BLOG ORLANDO TAMBOSI
O longa de Colm Bairéad mostra uma das virtudes verdadeiras, nada parecida com as exibidas nas redes sociais. João Pereira Coutinho para a FSP:
O Natal aí
está. Essa época que para muitos é o momento da suprema hipocrisia.
Durante 24 horas, ou talvez 48, os sorrisos são forçados, os sentimentos
são de plástico e a gentileza, se merece o nome, não consegue esconder
completamente a profundidade do ressentimento contra amigos ou
familiares.
Nada tenho contra a hipocrisia, aviso já. Sem ela, a vida em sociedade seria impensável —até Kant, que era Kant, sabia disso.
Mas
será que os mortais ainda se lembram do sorriso franco, dos sentimentos
limpos e de uma gentileza genuína? Será que sentem saudades?
Para
esses nostálgicos, aconselho o filme "A Menina Silenciosa", de Colm
Bairéad, inspirado no livro "Foster" de Claire Keegan. Sempre ajuda a
recuperar a memória.
É
o meu filme do ano, para usar a linguagem gasta dos balanços
jornalísticos, talvez por ser um daqueles raros filmes que se aproxima
da pura poesia.
A
história é simples, ou parece simples: Cáit (espantosa Catherine
Clinch) é uma criança de nove anos que sobrevive (é o termo) numa
família que a ignora e despreza.
O
seu método de sobrevivência é o silêncio, a quietude e a observação.
Para usar uma palavra clássica, vinda do português antigo, Cáit é uma
"enjeitada". A mãe é uma figura exausta e ausente. O pai alcoólatra tem a delicadeza própria das bestas. E as irmãs mais velhas são espectros sem rosto e sem voz.
Mas
então os pais, que esperam uma nova criança e não têm tempo ou
disponibilidade para Cáit, decidem enviá-la para casa de Eibhlín e Seán,
familiares distantes, só para passar o verão. Cáit, a quem nada é
perguntado, é assim levada para um ambiente estranho.
Decisão
milagrosa. Eibhlín e Seán acolhem-na e, logo nos primeiros momentos,
entendemos que algo mudou. Uma diferença nos gestos, digamos assim.
Gestos de quem cuida.
Naquele
verão, Cáit conhece essa coisa extraordinária: uma família, partilhando
com ela as suas alegrias e tristezas, as suas rotinas, as suas
conversas. Lentamente, a "menina silenciosa" vai saindo do seu casulo,
permitindo-se falar, sentir, abraçar.
"A Menina Silenciosa" é um filme revolucionário por tratar do mais revolucionário dos temas: a bondade humana.
Não
é uma daquelas virtudes mentirosas para ser exibida nas redes sociais e
que apenas serve para alimentar a vaidade do suposto virtuoso.
Também
não é uma mera proclamação ideológica, abstrata, ideal, própria de quem
ama a humanidade, mas despreza o ser humano comum.
Como
lembrava Emmanuel Levinas, a bondade é uma virtude interpessoal. Ela só
acontece face a face, perante o rosto do outro, perante a presença de
outra pessoa. A bondade nada exige, nada espera, nada impõe. É pura
hospitalidade. É abertura e reconhecimento.
E, como no filme, talvez seja um dia reciprocidade.
Desejo um Natal bondoso para os meus leitores.
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