sábado, 30 de setembro de 2023

Do universalismo de Luther King ao tribalismo identitarista: o novo racismo.

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Opondo-se à visão universalista de King, a visão iliberal tem moldado a luta contra o racismo nos Estados Unidos. É uma visão que nos encerra em identidades tribais e inibe a possibilidade de diálogo. Patrícia Fernandes para o Observador:


O discurso de Luther King

O dia 28 de agosto ocupa um lugar central na história dos Estados Unidos: foi nesse dia, em 1963, que teve lugar a célebre March on Washington for Freedom and Jobs, que juntou mais de 250 mil pessoas em frente do Lincoln Memorial com o objetivo de apoiar a legislação de direitos civis que o Presidente John F. Kennedy procurava aprovar no Congresso.

Esta mobilização resultou da intensificação da luta dos afroamericanos que, nos últimos anos, reivindicava o reconhecimento de uma igualdade efetiva perante a lei e a superação das chamadas leis Jim Crow, que mantinham nos estados do sul a segregação racial desde o final do século XIX. Apesar das emendas à Constituição que foram aprovadas após a guerra da secessão (a 13.ª emenda aboliu a escravatura em 1865; a 14.ª emenda garantia cidadania e igual proteção da lei a todos aqueles que nasçam ou sejam naturalizados nos Estados Unidos, incluindo antigos escravos, de 1868; e a 15.ª emenda garantia o direito de voto aos homens negros), muitos estados do sul mantinham leis que limitavam ou impediam o exercício do direito de voto dos afroamericanos, permitiam o funcionamento de escolas segregadas e admitiam a discriminação em função da raça em hotéis, restauração ou autocarros.

As leis Jim Crow foram legitimadas pela decisão Plessy v. Ferguson, de 1896, que estabeleceu o princípio “separados mas iguais”, considerando que tais leis não violavam a constituição norte-americana desde que os serviços fossem igualmente oferecidos a negros e brancos. Esta cláusula injusta foi alvo de contínuo protesto judicial, nomeadamente pela maior e mais antiga organização de direitos civis dos afroamericanos: a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), criada em 1909. Mas apenas em 1954 a NAAPC pôde reivindicar a sua grande vitória com a famosa decisão Brown v. Board of Education, na qual o Supremo Tribunal proibiu a segregação racial nas escolas públicas. Foi um passo decisivo para o início dos anos de luta pelos direitos civis que duraria praticamente até ao final dos anos de 1960 com a morte de Martin Luther King Jr.

Luther King assumiu protagonismo com o chamado Montgomery Bus Boycott (que começa com a história lendária de Rosa Parks), protesto que durou mais de um ano, entre o dia 5 de dezembro de 1955 e o dia 20 de dezembro do ano seguinte, até finalmente ser decidida a proibição da segregação racial nos autocarros. O talento oratório de Luther King tornaram-no uma figura de referência durante aquele protesto, e foi ele que assumiu o protagonismo na Marcha sobre Washington, quando proferiu aquele que se tornaria um dos discursos mais importantes da história ocidental: “I have a dream”.

O daltonismo liberal

Apesar de curto, encontramos em “I have a dream” as principais linhas orientadoras do pensamento de Martin Luther King, sedimentadas na tradição evangélica do cristianismo (King era pastor batista) e que o levou à defesa de um princípio de não violência e da doutrina da fraternidade e do amor na política. Filosoficamente, King assume-se como herdeiro dos valores do liberalismo filosófico que orientavam os Founding Fathers e é nessa medida que exige as consequências últimas e efetivas daqueles valores:

“Quando os arquitetos da nossa República escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, eles estavam a assinar uma nota promissória de que todos os americanos seriam herdeiros. Esta nota era uma promessa de que a todos os homens – sim, tanto negros como brancos – seriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, liberdade e busca de felicidade. É hoje óbvio que a América está em falta quanto ao pagamento desta nota promissória no que diz respeito aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu à população negra um cheque sem cobertura, um cheque que tem sido devolvido com a indicação de fundos insuficientes.”

King não hesita, por isso, em citar as palavras da Declaração de Independência, que estabelecem os princípios liberais do sonho norte-americano: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais”. Em causa estão direitos iguais perante a lei e as mesmas liberdades e oportunidades para todos os cidadãos. É nesse sentido que segue aquela que será a frase mais citada do discurso:

“Eu tenho o sonho de que os meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.”

É essencial considerar esta argumentação liberal de King, uma vez que este período de luta social é marcado por uma enorme complexidade, contando com a mobilização de vários grupos de protesto, desde o movimento Black Power aos projetos de nacionalismo negro, que defendiam formas violentas de luta e visões políticas de separatismo racial. Luther King manteve-se afastado destes movimentos separatistas, apelando à não-violência e defendendo sempre a possibilidade da criação de um país pós-racial.

Em 1967, na celebração dos dez anos sobre a criação da Southern Christian Leadership Conference, Luther King discursa a pensar no futuro: “Where do we go from here?”. Reconhece as conquistas realizadas na última década, mas aponta que ainda há muito a fazer, pelo que recorre à lição de Jesus a Nicodemos para traçar o desafio norte-americano: “a América deve nascer de novo”. E embora aponte o dedo ao sistema económico, que se traduz em exploração e condena tantos dos seus cidadãos à pobreza, mantém a mensagem pós-racial e universalista.

O novo racismo

O sonho de direitos e oportunidades iguais expresso por King, a partir de uma tradição universalista cristã, espelhava o espírito liberal que fez os Estados Unidos acreditarem ser possível tornarem-se uma sociedade pós-racial, isto é, uma sociedade onde a cor de pele deixasse de ser relevante, o mesmo é dizer, onde o racismo fosse erradicado ou, pelo menos, minimizado. Quando Barack Obama foi eleito em 2008, muitos viram nesse momento a concretização de uma sociedade pós-racial, construída desde a longa década de luta pelos direitos civis. Finalmente o país teria conseguido sarar as feridas de um nascimento marcado pela escravatura; finalmente poderia proclamar, apesar dos problemas ainda remanescentes, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

Não é este, porém, o entendimento dos autores e ativistas que, a partir da teoria crítica da raça, continuam a denunciar um racismo profundo que marcaria a sociedade norte-americana, sem reconhecer quaisquer melhorias recentes. Mais do que isso, parecem considerar que as condições estão ainda piores e que o daltonismo ou cegueira de cor é uma ideologia racista, e ainda mais perigosa do que o racismo das leis Jim Crow. Por que razão?

Robin DiAngelo, em Fragilidade Branca, diz-nos que,

“[e]mbora a ideia de cegueira cromática possa ter começado por ser uma estratégia bem-intencionada para romper com o racismo, na prática ela serviu para negar a realidade do racismo e, assim, perpetuá-lo.”

Isso acontece porque, como diz Eduardo Bonilla-Silva, no livro Racismo sem racistas:

“Enquanto para o racismo Jim Crow a posição social dos negros se devia à sua inferioridade biológica e moral, o racismo da cegueira de cor evita tais argumentos simplistas. Em vez disso, os brancos racionalizam o status contemporâneo das minorias como o produto da dinâmica de mercado, de fenómenos que ocorrem naturalmente e das limitações culturais imputadas aos negros.”

“Os brancos” explicariam então a atual desigualdade racial como resultado de razões não raciais, menosprezando o papel do racismo na produção dessas desigualdades – e, assim, a ideologia da cegueira de cor, longe de ser um comportamento não racista, é na verdade “fundamental para preservar o privilégio branco”.

Embora este argumento tenha algum mérito, importa não esquecer o seu pressuposto identitário: estes autores exigem, na sua argumentação, que reconheçamos uma determinada identidade (branca ou não branca) e condicionemos a nossa visão do mundo, dos dados e da experiência a essa identidade. A consciencialização da identidade branca (“nomear a branquitude”) é particularmente importante para “os brancos”, uma vez que estes resistem a compreender que não falam por todos, mas apenas pelo seu grupo e pelos seus privilégios (é a ilusão liberal da universalidade). Como diz DiAngelo:

“Dizer que a branquitude é uma perspetiva a partir da qual as pessoas brancas olham para si mesmas, para os outros e para a sociedade é dizer que um aspeto importante da identidade branca é vermo-nos a nós mesmos como indivíduos, fora da raça ou inconscientes dela – “apenas humanos”. Este posicionamento vê as pessoas brancas e os seus interesses como centrais para a humanidade e como representativos dela. Os brancos também produzem e reforçam as narrativas dominantes da sociedade – como a do individualismo e a da meritocracia – e usam-nas para explicar as posições dos outros grupos raciais. Estas narrativas permitem-nos congratularmo-nos pelo nosso sucesso dentro das instituições da sociedade e culpar os outros pela sua falta de sucesso.”

Opondo-se à visão universalista de King, esta visão iliberal tem moldado a luta contra o racismo nos Estados Unidos e vai chegando à Europa, apesar de as condições serem aqui substancialmente diferentes. É uma visão que nos encerra em identidades tribais e inibe a possibilidade de diálogo. E embora quase sempre reclamem a herança de Luther King, têm na verdade pouca relação com o seu pensamento. Basta recordar como King termina o discurso de 1967: “Continuaremos insatisfeitos até ao dia em que ninguém gritará “Poder branco!”, nem ninguém gritará “Poder negro!”, mas todos falem do poder de Deus e do poder humano.” Já os novos ativismos remetem-nos para identidades e para o conflito. Ou como diz Michel Onfray, em Autos-de-Fé:

“Doravante, o novo horizonte inultrapassável é o da regressão no sentido das hordas primitivas de que Darwin falava n’A Origem do Homem: lugar às tribos, às etnias, às raças, ao sangue, às pigmentações.”
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Corrupção, o nosso esporte nacional.

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Toffoli anula provas de desvios, enquanto a sociedade se divide em torcidas a favor de políticos ou dos magistrados. Lygia Maria para a FSP:


No Brasil, a corrupção é como o futebol: não inventamos, mas aperfeiçoamos, adicionamos gingado e atingimos excelência ao ponto dessa atividade virar patrimônio nacional reconhecido mundialmente. O mau trato da coisa pública, assim como a burrice na canção de Tom Zé, "não tem preconceito nem ideologia, anda na esquerda, anda na direita, não escolhe causa e nada rejeita".

A corrupção grassa em todas as esferas de poder e se espraia por legendas partidárias. No entanto deve-se admitir que, nas passagens do PT pelo Planalto, foi bastante organizada.

Tínhamos planilhas com valores, codinomes e até um "departamento da propina" numa das maiores empreiteiras do país. Uma seleção da Copa de 70 em matéria de desvios, trocas de favores e outras maracutaias nada republicanas.

Mas, agora, todo esse acervo foi considerado imprestável pelo ministro Dias Toffoli, do STF. Na última semana, o magistrado tornou inadmissíveis as provas oriundas de acordos de leniência da Odebrecht.
Assim, numa canetada, lá se vão os registros dos feitos de "Aracaju", "Gordo", "Jacaré", "Louro", "Maçaranduba", "Pescador", "Soneca" e outros craques desse escrete canarinho.

Em matéria de corrupção, por aqui, até a torcida é organizada. No caso em tela, temos a que, na defesa irascível de políticos, é contra a Lava Jato e, do outro lado, os fãs entusiasmados da operação.

A decisão de Toffoli foi saudada pela esquerda, mesmo que as delações também se refiram a partidos de direita ou centro-direita, como DEM, PP, PSDB e outros. Já os lavajatistas ignoram indícios de conluio inadmissível entre procuradores e o então juiz Sergio Moro.

Ambos caem no erro de levar a sério a metáfora futebolística, ao idolatrarem ou políticos ou juízes, aprofundando ainda mais a polarização em uma sociedade já dividida. Deixemos as paixões para o esporte e tratemos a política e a Justiça com sensatez. Porque até agora, nessa partida, vencem os corruptos e perde a sociedade brasileira.
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Do bullying na escola à compra do Twitter, a vida de Elon Musk em livro.

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Sofreu bullying na infância, deixou de falar com o pai e comprou o Twitter. Da vida pessoal aos negócios, a história de Elon Musk é contada numa nova biografia. O Observador pré-publica um excerto:


A infância de Elon Musk na África do Sul não foi fácil. Aos seis anos, enquanto corria na rua, foi atacado pelo seu cão preferido. Na escola era vítima de bullying e, certa vez, chegou a ficar internado durante uma semana após ter sido empurrado de umas escadas e pontapeado no rosto. Ao ter alta, relembra, ficou uma hora de pé a ouvir o pai gritar e a chamá-lo de “idiota” e de “inútil”.

Da relação com o pai — com quem deixou de falar — aos negócios, que vão desde os carros elétricos à Inteligência Artificial, a vida de Elon Musk é contada ao longo de 500 páginas. A compra do Twitter, que várias vezes disse ser a sua rede social preferida, acontece num ano em que, revela pela primeira vez, percebeu que precisava de “mudar de mentalidade” e “sair do modo de crise”.

“Elon Musk” é o título do livro da autoria de Walter Isaacson, que também escreveu as biografias de Steve Jobs, Albert Einstein, Benjamin Franklin e Henry Kissinger. O Observador faz a pré-publicação de um excerto do livro que conta a história do multimilionário, editado pela Objectiva (uma chancela da Penguin Random House), que chega às livrarias na próxima terça-feira, dia 12 de setembro.


Musa de Fogo

Durante a infância passada na África do Sul, Elon Musk soube o que era sentir dor e aprendeu a sobreviver-lhe.

Aos doze anos, foi levado de autocarro para um veldskool, um acampamento de sobrevivência na selva. «Era um Senhor das Moscas paramilitar», recorda. Os miúdos recebiam pequenas rações de comida e água e tinham autorização — na verdade, eram encorajados — para lutar por elas. «O bullying era considerado uma virtude», diz Kimbal, o seu irmão mais novo. Os rapazes grandes aprendiam depressa a dar socos na cara aos mais pequenos para lhes tirarem tudo o que tinham. Elon, que era pequeno e emocionalmente estranho, foi espancado duas vezes. Acabou por emagrecer quatro quilos e meio.

Perto do final da primeira semana, os rapazes foram divididos em dois grupos e instruídos para se atacarem uns aos outros. «Foi uma loucura, alucinante», recorda Musk. Quase todos os anos um miúdo morria. Os monitores contavam essas histórias como avisos. «Não sejas estúpido como aquele imbecil imprestável que morreu no ano passado», diziam. «Não sejas o imbecil fraco e imprestável.»

Elon estava prestes a fazer dezasseis anos quando foi para o veldskool pela segunda vez. Estava mais desenvolvido, tinha um metro e oitenta e dois centímetros de altura e uma estrutura forte como um urso, e tinha aprendido judo. Assim, o veldskool não foi muito mau. «Naquela altura já tinha percebido que, se alguém me intimidasse, se lhe desse um murro forte no nariz não voltaria a perseguir-me. Podia levar uma enorme tareia, mas se lhe desse um valente murro no nariz nunca mais me perseguia.»

Na década de 1980 a África do Sul era um lugar violento, onde eram comuns os ataques com metralhadoras e as mortes por esfaqueamento. Numa ocasião, ao saírem de um comboio para irem assistir a um dos concertos de música antiapartheid, Elon e Kimbal tiveram de passar por uma poça de sangue junto de um cadáver que ainda tinha a faca espetada na cabeça. Durante o resto da noite, ouviram o barulho peganhento do sangue nas solas das sapatilhas a colar-se ao chão.

A família Musk tinha pastores-alemães que eram treinados para atacar qualquer pessoa que corresse junto à casa. Quando tinha seis anos, Elon estava a correr na rua e o seu cão preferido atacou-o, arrancando-lhe um enorme pedaço de carne das costas. No Serviço de Urgências, quando se preparavam para o suturar, ele resistiu a ser tratado enquanto não lhe prometeram que o cão não seria castigado. «Não vão matá-lo, pois não?», perguntou Elon. Garantiram-lhe que não. Enquanto conta a história, Musk faz uma pausa e olha para o vazio durante muito tempo. «E depois, mataram o raio do cão.»

As suas experiências mais dolorosas tiveram lugar na escola. Durante muito tempo foi o aluno mais novo e baixo da turma. Tinha dificuldade em perceber as pistas sociais. Não era naturalmente empático e não tinha o desejo nem o instinto de ser adulador. Em resultado disso, costumava ser atormentado por rufiões, que se aproximavam dele e lhe davam murros no rosto. «Quem nunca levou um murro no nariz não faz ideia de como isso afeta uma pessoa para o resto da vida», confessa.

Uma manhã, antes de as aulas começarem, um aluno que andava na palhaçada com um grupo de amigos chocou contra ele. Elon empurrou-o. Houve uma troca de palavras. O rapaz e os amigos perseguiram Elon durante o intervalo e encontraram-no a comer uma sanduíche. Aproximaram-se por trás, deram-lhe pontapés na cabeça e empurraram-no por um lance de escadas de cimento. «Sentaram-se em cima dele e continuaram a bater-lhe e a dar-lhe pontapés na cabeça», conta Kimbal, que estava sentado ao pé do irmão. «Quando acabaram, nem sequer consegui reconhecer-lhe a cara. Era uma bola de carne tão inchada que quase não se viam os olhos.» Elon foi levado para o hospital e faltou à escola durante uma semana. Décadas mais tarde, ainda fazia cirurgias corretivas para tentar reconstruir os tecidos no interior do nariz.

Porém, as mazelas físicas eram insignificantes quando comparadas com as feridas emocionais infligidas pelo seu pai, Errol Musk, um carismático e engenhoso fantasista que agia por conta própria e que ainda hoje atormenta Elon. Depois da luta na escola, Errol ficou do lado do miúdo que esmurrou o rosto do filho. «O rapaz tinha acabado de perder o pai, que se suicidou, e Elon chamou-lhe estúpido», conta Errol. «Elon tinha tendência para chamar estúpidas às pessoas. Como posso culpar aquela criança?»

Quando, por fim, Elon teve alta do hospital, o pai repreendeu-o. «Tive de ficar de pé uma hora a ouvi-lo gritar comigo, a chamar-me idiota e a dizer-me que era um inútil», recorda Elon. Kimbal, que teve de assistir à invetiva, afirma que foi a pior memória da sua vida. «O meu pai perdeu a cabeça, passou-se, como acontecia muitas vezes. Ele tinha zero compaixão.»

Tanto Elon como Kimbal, que deixaram de falar com o pai, afirmam que a sua alegação de que foi Elon quem provocou o ataque é descabida e o perpetrador acabou por ser enviado para uma casa de correção por causa disso. Dizem que o pai é um fabulista volátil com tendência para contar histórias mirabolantes repletas de fantasia, por vezes deliberadas e outras delirantes. Alegam que ele tem uma natureza de Jekyll e Hyde. Num momento podia ser simpático, e no seguinte passar uma hora ou mais a proferir duros insultos. Terminava todas as tiradas dizendo a Elon que era patético. Elon tinha de permanecer de pé e não podia afastar-se. «Era tortura mental», afirma Elon, fazendo uma longa pausa e comovendo-se um pouco. «Não há dúvida que ele sabia tornar tudo terrível.»

Quando telefonei a Errol, ele conversou comigo durante quase três horas e manteve-se em contacto regular com telefonemas e mensagens de texto ao longo dos dois anos seguintes. Estava ansioso para me falar e enviar-me fotografias das coisas boas que proporcionou aos filhos, pelo menos durante os períodos em que os seus negócios como engenheiro corriam bem. A determinada altura conduzia um Rolls Royce, construiu uma cabana no mato com os filhos e recebeu esmeraldas em bruto de um proprietário de uma mina na Zâmbia, até que o negócio faliu.

Porém, admite que encorajou a dureza física e emocional. «As experiências deles comigo devem ter feito com que o veldskool parecesse muito inofensivo», afirma, acrescentando que a violência fazia parte da experiência de aprendizagem na África do Sul. «Dois seguravam-nos enquanto outro nos batia na cara com um pau e objetos do género. Os novos alunos eram obrigados a lutar com o rufião da escola logo no primeiro dia de aulas.» Reconhece com orgulho que exerceu «uma autocracia extremamente severa direcionada para os perigos da rua» com os filhos. Depois, faz questão de acrescentar: «Mais tarde, Elon aplicou a mesma autocracia rígida a ele próprio e a outras pessoas.»


Elon Musk, em criança, junto ao seu pai, Errol Musk, com quem atualmente não mantém uma relação

«Alguém disse uma vez que todos os homens tentam corresponder às expectativas do pai ou corrigir os seus erros», escreveu Barack Obama no seu livro de memórias, «e acho que isso pode explicar o meu problema em particular.» No caso de Elon Musk, o impacto que o pai teve na sua mente iria manter-se durante muito tempo, apesar de muitas tentativas de afastamento, tanto físico como psicológico. Os seus humores oscilavam entre o iluminado e o sombrio, jovial e obstinado, distante e emocional, com mergulhos ocasionais num «modo de demónio» que era temido por todos aqueles que o rodeavam. Ao contrário do pai, ele viria a ser carinhoso com os filhos, mas o seu comportamento também sugeria um perigo que tinha de ser constantemente combatido: a desagradável expectativa de, como disse a mãe, «poder tornar-se igual ao pai». Este é um dos tropos mais ressonantes da mitologia. Até que ponto a épica busca do herói de Guerra das Estrelas requer a exorcização dos demónios legados por Darth Vader e a luta contra o lado negro da Força?

«Com uma infância como a que teve na África do Sul, penso que é preciso encontrar maneiras de se fechar a nível emocional», afirma a sua primeira mulher, Justine, mãe de cinco dos seus dez filhos vivos. «Se o nosso pai está sempre a chamar-nos imbecis e idiotas, talvez a única resposta seja desligar tudo no íntimo para abrir uma dimensão emocional cujas ferramentas ele não tinha para processar.» Esta válvula emocional que lhe permitia desligar-se pode tê-lo tornado insensível, mas também fez dele um inovador que gosta de correr riscos. «Elon aprendeu a desligar o medo», diz Justine. «Quando desligamos o medo, talvez também tenhamos de desligar outras coisas, como a alegria ou a empatia.»

O stress pós-traumático da sua infância também incutiu nele uma aversão pelo contentamento. «Penso que ele não sabe saborear o sucesso e cheirar as flores», afirma Claire Boucher, a artista conhecida como Grimes e mãe de três dos seus filhos. «Penso que ele foi condicionado na infância para acreditar que a vida é dor.» Musk concorda. «A adversidade fez de mim quem sou», explica. «O meu limiar de dor tornou-se muito elevado.»

Em 2008, durante um período particularmente infernal da sua vida, depois de os três primeiros foguetões lançados pela SpaceX terem explodido e quando a Tesla estava à beira da falência, ele acordava muito agitado e contava a Talulah Riley, que se tornaria a sua segunda mulher, as coisas horríveis que o pai lhe dizia. «Eu ouvia-o a usar as mesmas frases», diz ela. «Aquilo teve um efeito profundo no modo como ele age.» Quando recordava aquelas memórias, Elon desligava e parecia desaparecer atrás dos olhos cor de aço. «Creio que não tinha consciência de como tudo ainda o afetava porque pensava naquilo como algo da infância», declarou Riley. «Mas ficou com um lado infantil, quase atrofiado. Dentro do homem continua a existir uma criança, uma criança que está parada diante do pai.»

Fora deste caldeirão, Musk desenvolveu uma aura que por vezes faz com que pareça um extraterrestre, como se a sua missão a Marte fosse a aspiração de voltar para casa e o seu desejo de construir robôs humanoides a procura de afinidade. Não ficaríamos de todo chocados se ele arrancasse a camisa e descobríssemos que não tem umbigo e que não nasceu neste planeta. No entanto, a sua infância também o tornou demasiado humano, um rapaz duro, mas vulnerável, que decidiu embarcar em buscas épicas.

Musk desenvolveu um fervor que escondia a patetice, e uma patetice que escondia o fervor. Um pouco desconfortável com o corpo, como um homem grande que nunca foi atleta, caminhava com a passada de um urso com um espírito de missão e movimentos de dança que pareciam ter sido ensinados por um robô. Com a convicção de um profeta, falava da necessidade de alimentar a chama da consciência humana, de sondar o universo e de salvar o nosso planeta. De início pensei que era apenas teatro, conversas motivadoras para incentivar o moral das equipas e fantasias de podcast de um homem-criança que leu demasiadas vezes À Boleia Pela Galáxia. Contudo, quanto mais me deparava com essa convicção, mais passei a acreditar que o espírito de missão fazia parte do que o motivava. Enquanto outros empreendedores se esforçavam por desenvolver uma visão do mundo, ele desenvolvia uma visão cósmica.

A sua herança e educação tornaram-no por vezes insensível e impulsivo. Também o levaram a ter uma tolerância extremamente elevada ao risco. Ele conseguia calculá-lo com frieza e também o abraçava com fervor. «Elon quer o risco pelo risco», diz Peter Thiel, que se tornaria seu sócio nos primeiros tempos da PayPal. «Parece gostar do risco e, na verdade, em certas alturas até parece viciado nele.»

Musk tornou-se uma daquelas pessoas que se sentem mais vivas quando um furacão se aproxima. «Nasci para uma tempestade e a calma não me satisfaz», afirmou Andrew Jackson certa vez. O mesmo se passa com Musk. Ele desenvolveu uma mentalidade defensiva que incluía uma atração, por vezes um desejo, por tempestade e drama, tanto no trabalho como nas relações românticas, pelas quais se esforçou mas que não conseguiu manter. Prosperava nas crises, nos prazos e nos enormes picos de trabalho. Quando enfrentava desafios difíceis, a tensão costumava mantê-lo acordado à noite e fazia-o vomitar. Porém, também o energizava. «Ele é um íman de drama», diz Kimbal. «É a sua compulsão, o tema da sua vida.»


O ano de 2021 ficou marcado por 31 lançamentos de foguetes da SpaceX

No início de 2022 — depois de um ano marcado por 31 lançamentos de foguetes da SpaceX, pela marca de um milhão de carros vendidos pela Tesla e de se tornar o homem mais rico do mundo —, Musk falou com pesar sobre a sua compulsão para criar dramas. «Preciso de mudar de mentalidade, sair do modo de crise, que é como tenho funcionado nos últimos catorze anos, pelo menos, se não a maior parte da minha vida», disse-me.

Foi um comentário melancólico, não uma resolução de Ano Novo. Ao mesmo tempo que se comprometia a mudar, comprava, em segredo, ações do Twitter, o melhor recreio do mundo. Nesse mês de abril, eclipsou-se para a casa que o seu mentor, Larry Ellison, o fundador da Oracle, possui no Havai, na companhia da atriz Natasha Bassett, uma namorada ocasional. Tinha-lhe sido oferecido um lugar no conselho de administração do Twitter, mas durante o fim de semana chegou à conclusão de que não era suficiente. Estava na sua natureza querer o controlo total. Assim, decidiu fazer uma OPA hostil para adquirir a empresa. Em seguida, viajou para Vancouver para se encontrar com Grimes. Esteve acordado com ela até às cinco da manhã a jogar um novo jogo de guerra e de construção de impérios, o Elden Ring. Assim que terminou, pôs o seu plano em marcha e entrou no Twitter. «Fiz uma oferta», anunciou.

Ao longo dos anos, sempre que se encontrava num lugar mais sombrio ou se sentia ameaçado, Musk relembrava os horrores de ser maltratado no recreio. Agora, tinha a possibilidade de ser o dono do recreio.
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De Napoleão a Beethoven: as últimas palavras das figuras mais importantes da história.

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Todos nós gostaríamos que nossas últimas palavras ficassem registradas para a eternidade, mas nesses últimos momentos de vida é complicado pensar em algo engenhoso. Ada Nuño para El Confidencial:


Aunque a todos nos gustaría que nuestras últimas palabras quedarán registradas para la eternidad como interesantes y poéticas, lo cierto es que en esos últimos momentos de vida a veces es complicado ponerse a pensar algo lo suficientemente ingenioso como para dejar al mundo. Sin embargo, algunas figuras históricas si tuvieron esa suerte, o al menos eso es lo que ha quedado registrado que salió de sus labios antes de espirar.

Quizá por sorprendentes, misteriosas o graciosas, o porque cuadran mucho con la idea que tenemos del personaje, algunas de ellas son conocidas por todos. Aquí recopilamos algunas de las mejores, por personajes que supieron morir con estilo.

Francia, el Ejército, Josefina

Supuestamente, esas fueron las últimas palabras de Napoleón Bonaparte antes de morir el 5 de mayo de 1821 en la isla de Santa Elena, donde se encontraba recluido. ¿Murió envenenado con arsénico? A día de hoy la causa exacta de su muerte sigue sin estar clara. De ser ciertas sus últimas palabras, dijo lo que probablemente para él era más importante, incluida Josefina, la viuda cinco años mayor que él con la que vivió una turbulenta (aunque ha pasado a la historia como romántica) historia de amor durante 13 años de matrimonio.

¿Tú también, Bruto, hijo mío?

¿Dijo acaso Julio César tal frase? Quién sabe, pero es la que ha pasado a la historia como expresión de la traición más inesperada, cuando el emperador vio entre los conspiradores a su hijo.


Julio César.

Plutarco afirma que no dijo nada y Suetonio que quizá pudo decir en griego: "¿También tú; hijo?". Pero la frase específica que todos conocemos fue difundida por la tragedia de William Shakespeare. Eso sí, mucho más épica y chula fue la que se le atribuye a Nerón: "¡Qué artista se pierde el mundo!".

Luz, más luz

Bastante místicas fueron las últimas palabras del escritor Goethe, que según parece en su lecho de muerte habría dicho "Licht! Mechr licht!" o, lo que es lo mismo, "luz, más luz", lo que se interpreta como un último deseo de adquirir más conocimientos, una iluminación, a las puertas de su muerte. Curiosamente, las de Carl Jung "¡qué maravilla, qué maravilla!" también parece muy poética, enmarcada dentro de esos últimos momentos en los que nadie sabe qué se ve.

Señor, le pido perdón, no lo hice a propósito

Se supone que esta frase tan tierna y triste salió de los labios de María Antonieta estando en el patíbulo antes de morir. Al pisar el pie de su verdugo, se volvió hacia él y se excusó de esta manera. Al contrario que su marido, no dio ningún discurso ante el pueblo antes de que le cortaran la cabeza.

A Crátero (o al más fuerte)

Mucho se ha hablado ya de las que serían las últimas palabras del conquistador macedonio Alejandro Magno cuando murió en el palacio de Nabucodonosor en Babilonia, con 32 años. Lo más probable es que dijese que dejaba su inabarcable imperio a Crátero (Krater'oi) su general más querido, pero como este no estaba, el resto decidió convenientemente escuchar que había dicho (Krat'eroi) o, "al más fuerte".

Nunca debí cambiarme del scotch a los martinis

Supuestamente es la frase que le dijo Humphrey Bogart a su querida Lauren Bacall, mirándola fijamente a los ojos, antes de morir por culpa de un cáncer de esófago con 57 años. Bastante acorde con el personaje. De cualquier manera hay muchas leyendas en torno a esos epitafios dichos por actores míticos.

También Marlene Dietrich, según se cuenta, dejó una frase para la posteridad cuando echó a un sacerdote que venía a hacerle la extremaunción: "¿De qué voy a hablar yo con usted? Tengo una cita inminente con su jefe".

Lástima, lástima, demasiado tarde

La muerte del compositor Ludwig van Beethoven es, según las leyendas, una de las más épicas de la historia. No solo (se supone) levantó el puño al cielo como un general dando órdenes a su ejército, ante un trueno espantoso que sonaba en el momento exacto de su fallecimiento, sino que las leyendas dicen que de sus labios salieron frases tan poéticas como "Aplaudid, amigos míos, la comedia ha terminado" o "oiré en el cielo", a propósito de su sordera.

En realidad, sus últimas palabras registradas son menos épicas pero más realistas: "Lástima, lástima, demasiado tarde", cuando se le dijo que su editor le había regalado doce botellas de vino que, por supuesto, no iba a disfrutar.
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O problema e a solução das patentes de informática

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A criação do sistema operacional foi coletiva e não tinha interesses pecuniários. Foi, em grande medida, obra de estudantes. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:


A Constituição dos Estados Unidos tem uma excepcional preocupação com os direitos de propriedade intelectual. Tão excepcional que, antes das Emendas, a única ocasião em que aparecia uma referência explícita a direitos individuais era esta: “O Congresso terá o poder […] de promover o Progresso da Ciência e das Artes práticas, assegurando, por tempo limitado, aos Autores e Inventores o Direito exclusivo sobre seus respectivos Escritos e Descobertas.” A ideia dos redatores da Constituição, explica Robert Nisbet, era que, “no sentido de gerar ou promover a prosperidade e o bem-estar dos norte-americanos, não havia nada mais importante do que assegurar a criatividade da mente humana.”

Os EUA são mais o país das patentes do que o país dos direitos inalienáveis. Os direitos inalienáveis não raro servem para empurrar coisas com patentes. Um exemplo disso é a indústria farmacêutica, que primeiro usa dinheiro público para se desenvolver, depois cria patentes privadas e obriga o Estado (nos EUA e onde mais der) a pagar pelos medicamentos patenteados. O caso das patentes de remédios mostra que a história é muito mais complexa do que gostariam de dizer os liberais do Twitter; afinal, o criador de uma patente tem o interesse em eliminar a concorrência de medicamentos sem patente, ou com patentes mais baratas. A situação mais fácil de isso ocorrer é com o uso off label de medicamentos antigos que perderam a patente – como a ivermectina para covid, por exemplo. Quanto aos conflitos entre os interesses dos laboratórios e da saúde pública, eu recomendo os artigos de Paula Schmitt, que costuma desse assunto em seus textos (como este sobre os opioides e este sobre o PrEP).

O corpo político dos EUA não tem nem 300 anos, e sua hegemonia no mundo ocidental ainda não completou 100 anos. Assim, podemos dizer que toda essa ordem que os liberais exaltam é experimental e vem lutando para resistir ao teste do tempo. Sem dúvida é uma ordem mais exitosa que o comunismo; mas também está longe de alcançar a estabilidade milenar do feudalismo e do Império Romano, que a precederam. A Espanha não teve uma hegemonia milenar, mas sua ascendência global durou bem mais do que cem anos.

Mas vamos ao assunto prometido, que é o da informática. Junto com a indústria farmacêutica, a informática se habilita a constituir um império global de patentes norte-americanas. O ungido número 1 para essa missão foi Bill Gates. A despeito de toda a retórica do self made man que o American way tanto prega, William Henry Gates III não é um mero aluno que largou a faculdade e aparentava estar fadado a se sair mal na vida. Ele tem uma senhora árvore genealógica ligada a bancos dos Estados Unidos, e, como lembra Flávio Gordon, é filho de um ex-diretor da Planned Parenthood – que é uma paraestatal do governo dos EUA. Aliás, não é de estranhar que uma pessoa tão importante na oligarquia daquele país termine por reunir os dois pilares das patentes: a informática (com o Windows) e a indústria farmacêutica (com “filantropia” de “controle de natalidade” e “vacinação”).

Na virada dos anos 80 para 90, parecia que a Microsoft, de Bill Gates, seria a única opção para computadores domésticos, detentora de um monopólio de sistemas operacionais. Todos os computadores de escritórios e casas, ao menos no mundo ocidental, tinham tudo para ser um monopólio da empresa de Bill Gates. Como isso fere a combalida lei antitruste, a empresa foi processada pelos Estados Unidos na virada do século, mas deu em nada.

Houve, porém, uma reviravolta que impediu esse monopólio de se tornar realidade: ninguém previu que um punhado de estudantes do MIT quisesse criar tecnologia sem patente. A figura de liderança nesse processo foi Richard Stallman. Em 1983 ele começou o projeto de fazer um sistema operacional com código aberto e livre, o GNU. De onde ele tirou esse nome? Stallman queria fazer um sistema operacional parecido com um chamado Unix, que tem patente, usando engenharia reversa. Ele queria fazer, portanto, um sistema Não Unix. Acrescentando a letra G à frente, tem-se GNU, que significa “GNU Não é Unix” e é um acrônimo recursivo. O símbolo do projeto é o gnu que ilustra este texto.

A criação do sistema operacional foi coletiva e não tinha interesses pecuniários. Foi, em grande medida, obra de estudantes. Para estudar, é preciso ter acesso ao código; e, uma vez que você tenha criado um código e queira melhorá-lo, é preciso que as pessoas saibam que aquele é o seu código e que é com você que elas devem falar sobre ele. Ora, no sistema de patentes ao estilo Gates, o código é segredo comercial e não dá para estudá-lo, exceto como exercício de engenharia reversa. Stallman gosta de usar a culinária como metáfora: códigos são como receitas, programadores são como cozinheiros, e ambas as classes gostam de trocar receitas para se aprimorar. Assim, a sociedade como um todo se beneficia do aprimoramento do conhecimento. E por isso é preciso que os códigos não sejam segredos comerciais guardados a sete chaves.

Por isso, em 1985, Richard Stallman publica o Manifesto GNU que lança as bases para criar a Licença Pública Geral GNU, conhecida pela sigla em ingês “GNU GPL”. A primeira versão da licença foi lançada em 1989, e pode ser lida aqui. A licença GNU tem uma patente porque a lei obriga, mas já na primeira linha se lê: “Todos podem copiar e distribuir cópias verbatim deste documento, mas não podem alterá-lo.” A dona da patente dessa licença é a Fundação do Software Livre (FSF, na sigla em inglês), criada por Stallman. E a licença patenteada pela FSF deveria ser usada gratuitamente por quem quisesse.

No começo, era expressamente voltada para programadores, como se pode ver pelo começo da cláusula 1: “Você pode copiar e distribuir verbatim cópias do código fonte do programa tal como o recebera, desde que…”.

Graças a essa possibilidade de ser reconhecido pelo trabalho sem precisar pensar em dinheiro, um jovem cidadão finlandês da minoria étnica sueca, chamado Linus Torvalds, registrou sob a Licença GNU (versão 2) o Linux, um núcleo de sistema operacional tipo Unix – era tipo Unix, mas, tal como o GNU, não é Unix. Isto aconteceu em 1991, quando Torvalds tinha 22 anos. Stallman tinha 38 anos à época, e o núcleo era justamente o que ele e sua equipe não conseguiam desenvolver. Em 1991, portanto, surgiu a primeira alternativa ao Windows, o GNU/Linux, popular e erroneamente conhecido como Linux.

As pessoas cometem esse erro porque o GNU/Linux, diferentemente do Windows ou do iOS (da Apple), não designa um sistema operacional específico, mas sim uma espécie de árvore genealógica. Se cada programador (ou equipe de programadores) é livre para aprimorar o trabalho alheio, o natural é que os sistemas operacionais vão se sucedendo uns aos outros. Os espécimes dessa árvore genealógica se chamam “distribuição”, ou “distro”. Eu, por exemplo, uso o Debian. Os novatos costumam usar o Mint, que é “filho” do Ubuntu, que é “filho” do Debian. Isso não quer dizer que o Debian seja um sistema parado no tempo: eu uso o Debian 12; tal como o Windows, as distribuições GNU/Linux vão tendo novas versões. É outro tipo de evolução: os sistemas mais velhos podem se renovar enquanto dão origem a sistemas mais novos, que, a seu turno, também vão se renovando. Existe demanda por sistemas diferentes porque existem usuários de computador com demandas diferentes. Eu, por exemplo, gosto de sistemas mais enxutos e não me incomodo de gastar um tempo aprendendo coisas novas, como usar linha de comando. O “neto” do Debian, porém, é fácil de usar (não exige linha de comando) e parece Windows.

No mesmo ano em que o GNU/Linux estava pronto para uso educacional, o Brasil assinava a lei de informática. Muita coisa poderia ter acontecido se tivéssemos acesso a computadores e se tivéssemos alguma iniciativa análoga à Embrapa na área. O máximo que tivemos foi a distribuição Kurumin, um “filho” brasileiro já falecido do Debian. Foi coisa de estudante universitário e de entusiastas de computação. Não é da minha época e eu só sei da história por meio de material sobre ela. É exíguo. Aqui vocês podem ver o criador do Kurumin, Carlos Eduardo Morimoto da Silva, falando do projeto ainda em funcionamento.

A GNU GPL foi profícua também fora do mundo da programação. A Wikipédia e seus projetos associados, como Wikimídia, permitem o compartilhamento e a edição gratuitas de imagens, textos e informações, criaram uma licença chamada “Creative Commons” que é baseada no projeto GNU.

Ao que parece, portanto, os Pais Fundadores estavam errados ao supor que o controle da propriedade intelectual estava fundamentalmente atrelada ao conhecimento. Se os hackers liderados por Stallman não hackeassem o sistema de patentes introduzindo o GNU GPL, o desenvolvimento do conhecimento estaria atrasado. E cabe a nós, no Brasil, usar essa liberdade de programar para alcançar a nossa soberania em informática.

 

Sopa de ganso

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O único objetivo da esquerda é impedir que a direita governe. Fernando Savater para The Objective:


En recuerdo de Amando de Miguel, que se preocupaba de estas cosas.

George Borrow, don Jorgito el Inglés, fue uno de los enamorados de España más pintorescos del siglo XIX (él creía que los pintorescos eran los españoles, como suele pasar). Recorrió nuestro país repartiendo Biblias y haciendo proselitismo protestante, lo que le permitió escribir La Biblia en España, un retrato divertido, a veces perspicaz y otras disparatado de aquellos compatriotas. Entre las mil anécdotas que cuenta, hay una que prefiero y que revela la pertinacia de alguno de nuestros rasgos de carácter. En su peregrinar misionero, Borrow se acercó a un campesino que no sabía mucho de letras y que por tanto prestó poco interés al ejemplar de la Biblia. El inglés comenzó su sermón proselitista pero el labriego cortó su elocuencia: «Mire usted, don Inglés, yo no creo en la religión católica, que es la verdadera, de modo que mucho menos voy a creer en esa suya, que es falsa». Así se acababa en el siglo XIX con las fake news.

A veces me siento como don Jorgito cuando intento hablar de política con mis conciudadanos. Aunque estén decepcionados de los políticos de izquierdas y sus turbios cambalaches, nunca aceptarán ninguna idea que venga de la derecha por eficaz que resulte. La izquierda es la verdad, todo el mundo lo sabe, y un español si es ateo será ateo católico y de izquierdas: la derecha representa irremediablemente el error y el mal, como el protestantismo, y no digamos la extrema derecha (de Isabel Díaz Ayuso prefiero no hablar). Los españoles, como descubrió Borrow, son tan feligreses cuando creen como cuando no creen. Sólo conocen una razón para la apostasía: castigar a sus correligionarios. Si se hacen protestantes será para fastidiar a los católicos, indignos de su fe auténtica; y lo mismo cuando voten a la derecha, para que aprenda la izquierda que no basta tener razón. De momento ya hay bastantes españoles de izquierdas (como todos) con ganas de dar un escarmiento a los izquierdistas reinantes, pero por desgracia aún no los suficientes. Aclaremos una cosa: las personas de izquierdas en España no viven de manera fundamentalmente distinta que los de derechas. Buscan su provecho y el de su familia, tienen claros sus derechos y dudan de sus obligaciones, rehúyen el bulto si enfrentarse a las injusticias gubernamentales comporta riesgos, quieren lo mejor para todos pero sin sacrificios personales… Hay entre ellos personas solidarias y abnegadas (vivimos en un país cristiano, por suerte) pero no en mayor número que entre la gente de derechas. La diferencia fundamental es que, llegado el momento, unos votan a los candidatos que se presentan como de izquierdas y están seguros de que ese gesto borra los pecados políticos de su alma. El mayor mérito de la izquierda resulta ser que impide gobernar a la derecha, lo cual es un gran logro: porque aunque los gobiernos de izquierdas cometan los mismos errores y abusos (¡o más!) que los otros, lo hacen de manera involuntaria, forzados por las circunstancias o engañados por indeseables en sus filas; en cambio, los gobernantes de derechas cometen sus atropellos con deliberación y deleite y si parece que aciertan en algo es porque aún no han revelado sus verdaderas intenciones. La buena voluntad siempre disculpa las estupideces y mangoneos de la izquierda, mientras que el perverso afán de lucro contamina todo lo que la derecha promueve, aunque sea repartir a los niños regalos de Navidad.

En España (que incluye y con privilegios al País Vasco y Cataluña) el carlismo representa desde el siglo XIX esa amenaza reaccionaria de la extrema derecha que tanto preocupa hoy a los espantados por Vox. No hay ideología política más contraria a los valores progresistas que el separatismo que subvierte la igualdad entre los ciudadanos y apoya el descarado egoísmo colectivo de las regiones, además de convertir a los vecinos en extranjeros en su propio país. Pues, resulta que la izquierda ha descubierto en el separatismo unos aliados inapreciables. Y, desde luego, Pedro Sánchez confía en ellos para perpetuarse en el poder que las urnas le regatean, pagando el precio en amnistía y concesiones fragmentadoras que haga falta, por indecente que sea. Los medios informativos como El País o la Ser, que pudieron llamarse un día herederos de la Ilustración pero hoy son sencillamente gubernamentales, bautizan como coaliciones «progresistas» a la impía amalgama entre socialistas del oportunismo, separatistas fanáticos o aprovechados, deudores del dinero extranjero que viene de los financiadores más repugnantes, etc. Y gran parte de los votantes, tan dóciles a la feligresía como el campesino analfabeto que rechazó a Borrow, están convencidos de que han salvado a España de los tentáculos del Capitalismo Internacional. La verdad es que resulta difícil ilusionarse por las biblias que hoy venden en España…
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O profeta dos palavrões

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Dizer a verdade não é dizer qualquer coisa que venha à cabeça. Vilma Gryzinski para a edição impressa de Veja:


O Partido Socialista de Salvador Allende “era mais de esquerda do que o Partido Comunista” (palavra de um general da KGB). O presidente intrigava os cubanos por seus hábitos caros e provocou deliberadamente extremos de radicalização do Chile. Quando tudo deu errado, suicidou-se. Podem apostar que ninguém vai dizer isso nos cinquenta anos do golpe militar no Chile. Ao contrário, todos estarão dedicados a acender velas no altar do martírio de Allende, sem aproveitar para entender como os dois blocos da Guerra Fria disputaram cada centímetro do território chileno, tirando todos os truques sujos da caixa de ferramentas. Os Estados Unidos ganharam, por pouco — e em questão de anos a atuação do governo Nixon foi vasculhada no Senado americano, propiciando até leis que proibiam esse tipo de intervenção. Nada nem remotamente parecido aconteceu em Cuba ou na União Soviética, que perderam o Chile, mas ganharam a narrativa, ajudados por um regime simplesmente bárbaro e uma ditadura personalista, ao contrário dos comparativamente legalistas militares brasileiros que jamais escorregaram para uma figura como a de Augusto Pinochet.

O golpe no Chile deixa assim de servir como um dos exemplos mais trágicos do que acontece quando a radicalização se infiltra e uma parte do país passa a ver a outra como o inimigo a ser eliminado — sendo plenamente correspondida. A redemocratização latino-americana abrandou os discursos e fez ressurgir a procura por consensos, o caminho nada sexy dos praticantes da conciliação política. O discurso brutalista em que cada palavra é um punhal à procura da garganta do inimigo ressurgiu nos últimos anos e envenena até chefes de Estado que deveriam pelo menos fingir respeito pelos cargos em que se encontram. A ascensão de Javier Milei na Argentina é exemplo de como os profetas dos palavrões destruidores confundem “dizer a verdade” com dizer barbaridades. Numa entrevista a uma rádio colombiana, Milei caprichou: “Que é no fundo um socialista? É um lixo, um excremento humano que, por não suportar o brilho de outro ser humano, está disposto a que todos fiquem na miséria”. O presidente Gustavo Petro, que se considera um gênio do ex-Twitter, qualificou: “Isto é o que dizia Hitler”. É um exemplo de como até a sardônica lei de God­win, aquela segundo a qual tende a 100% a probabilidade de que em discussões na internet surja uma comparação envolvendo Hitler ou os nazistas, deixou de ter efeito dissuasivo. Os partidários de Milei (mileinaristas?) e de Petro acharam o máximo.

“A obstinação e a convicção exagerada são a prova mais evidente da estupidez”, dizia Montaigne. “Existe algo mais convicto, resoluto, desdenhoso, contemplativo, grave e sério do que um asno?”. O fino Montaigne largou tudo e passou anos trancado na torre do castelo da família, longe do horror das guerras religiosas que assolaram a França. Parece incrível que esse conflito grassou nos países mais adiantados do mundo à época, da mesma forma que soa absurdo o universo tétrico da tortura e das execuções secretas das ditaduras latino-americanas de apenas cinquenta anos atrás. Não podemos esquecer como foi custoso sair disso e como não foram os palavrosos, mas os negociadores que conseguiram navegar com humildade para o outro lado.

Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858
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Toffoli lança suspeitas sobre o STF

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Com o revisionismo histórico da prisão de Lula, Dias Toffoli lança as piores suspeitas sobre o Supremo, como se fosse órgão instável, parcial e submisso aos ventos políticos do momento. Editorial do Estadão:


Diz-se, com inteira razão, que todos os cidadãos têm de respeitar o Judiciário e cumprir suas decisões. O funcionamento livre da Justiça é aspecto essencial do Estado Democrático de Direito. Mas infelizmente, algumas vezes, parece que o Judiciário se esforça para não ser respeitado, para não ser levado a sério, para ser visto como um órgão político, submisso às circunstâncias do poder do momento.

Na quarta-feira, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli aproveitou o ensejo de um despacho – no qual anulou todos os atos da Justiça tomados a partir do acordo de leniência firmado pela Odebrecht – para fazer um revisionismo histórico. Segundo ele, a prisão do presidente Lula foi um dos “maiores erros judiciários da história do País”; “uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado”; “uma verdadeira conspiração com o objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”; “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições”.

De fato, a Justiça, depois de um longo vai e vem, entendeu que o princípio da presunção da inocência impede o início da execução da pena antes do trânsito em julgado. De fato, a Justiça, depois de longos anos, entendeu que a 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba não era competente para julgar os casos envolvendo Lula, anulando as condenações correlatas.

Mas nada disso obnubila a obviedade mais cristalina. De uma forma ou de outra, com mais ou menos intensidade, o STF participou de todos esses atos, tanto os que conduziram Lula à prisão como aqueles que o tiraram de lá. E igualmente se pode dizer dos atos que retiraram a elegibilidade de Lula e dos que a devolveram. Se, como disse Toffoli, os processos contra Lula foram “uma verdadeira conspiração com o objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”, o STF participou integralmente dessa conspiração.

Não há nenhum problema em que a Justiça corrija seus erros. Na verdade, é seu dever primário. Mas que o faça em tempo razoável e, principalmente, de forma honesta, sem politizar os assuntos. No entanto, quando Dias Toffoli profere uma decisão como a de quarta-feira, produz-se uma grave inversão. As revisões da Justiça, que deveriam servir para fortalecer a confiança no Poder Judiciário – explicitando que não há compromisso com o erro –, perdem seu caráter pedagógico, gerando a impressão contrária. Para a população, parecem confirmar-se seus piores temores: uma Justiça parcial e instável, preocupada em estar alinhada com os ventos da política.

O habeas corpus de Lula foi impetrado no Supremo em 2018. Se eram tão graves e evidentes os elementos indicando a parcialidade do juiz, por que houve tanta demora em seu julgamento? No caso da decisão pela incompetência do foro, o Judiciário tardou sete anos. Toda essa história é longa e tem muitos aspectos. Mas os fatos não podem ser negados. Por causa dessa flagrante incompetência da Justiça – no sentido corriqueiro do termo: a incapacidade de aplicar o Direito em tempo razoável e de forma estável –, os casos contra Lula prescreveram, os indícios de corrupção reunidos perderam sua serventia processual e o mérito dos processos nunca foi julgado por um magistrado competente e imparcial, como deveria ter ocorrido.

As palavras de Dias Toffoli devem servir, por contraste, de alerta a todo o Judiciário; em especial, ao STF. Respeitem o cidadão e sua memória. A Justiça tem de ser funcional. Ninguém deseja – não é isso o que prevê o Estado Democrático de Direito – um Judiciário voluntarista, instável, histérico ou politizado.

Fala-se que o STF, por ser o órgão de maior hierarquia do Judiciário, tem o direito de errar por último. A afirmação é um tanto cínica, a desprestigiar o próprio Supremo. Na verdade, nenhum órgão estatal tem o direito de errar. De toda forma, tenha ou não esse direito, é mais que hora de reconhecer que o STF tem abusado da possibilidade de errar.
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O caminho de Ithaca

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Mudamos de vocabulário. Saem as reformas, entra o gasto público. Fernando Schüler para a revista Veja:


“Ser rico não é pecado”, escreveu João Camargo, do Grupo Esfera, em um artigo, dias atrás, que causou certo frisson na internet. Talvez sem querer, ele tocou em um tabu brasileiro. Todo mundo se lembra de Tom Jobim dizendo que “no Brasil, sucesso é ofensa pessoal”. A frase é ótima, mas talvez seja apenas uma meia verdade. O que somos é um país ranzinza. Metade acha o Neymar um horror porque apoiou o Bolsonaro; a outra metade acha o mesmo do Chico Buarque, pela razão inversa. Uma coisa me parece inegável: temos um problema com o sucesso econômico. E não há coisa que desperte maior onda de xingamentos, no mundo da virtude fake, na internet, do que defender os mais ricos. Não há pecado nenhum em ser um rico no Brasil. Você passa a semana na Faria Lima e o fim de semana na Fazenda Boa Vista, e ninguém vai lhe incomodar. O que você não pode é elogiar. Tentar passar essa ideia absurda de que o “empreendedor”, que “inova”, “cria riqueza e empregos”, contribui para o desenvolvimento do país. Isso aí passa de qualquer limite. Foi um pouco do que o João experimentou com seu artigo. E confesso achar ótimo que alguém se arrisque a dizer alguma coisa fora do script.

O ponto-chave desse debate gira em torno da ideia algo difusa de que “os ricos devem pagar a conta”. Sob certo aspecto, é uma ideia óbvia. O sistema tributário deve ser progressivo, não parece haver dúvidas sobre isso. O problema é que há algo que se perde nessa conversa e que também é perfeitamente óbvio: que, em vez de focar na ideia obsessiva de “aumentar impostos”, deveríamos discutir antes o custo e a eficiência do Estado. Ainda agora, o governo envia para o Congresso um projeto de Orçamento prevendo zerar o déficit, no ano que vem, com um pequeno detalhe: projeta 168 bilhões de reais em novas receitas sem um mísero aceno de corte de despesas, reforma ou ajuste estrutural na máquina pública.

O que está em jogo, no fundo, é um debate sobre como conduzir o país. Debate que empurramos para debaixo do tapete na disputa eleitoral. Para quem gosta de estudar essas coisas, sugiro a leitura de um livro dos economistas Alberto Alesina, Carlos Favero e Francesco Giavazzi, chamado Austeridade. Eles analisaram processos de ajuste fiscal feitos ao longo de mais de quatro décadas, no âmbito da OCDE, e chegaram a uma conclusão à qual deveríamos prestar atenção: políticas de ajuste feitas à base de aumento de impostos “têm sido amplamente recessivas, do curto para o médio prazo (três a quatro anos à frente)”, além de aumentar o endividamento; ajustes pautados pelo corte estrutural da despesa pública, em condições adequadas, mostraram exatamente o efeito contrário. Aumentar impostos tende a ser um remédio efêmero. Induz o país a empurrar com a barriga as reformas que precisa fazer, não mexe com o crescimento da máquina estatal, sua despesa orgânica, direitos adquiridos, privilégios e ineficiências. E gera um problema de confiança. Não atacando o problema estrutural, contrata-se a necessidade de um novo ajuste, a um custo eventualmente ainda maior. Em boa medida, foi o que o Brasil viveu na grande crise de 2015 e 2016, com a qual, diga-se de passagem, aprendemos muito pouco.

O interessante, no caso brasileiro, é que não teríamos o menor problema em cortar despesas perfeitamente inúteis da máquina estatal. Leio que o Congresso quer 5,5 bilhões de reais para torrar na campanha do ano que vem, no fundão eleitoral. É só um exemplo. Que tal fazer o que o Congresso mesmo decidiu, na PEC Emergencial, que é reduzir os incentivos fiscais a 2% do PIB, menos da metade do que existe hoje? Ou quem sabe cortar todos os salários do funcionalismo acima do teto constitucional? O CLP fala em 25 300 pessoas ganhando acima de 41 600 reais, em um país em que 90% das pessoas ganham menos de 3 500 reais. Quem sabe também revisamos o oceano de emendas parlamentares, orçadas em 37 bilhões de reais, para 2024, que faz o Brasil ser um campeão global nesse tipo de dispersão orçamentária. Só para provocar um pouco, por que não ensaiamos uma “democracia sueca”? Algo do tipo: em vez de um chefe de poder ir 102 vezes de jatinho para casa, no fim de semana, vai em voo de carreira. Ou, quem sabe, reduzir à metade, de 25 para doze ou treze, o número de assessores por deputado? Um dia visitei o Parlamento sueco e perguntei quantos assessores havia lá para cada parlamentar. “Perto de um”, me respondeu uma deputada. Lembro que saí pelas ruas frias de Estocolmo pensando que realmente temos um problema.

O ponto é que o Brasil tem uma enorme oportunidade. Dado nosso incrível volume de desperdício de dinheiro público, podemos produzir um ajuste estrutural no gasto público sem cortar rigorosamente nada que seja efetivamente importante para o país. Na reforma da Previdência instituímos uma idade mínima para as aposentadorias. Alguém acha que era importante que as pessoas se aposentassem antes dos 50 anos? De novo, é só um exemplo. Não há bala de prata. Nosso destino é enfrentar o que o economista Alfred Kahn chamava de “tirania das pequenas decisões”. Cada ineficiência removida não vai resolver, isoladamente, nosso problema estrutural. Seu custo político será alto e seu benefício, relativamente pequeno. No conjunto, porém, as reformas apontam um caminho. Alfred Kahn gostava de citar o exemplo da ferrovia que ligava a cidade de Ithaca a Nova York. Nos dias difíceis do inverno, a ferrovia era a única opção para sair ou chegar à cidade. Ao longo do ano, porém, a maioria optava pelo transporte aéreo ou rodoviário. O resultado é que a ferrovia morreu à míngua. Ela quebrou não porque as pessoas quisessem que isso acontecesse, mas porque o custo de cada pequena decisão individual para que ela permanecesse funcionando era muito alto. É a mesmíssima coisa com as decisões que precisamos tomar. Aprovar aqueles itens da reforma administrativa? Terminar com as “licenças-prêmio”, com as férias de sessenta dias? Os salários fora do teto? As “progressões por tempo de serviço”? Avaliar desempenho dos servidores? Nada disso resolve o problema, e a cada uma dessas decisões haverá uma enorme confusão. O ponto é o que é que precisa ser feito. É nosso caminho para Ithaca. O caminho seguro, feito à base de infinitas pequenas decisões, e mesmo por isso o mais difícil de trilhar.

O Brasil tem sido um país incerto. Nos anos 90, fizemos o Plano Real, as privatizações, as agências reguladoras, as OSs, a lei de responsabilidade fiscal. Depois de 2016 ensaiamos um novo ciclo reformista com o teto de gastos, a reforma trabalhista, a da Previdência, a independência do Banco Central, o marco do saneamento. Agora mudamos de vocabulário. Saem de cena as reformas, entra o gasto público. E com ele a demanda por mais impostos. Talvez seja nosso DNA. País sem convicção modernizadora, sem apetite para perseverar em escolhas difíceis que, lá no fundo, todos sabem que precisamos fazer.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858
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