relaciona com as pessoas quando escreve para não filósofos. Este novo livro me levou a escrever sobre questões ainda mais pessoais, como a minha dor crônica nas costas. No livro, eu digo que devemos resistir à tentação de pensar em nossas vidas como se fossem uma narrativa cuidadosamente estruturada. Foi assim mesmo que aconteceu no caso desses dois livros. Eu fiz o que parecia adequado fazer naquele momento.

Por que o senhor, em vez de aderir a uma escola filosófica, tem uma abordagem eclética?

Nenhuma escola ou filósofo acerta em tudo. Aliás, parte de qualquer filosofia é criticar outras formas de pensar. Nas universidades, isso pode assumir inclusive algumas formas bem cortantes. Em segundo lugar, se você, como eu, deseja mostrar a filosofia como algo vivo, não é um bom começo acatar a sabedoria de um guru de 200 ou 2.000 anos. Você mesmo precisa lidar com as questões espinhosas. A vida é dura de várias maneiras. O único meio de enfrentar essas dificuldades é abordá-las uma por vez, com os recursos que estiverem ao seu dispor. Acompanhe aqueles que o persuadirem de verdade, caso contrário, sinta-se livre para divergir. Daí o meu ecletismo.

Se tivesse de escolher uma das escolas filosóficas da Antiguidade para seguir, qual seria?

A escola que mais me atrai é a menos doutrinária: o cinismo. Sinto afinidade e admiração por seu maior expoente, Diógenes de Sínope. Ele era uma espécie de artista performático. Quando Platão definiu o ser humano como um bípede sem plumas, Diógenes apareceu na frente da academia onde Platão ensinava carregando uma galinha depenada. “Eis o homem de Platão”, ele disse. Diógenes vivia nas ruas, sem roupas, e essa era sua resposta à proposição socrática que devemos escolher a virtude no lugar da riqueza, Eu gosto da ideia de que a filosofia é um modo de vida, e não só reflexão distanciada. A propósito, a palavra “cinismo” mudou profundamente de sentido ao longo dos séculos. O cínico de hoje em dia é alguém que sabe o preço de tudo e não reconhece o valor de nada, para citar a frase de Oscar Wilde. Ele sempre age com um distanciamento sarcástico. Os cínicos da Antiguidade receberam esse nome porque os gregos diziam que eles vivam como os cães. Cão, em grego, é cyno. O desapego deles era diferente do desprezo dos cínicos de hoje. Diógenes criticava a sociedade em que vivia e mostrava que era possível viver de outras formas. Ele também disse que o mais importante na vida é a esperança.

O senhor escreve sobre o sofrimento causado pela solidão, mas eu gostaria de lhe perguntar sobre outra coisa que também pode tornar nossa vida infeliz: o confronto permanente de visões políticas, que abala amizades e até famílias. Como tolerar os outros quando eles são o inferno?

Acho que a resposta, nesse caso, está em apontar aquilo que a filosofia não faz bem. Pessoas cerebrais tendem a superestimar o poder da persuasão. Diante de uma divergência, filósofos tendem a reagir com mais diálogo ainda. Tudo bem, mas não devemos ser muito otimistas com essa abordagem. Na política, em vez de conquistar as mentes para fazer mudanças, o melhor caminho pode ser o da ação. Lidere, realize coisas, transforme o mundo e deixe que isso convença os seus adversários. Avanços políticos dependem de pragmatismo, de uma dose de realpolitik, e não de buscar sem descanso um consenso que, realisticamente, não pode ser alcançado.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche disse que toda grande filosofia é uma espécie de autobiografia. O senhor concorda? Se isso for verdade, por que devemos nos ocupar das obras de um neurastênico, como o próprio Nietzsche, ou de um autoritário, como era Platão?

Eu tendo a concordar que a filosofia, especialmente a filosofia moral, tem elementos de autobiografia, talvez seja moldada até mesmo pelo temperamento do autor. Essa é uma das razões para nunca tratar um filósofo como um guru ou autoridade infalível, e sim como o proponente de uma visão do mundo que você precisa avaliar por si mesmo. Algumas visões de mundo, mesmo que personalíssimas, trazem revelações surpreendentes sobre a realidade.

O senhor menciona com frequência a inglesa Iris Murdoch, que começou a publicar como filósofa, mas se tornou muito mais conhecida como romancista. O que a obra filosófica de Murdoch tem a oferecer?

O Reino Unido viu surgir uma geração extraordinária de filósofas nos anos em torno da Segunda Guerra. Iris Murdoch, Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, eram todas amigas que conviviam em Oxford. Elas despontaram em um momento em que o sexismo estrutural das universidades estava em suspenso, porque os homens haviam sido convocados para lutar na guerra. Não sei se devemos dizer que elas tiveram sorte. Iris, em particular, foi revolucionária. Depois, sua fama como romancista eclipsou sua obra filosófica. Ela vem sendo redescoberta nos últimos 20 anos por filósofos analíticos como eu. O que ela tinha de mais peculiar era não apreciar em argumentações puramente abstratas. Sua filosofia é descritiva. Ela mostra aos seus estudantes que o esforço para descrever com precisão uma realidade já é, por si só, uma espécie de trabalho filosófico. Quando você chega a uma descrição adequada, percebe que já avançou bastante na solução do problema inicial. Para entender do que estou falando, pense na maneira como todos nós conversamos com nossos amigos ou parentes quando estamos diante de situações difíceis. Meus pais estão sendo autoritários comigo ou apenas um pouco invasivos, porque se preocupam com meu bem estar? Não dizemos “deixe eu lhe apresentar alguns argumentos sobre isso”, mas narramos episódios e descrevemos comportamentos. Esse método descritivo é o que tenho procurado usar em meus livros. Boa parte do trabalho é pôr em evidência o significado da solidão ou da dor física em nossas por meio do relato de situações concretas. As teorias filosóficas vêm depois, juntamente como a deliberação sobre como podemos reagir aos nossos problemas. Tudo isso é inspirado em Murdoch. Quem quiser conhecê-la, deve ler a sua obra-prima, The Sovereignty of Good (A Soberania do Bem). Ele é um pouco datado no começo, é fácil se aborrecer com as 20 primeiras páginas, mas se você perseverar verá que é um dos poucos livros filosóficos que você pode ler para obter tanto apoio intelectual quanto apoio emocional.
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