BLOG ORLANDO TAMBOSI
Até lavar louça já virou terapia. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Certa
feita, resolvi fazer um teste com uma senhora que me aborrecia. O
motivo do aborrecimento era ela olhar dicas de saúde e beleza num site
natureba e pontificar sobre as coisas que dão câncer. Esse conhecimento
era aprimorado pelas amigas. Assim, fui informada de que beber água
quente dá câncer e beber água gelada também. Eu é que não vou discutir.
Em vez disso, resolvi entrar no jogo e dizer que coisas aleatórias davam
câncer. Comecei pela mais modesta, o cigarro na mão dela. Ela concordou
e eu segui distribuindo pílulas de conhecimento. Meus comentários de
“dá câncer” só geraram protesto quando eu falei que vinho dá câncer.
Foi
uma falha elementar, essa. Pois dia sim, dia também, produz-se algum
texto ou vídeo sobre os benefícios do vinho à saúde. Algum médico é
ouvido e diz que deve-se tomar uma quantia X (sempre modesta) todos os
dias, porque faz bem à saúde. O vídeo ou texto é mostrado por uma pessoa
à outra, que comenta algo como: “Mas só uma taça”. E vai espalhando
pelas redes.
Antes
das redes sociais, já era assim com o jornalismo tradicional. Às vezes
jornalistas e cientistas ficavam obcecados com alguma comida em
particular, tais como a margarina e o ovo. A margarina foi tão amada
quanto o vinho, mas caiu em desgraça depois de a gordura trans entrar em
cena. Margarina é uma pasta de gordura vegetal, coisa dependente de
tecnologia e bem propensa a ter gordura trans. (Depois de aparecer a
gordura trans, os governos fizeram regulamentações para reduzir sua
quantidade nas margarinas.)
É
uma pena que não tenham se ocupado em fazer retratações quanto à pasta
de gordura animal que difamaram, a manteiga. Quanto ao ovo, caiu no
anonimato. Depois de não conseguirem se decidir se é panaceia ou veneno,
deixaram-no para lá.
Causa real da preocupação natureba
Recentemente
surgiu a ideia de “produção de conteúdo”. Há tempos existiam blogues e
sites, mas eram coisa da diminuta parcela que costumava usar a internet
para lazer e informação. A situação mudou com a difusão das redes
sociais, quando os blogues e sites passaram a dividir o espaço com
jornais tradicionais e disputar leitores. Isso foi impulsionado pelo
smartphone na palma das mãos.
Há
coisas previsíveis na “produção de conteúdo”. Nos sites naturebas,
aprendemos que limão e alho têm propriedades mágicas. Mil dicas prometem
deixar você alcalino, embora nenhuma recomende comer pilhas Duracell.
Não
é o caso de crer que os smartphones tornaram as pessoas interessadas em
naturebices místicas. A verdade é que esses sites, páginas e similares
só se tornaram coqueluche porque supriam um interesse do público. E
tanto no anárquico mundo online, como no jornalismo tradicional, não é
difícil descobrir a causa da coqueluche: preocupação com o peso e
doenças associadas à obesidade. Tive muita ocasião de observar que gente
do povo come pão integral firme na crença de que esse não engorda,
porque é “saudável”. O mesmo se dá com madames às voltas com a balança,
que já vi trocarem sal normal por sal rosa “do Himalaia”, que é
“saudável”. Se você tiver a chance de crer que basta acrescentar um
ingrediente com propriedades mágicas à sua alimentação, irá agarrá-la
com todas as forças. Não precisará repensar seu estilo de vida, nem
lidar com compulsões ou paladar infantil. Comer coisas “saudáveis”,
então, ganha um ar de mandinga ou promessa religiosa: você faz
penitência comprando coisas caras e/ou comendo coisas que não são
gostosas à espera de alcançar as graças do emagrecimento e da saúde.
Mas
o que eu queria registrar é que, por mais despirocados que sejam os
remédios, eles apontam para um problema real: mais da metade dos
brasileiros estão acima do peso. Nosso povo está gordo, e não será de
admirar se a nossa expectativa de vida seguir a tendência dos EUA e
começar a cair.
Tudo agora “é terapia”
Atinei
que, se eu quisesse, daria para repetir o jogo do “dá câncer”, trocando
por “é terapia”. Em vez de dizer que coisas aleatórias dão câncer
(água, carne, ovo, cigarro, vinho…), basta trocar por atividades úteis
executadas por vontade espontânea. Cozinhar é terapia. Caminhar é
terapia. Bordar é terapia. Cuidar das plantas é terapia. Até faxina é
terapia!! Com maior ou menor grau de empenho científico, prova-se que
qualquer atividade quotidiana ordinária “é terapia”.
Dois
apontamentos a serem tirados daí. 1) Tal como a coqueluche natureba, a
coqueluche da terapia reflete um problema real, que é o da difusão de
doenças mentais como ansiedade e depressão. 2) Essas atividades
ordinárias, agora consideradas “terapia”, são extraordinárias para muita
gente. Afinal, é possível viver sem cozinhar (comprando comida pronta
ou comendo besteira o dia inteiro), sem caminhar (andando de carro ou
transporte público) e sem faxinar (pagando uma faxineira). As pessoas
deixam de fazer atividades e economizam tempo. Agora, a pergunta de 1
milhão de dólares: o que elas fazem com o tempo economizado?
Se
perguntados, a resposta será: "me mato de trabalhar!" Mas, ainda que os
workaholics existam, há motivos para receber a resposta com ceticismo.
Por exemplo: das muitas atividades ordinárias das quais se diz que “é
terapia”, olhar o Instagram não é uma delas. Na verdade, é justo o
contrário. Há uma montanha de estudos tratando de efeitos negativos do uso de redes sociais sobre a saúde mental, em geral das mulheres jovens.
Então
eu creio que as pessoas parem de fazer atividades que, bem ou mal,
levem a um grau de introspecção (não dá para cozinhar distraído) e
passem o dia inteiro recebendo e buscando estímulos visuais e sociais,
coisas nas quais os sites de pornografia e as redes sociais são
pródigas. Daí o povo endoida, e qualquer interrupção nesse ritmo doido é
interpretado como “terapia”, já que faz bem.
Diferenças dos sexos?
Naturalmente,
boa parte desse cenário que descrevi se refere às fêmeas da espécie.
(Especifiquemos enquanto ainda não é proibido dizer que a espécie humana
tem macho e fêmea.) No entanto, vale notar que as fêmeas se diferenciam
dos machos por falar mais sobre problemas pessoais.
Homens
e mulheres ficam deprimidos, mas as mulheres falam muito mais de
depressão. O fato de as mulheres reclamarem mais não altera o fato de
que os homens se suicidam mais. Do mesmo jeito, as mulheres falam mais
de peso, mas o sobrepeso e a obesidade são um problema unissex. Quanto
ao abuso das redes sociais, as pesquisas costumam focar nas adolescentes
– mas não é difícil imaginar que os meninos tenham problemas análogos
com estímulos visuais. Basta supor, por exemplo, que as meninas fiquem
idealizando a vida alheia em coisas como o Instagram, onde todos são
bonitos e felizes, enquanto que os meninos arranjem um monte de
problemas ligados ao âmbito sexual por causa da overdose de pornografia
oferecida por sites gratuitos e inesgotáveis como o Pornhub.
Ninguém
nega que a conexão proporcionada pelas redes sociais é algo sem
precedentes. É preciso notar que, embora a pornografia seja velhíssima,
esse modelo viciante de pornografia é algo sem precedentes, de modo que a
preocupação com ele não pode ser tachada de puritana.
Qualquer
problema ligado à liberação sexual que não possa ser assimilado pelo
feminismo é cercado de tabus progressistas. Felizmente, porém, a ciência
já estuda os da efeitos negativos do vício em pornografia sobre a saúde
mental masculina, em vez de focar somente na saúde mental das mulheres
filmadas.
Raiz do problema?
Voltemos
às “terapias”. O que mais me chamou a atenção nesse jargão é que ele
apaga a ideia de passatempo, distração ou hobby. Eu digo coisas como:
“Eu gosto de cozinhar”, “Eu gosto de caminhar” e “Eu gosto de cuidar das
plantas”. No jargão atual, o correto seria eu dizer: “Cozinhar é uma
terapia para mim”; “Ai, miga, caminhar é terapia!” e “Mana, cuidar das
plantas faz bem à saúde mental”.
A
diferença entre o que eu digo e o que o jargão diz é que a razão
primária para eu cozinhar, caminhar e cuidar das plantas não é a minha
“saúde mental”, mas sim, respectivamente, a comida, a locomoção e a as
ervas. Todas essas atividades demandam de mim um grau de introspecção
que não me permite ficar olhando para o Instagram, que eu nem tenho. (Já
escrever, como qualquer trabalho feito no computador, me permite dar
umas olhadelas no Twitter e em aplicativos de mensagem. Na verdade, até
demanda.)
Mas
todas essas atividades que exigem uma introspecção maior podem se
transformar em lazer com uma certa facilidade: posso pensar em aprimorar
as receitas; posso escolher a padaria em função da beleza do trajeto
até ela; posso cuidar de plantas curiosas das quais não tenho a menor
necessidade. A transformação em lazer está aí, no desnecessário.
Me
pergunto se, quando uma mulher conclui que tal coisa é terapia, ela
consegue continuar extraindo prazer daí. Porque se for terapia, é
necessário; e se algo é percebido como necessário, aí não há lazer.
Deixe um homem fazer um caminho bonito espontaneamente, e ele poderá
criar uma rotina por se acostumar a sentir esse prazer. Se a rotina for
quebrada, ele sentirá falta. Mas diga a esse homem que ele está obrigado
a fazer esse caminho sempre do mesmo jeito até o fim dos seus dias, e
com certeza sua capacidade de sentir prazer com isso será afetada.
A
vida dessas pessoas ansiosas seria mais simples se elas se acostumassem
ao conceito de lazer e arranjassem hobbies que demandam introspecção.
Postado há 6 hours ago por Orlando Tambosi
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