segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Literatura não é para “dar oportunidades”

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Eu lia Agatha Christie porque era indiferente pra mim se o autor era homem ou mulher. É uma pergunta que não me ocorria, como não ocorreria a qualquer pessoa que goste de literatura de verdade. Alexandre Soares Silva para a Crusoé:


Vou dizer o que mais me irrita nessa polêmica da Fuvest excluir todos os autores homens das listas de leitura obrigatória até 2029: é que as pessoas que mais exigem cotas disso e daquilo para a literatura são as que menos se importam com literatura.

Essa é uma regra universal. Há pessoas que se interessam por coisas e há pessoas que se interessam pela política das coisas; isto é, há pessoas que se interessam pelas coisas em si e há pessoas que não se interessam nada pelas coisas em si, mas se juntam parasiticamente a essas coisas porque estão interessadas na recepção política dessas coisas.

Enfim, é isso: há pessoas que se interessam por coisas e há pessoas que se interessam por política. Há pessoas que se interessam por coisas e há pessoas que se interessam pelo poder que essas coisas podem dar; e esses dois tipos não se misturam jamais.

Percebi isso pela primeira vez na faculdade. Os estudantes que mais se interessavam por política estudantil eram invariavelmente os que menos se interessavam pela sua área de estudo. O estudante de letras que entrava para o ativismo não abria um livro de literatura; o de medicina que virava uma pequena estrela da política estudantil era capaz de não saber de que lado ficava o seu fígado.

Isso envolve todas as esferas de política — isto é, de poder, mesmo que seja um poder bem pequeno e mesquinho. O homem que vira presidente de um clube de filatelia é aquele entre os membros do clube que menos se interessa por filatelia; ele faz isso porque a presidência é a única posição dentro do clube em que ele não precisa só ficar mexendo com selos. Agora ele pode falar de contabilidade, locação do espaço, alvará na prefeitura, regras internas e outras coisas assim, que evidentemente o interessam mais que a porcaria dos selos.

Esse também é o caso, dez vezes o caso, dessas pessoas fazendo campanha pra que todos leiam mais mulheres.

A primeira autora que me importou alguma coisa na vida foi Agatha Christie. E por “autora” quero dizer “a pessoa que escreveu o livro”, não só “a primeira autora mulher que me importou”. Os livros dela foram os primeiros que eu queria ler por causa da pessoa que havia escrito; queria ler tudo que aquela pessoa havia escrito. Com você não foi assim? Ela foi a iniciação literária de muita gente no século 20 e, espero, mesmo neste, como J.K. Rowling para outra geração.

E por que eu queria ler tudo de Agatha Christie? Porque eu era uma criança tolerante e protofeminista? Não, porque eu estava interessado no conteúdo dos livros. Tem um crime na história? Tem um detetive? Meus amigos me falavam que a solução do crime não era completamente imbecil? E, sobretudo, na capa tinha pegadas de sangue na neve, saindo de uma janela iluminada onde vemos uma árvore de Natal e pessoas horrorizadas em volta de um cadáver? Então por que eu precisaria saber detalhes sobre o autor? Por que saber que o livro foi escrito por um mameluco que acha o Ryan Gosling “dreamy” me deixaria mais interessado, ou menos interessado, na porcaria do crime na neve lá?

Claro que as pessoas que não leem muito não pensam assim, porque pensam na literatura como um perpétuo contar de sofrimentos: esta pessoa conta o seu sofrimento, depois aquela conta, em oportunidades mais ou menos iguais — ou melhor, com muito mais oportunidades para quem acreditamos que sofreu mais, ou para quem diz mais convincentemente que sofreu mais — o que, no caso atual da Fuvest, são as mulheres. Porque parece que não estamos lendo por nenhum outro motivo além de dar aos coitados dos sofredores do mundo uma oportunidade de serem ouvidos. A visão da literatura como reunião de condôminos com muitas queixas e ressentimentos. Uma reunião de alcoólatras anônimos ou de mulheres espancadas. Um psicodrama desses em que as pessoas se alternam socando almofadas.

Eu lia Agatha Christie porque era indiferente pra mim se o autor era homem ou mulher. É uma pergunta que não me ocorria, como não ocorreria a qualquer pessoa que goste de literatura de verdade. Ler literatura não é “dar oportunidade” para alguém porque ela sofreu, não é “dar voz” para uma senhorinha humilhada que fala baixinho e ninguém deixa falar. Eu não preciso “dar oportunidade” nenhuma a Jane Austen, Emily Dickinson, Muriel Spark. Não é um favor que fazemos ao clássico quando lemos o clássico; a atenção da leitura ou das resenhas não é uma esmola que estamos dando aos gênios do passado. Essa visão condescendente e grotesca da literatura tem que acabar.

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