sábado, 30 de setembro de 2023

Do bullying na escola à compra do Twitter, a vida de Elon Musk em livro.

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Sofreu bullying na infância, deixou de falar com o pai e comprou o Twitter. Da vida pessoal aos negócios, a história de Elon Musk é contada numa nova biografia. O Observador pré-publica um excerto:


A infância de Elon Musk na África do Sul não foi fácil. Aos seis anos, enquanto corria na rua, foi atacado pelo seu cão preferido. Na escola era vítima de bullying e, certa vez, chegou a ficar internado durante uma semana após ter sido empurrado de umas escadas e pontapeado no rosto. Ao ter alta, relembra, ficou uma hora de pé a ouvir o pai gritar e a chamá-lo de “idiota” e de “inútil”.

Da relação com o pai — com quem deixou de falar — aos negócios, que vão desde os carros elétricos à Inteligência Artificial, a vida de Elon Musk é contada ao longo de 500 páginas. A compra do Twitter, que várias vezes disse ser a sua rede social preferida, acontece num ano em que, revela pela primeira vez, percebeu que precisava de “mudar de mentalidade” e “sair do modo de crise”.

“Elon Musk” é o título do livro da autoria de Walter Isaacson, que também escreveu as biografias de Steve Jobs, Albert Einstein, Benjamin Franklin e Henry Kissinger. O Observador faz a pré-publicação de um excerto do livro que conta a história do multimilionário, editado pela Objectiva (uma chancela da Penguin Random House), que chega às livrarias na próxima terça-feira, dia 12 de setembro.


Musa de Fogo

Durante a infância passada na África do Sul, Elon Musk soube o que era sentir dor e aprendeu a sobreviver-lhe.

Aos doze anos, foi levado de autocarro para um veldskool, um acampamento de sobrevivência na selva. «Era um Senhor das Moscas paramilitar», recorda. Os miúdos recebiam pequenas rações de comida e água e tinham autorização — na verdade, eram encorajados — para lutar por elas. «O bullying era considerado uma virtude», diz Kimbal, o seu irmão mais novo. Os rapazes grandes aprendiam depressa a dar socos na cara aos mais pequenos para lhes tirarem tudo o que tinham. Elon, que era pequeno e emocionalmente estranho, foi espancado duas vezes. Acabou por emagrecer quatro quilos e meio.

Perto do final da primeira semana, os rapazes foram divididos em dois grupos e instruídos para se atacarem uns aos outros. «Foi uma loucura, alucinante», recorda Musk. Quase todos os anos um miúdo morria. Os monitores contavam essas histórias como avisos. «Não sejas estúpido como aquele imbecil imprestável que morreu no ano passado», diziam. «Não sejas o imbecil fraco e imprestável.»

Elon estava prestes a fazer dezasseis anos quando foi para o veldskool pela segunda vez. Estava mais desenvolvido, tinha um metro e oitenta e dois centímetros de altura e uma estrutura forte como um urso, e tinha aprendido judo. Assim, o veldskool não foi muito mau. «Naquela altura já tinha percebido que, se alguém me intimidasse, se lhe desse um murro forte no nariz não voltaria a perseguir-me. Podia levar uma enorme tareia, mas se lhe desse um valente murro no nariz nunca mais me perseguia.»

Na década de 1980 a África do Sul era um lugar violento, onde eram comuns os ataques com metralhadoras e as mortes por esfaqueamento. Numa ocasião, ao saírem de um comboio para irem assistir a um dos concertos de música antiapartheid, Elon e Kimbal tiveram de passar por uma poça de sangue junto de um cadáver que ainda tinha a faca espetada na cabeça. Durante o resto da noite, ouviram o barulho peganhento do sangue nas solas das sapatilhas a colar-se ao chão.

A família Musk tinha pastores-alemães que eram treinados para atacar qualquer pessoa que corresse junto à casa. Quando tinha seis anos, Elon estava a correr na rua e o seu cão preferido atacou-o, arrancando-lhe um enorme pedaço de carne das costas. No Serviço de Urgências, quando se preparavam para o suturar, ele resistiu a ser tratado enquanto não lhe prometeram que o cão não seria castigado. «Não vão matá-lo, pois não?», perguntou Elon. Garantiram-lhe que não. Enquanto conta a história, Musk faz uma pausa e olha para o vazio durante muito tempo. «E depois, mataram o raio do cão.»

As suas experiências mais dolorosas tiveram lugar na escola. Durante muito tempo foi o aluno mais novo e baixo da turma. Tinha dificuldade em perceber as pistas sociais. Não era naturalmente empático e não tinha o desejo nem o instinto de ser adulador. Em resultado disso, costumava ser atormentado por rufiões, que se aproximavam dele e lhe davam murros no rosto. «Quem nunca levou um murro no nariz não faz ideia de como isso afeta uma pessoa para o resto da vida», confessa.

Uma manhã, antes de as aulas começarem, um aluno que andava na palhaçada com um grupo de amigos chocou contra ele. Elon empurrou-o. Houve uma troca de palavras. O rapaz e os amigos perseguiram Elon durante o intervalo e encontraram-no a comer uma sanduíche. Aproximaram-se por trás, deram-lhe pontapés na cabeça e empurraram-no por um lance de escadas de cimento. «Sentaram-se em cima dele e continuaram a bater-lhe e a dar-lhe pontapés na cabeça», conta Kimbal, que estava sentado ao pé do irmão. «Quando acabaram, nem sequer consegui reconhecer-lhe a cara. Era uma bola de carne tão inchada que quase não se viam os olhos.» Elon foi levado para o hospital e faltou à escola durante uma semana. Décadas mais tarde, ainda fazia cirurgias corretivas para tentar reconstruir os tecidos no interior do nariz.

Porém, as mazelas físicas eram insignificantes quando comparadas com as feridas emocionais infligidas pelo seu pai, Errol Musk, um carismático e engenhoso fantasista que agia por conta própria e que ainda hoje atormenta Elon. Depois da luta na escola, Errol ficou do lado do miúdo que esmurrou o rosto do filho. «O rapaz tinha acabado de perder o pai, que se suicidou, e Elon chamou-lhe estúpido», conta Errol. «Elon tinha tendência para chamar estúpidas às pessoas. Como posso culpar aquela criança?»

Quando, por fim, Elon teve alta do hospital, o pai repreendeu-o. «Tive de ficar de pé uma hora a ouvi-lo gritar comigo, a chamar-me idiota e a dizer-me que era um inútil», recorda Elon. Kimbal, que teve de assistir à invetiva, afirma que foi a pior memória da sua vida. «O meu pai perdeu a cabeça, passou-se, como acontecia muitas vezes. Ele tinha zero compaixão.»

Tanto Elon como Kimbal, que deixaram de falar com o pai, afirmam que a sua alegação de que foi Elon quem provocou o ataque é descabida e o perpetrador acabou por ser enviado para uma casa de correção por causa disso. Dizem que o pai é um fabulista volátil com tendência para contar histórias mirabolantes repletas de fantasia, por vezes deliberadas e outras delirantes. Alegam que ele tem uma natureza de Jekyll e Hyde. Num momento podia ser simpático, e no seguinte passar uma hora ou mais a proferir duros insultos. Terminava todas as tiradas dizendo a Elon que era patético. Elon tinha de permanecer de pé e não podia afastar-se. «Era tortura mental», afirma Elon, fazendo uma longa pausa e comovendo-se um pouco. «Não há dúvida que ele sabia tornar tudo terrível.»

Quando telefonei a Errol, ele conversou comigo durante quase três horas e manteve-se em contacto regular com telefonemas e mensagens de texto ao longo dos dois anos seguintes. Estava ansioso para me falar e enviar-me fotografias das coisas boas que proporcionou aos filhos, pelo menos durante os períodos em que os seus negócios como engenheiro corriam bem. A determinada altura conduzia um Rolls Royce, construiu uma cabana no mato com os filhos e recebeu esmeraldas em bruto de um proprietário de uma mina na Zâmbia, até que o negócio faliu.

Porém, admite que encorajou a dureza física e emocional. «As experiências deles comigo devem ter feito com que o veldskool parecesse muito inofensivo», afirma, acrescentando que a violência fazia parte da experiência de aprendizagem na África do Sul. «Dois seguravam-nos enquanto outro nos batia na cara com um pau e objetos do género. Os novos alunos eram obrigados a lutar com o rufião da escola logo no primeiro dia de aulas.» Reconhece com orgulho que exerceu «uma autocracia extremamente severa direcionada para os perigos da rua» com os filhos. Depois, faz questão de acrescentar: «Mais tarde, Elon aplicou a mesma autocracia rígida a ele próprio e a outras pessoas.»


Elon Musk, em criança, junto ao seu pai, Errol Musk, com quem atualmente não mantém uma relação

«Alguém disse uma vez que todos os homens tentam corresponder às expectativas do pai ou corrigir os seus erros», escreveu Barack Obama no seu livro de memórias, «e acho que isso pode explicar o meu problema em particular.» No caso de Elon Musk, o impacto que o pai teve na sua mente iria manter-se durante muito tempo, apesar de muitas tentativas de afastamento, tanto físico como psicológico. Os seus humores oscilavam entre o iluminado e o sombrio, jovial e obstinado, distante e emocional, com mergulhos ocasionais num «modo de demónio» que era temido por todos aqueles que o rodeavam. Ao contrário do pai, ele viria a ser carinhoso com os filhos, mas o seu comportamento também sugeria um perigo que tinha de ser constantemente combatido: a desagradável expectativa de, como disse a mãe, «poder tornar-se igual ao pai». Este é um dos tropos mais ressonantes da mitologia. Até que ponto a épica busca do herói de Guerra das Estrelas requer a exorcização dos demónios legados por Darth Vader e a luta contra o lado negro da Força?

«Com uma infância como a que teve na África do Sul, penso que é preciso encontrar maneiras de se fechar a nível emocional», afirma a sua primeira mulher, Justine, mãe de cinco dos seus dez filhos vivos. «Se o nosso pai está sempre a chamar-nos imbecis e idiotas, talvez a única resposta seja desligar tudo no íntimo para abrir uma dimensão emocional cujas ferramentas ele não tinha para processar.» Esta válvula emocional que lhe permitia desligar-se pode tê-lo tornado insensível, mas também fez dele um inovador que gosta de correr riscos. «Elon aprendeu a desligar o medo», diz Justine. «Quando desligamos o medo, talvez também tenhamos de desligar outras coisas, como a alegria ou a empatia.»

O stress pós-traumático da sua infância também incutiu nele uma aversão pelo contentamento. «Penso que ele não sabe saborear o sucesso e cheirar as flores», afirma Claire Boucher, a artista conhecida como Grimes e mãe de três dos seus filhos. «Penso que ele foi condicionado na infância para acreditar que a vida é dor.» Musk concorda. «A adversidade fez de mim quem sou», explica. «O meu limiar de dor tornou-se muito elevado.»

Em 2008, durante um período particularmente infernal da sua vida, depois de os três primeiros foguetões lançados pela SpaceX terem explodido e quando a Tesla estava à beira da falência, ele acordava muito agitado e contava a Talulah Riley, que se tornaria a sua segunda mulher, as coisas horríveis que o pai lhe dizia. «Eu ouvia-o a usar as mesmas frases», diz ela. «Aquilo teve um efeito profundo no modo como ele age.» Quando recordava aquelas memórias, Elon desligava e parecia desaparecer atrás dos olhos cor de aço. «Creio que não tinha consciência de como tudo ainda o afetava porque pensava naquilo como algo da infância», declarou Riley. «Mas ficou com um lado infantil, quase atrofiado. Dentro do homem continua a existir uma criança, uma criança que está parada diante do pai.»

Fora deste caldeirão, Musk desenvolveu uma aura que por vezes faz com que pareça um extraterrestre, como se a sua missão a Marte fosse a aspiração de voltar para casa e o seu desejo de construir robôs humanoides a procura de afinidade. Não ficaríamos de todo chocados se ele arrancasse a camisa e descobríssemos que não tem umbigo e que não nasceu neste planeta. No entanto, a sua infância também o tornou demasiado humano, um rapaz duro, mas vulnerável, que decidiu embarcar em buscas épicas.

Musk desenvolveu um fervor que escondia a patetice, e uma patetice que escondia o fervor. Um pouco desconfortável com o corpo, como um homem grande que nunca foi atleta, caminhava com a passada de um urso com um espírito de missão e movimentos de dança que pareciam ter sido ensinados por um robô. Com a convicção de um profeta, falava da necessidade de alimentar a chama da consciência humana, de sondar o universo e de salvar o nosso planeta. De início pensei que era apenas teatro, conversas motivadoras para incentivar o moral das equipas e fantasias de podcast de um homem-criança que leu demasiadas vezes À Boleia Pela Galáxia. Contudo, quanto mais me deparava com essa convicção, mais passei a acreditar que o espírito de missão fazia parte do que o motivava. Enquanto outros empreendedores se esforçavam por desenvolver uma visão do mundo, ele desenvolvia uma visão cósmica.

A sua herança e educação tornaram-no por vezes insensível e impulsivo. Também o levaram a ter uma tolerância extremamente elevada ao risco. Ele conseguia calculá-lo com frieza e também o abraçava com fervor. «Elon quer o risco pelo risco», diz Peter Thiel, que se tornaria seu sócio nos primeiros tempos da PayPal. «Parece gostar do risco e, na verdade, em certas alturas até parece viciado nele.»

Musk tornou-se uma daquelas pessoas que se sentem mais vivas quando um furacão se aproxima. «Nasci para uma tempestade e a calma não me satisfaz», afirmou Andrew Jackson certa vez. O mesmo se passa com Musk. Ele desenvolveu uma mentalidade defensiva que incluía uma atração, por vezes um desejo, por tempestade e drama, tanto no trabalho como nas relações românticas, pelas quais se esforçou mas que não conseguiu manter. Prosperava nas crises, nos prazos e nos enormes picos de trabalho. Quando enfrentava desafios difíceis, a tensão costumava mantê-lo acordado à noite e fazia-o vomitar. Porém, também o energizava. «Ele é um íman de drama», diz Kimbal. «É a sua compulsão, o tema da sua vida.»


O ano de 2021 ficou marcado por 31 lançamentos de foguetes da SpaceX

No início de 2022 — depois de um ano marcado por 31 lançamentos de foguetes da SpaceX, pela marca de um milhão de carros vendidos pela Tesla e de se tornar o homem mais rico do mundo —, Musk falou com pesar sobre a sua compulsão para criar dramas. «Preciso de mudar de mentalidade, sair do modo de crise, que é como tenho funcionado nos últimos catorze anos, pelo menos, se não a maior parte da minha vida», disse-me.

Foi um comentário melancólico, não uma resolução de Ano Novo. Ao mesmo tempo que se comprometia a mudar, comprava, em segredo, ações do Twitter, o melhor recreio do mundo. Nesse mês de abril, eclipsou-se para a casa que o seu mentor, Larry Ellison, o fundador da Oracle, possui no Havai, na companhia da atriz Natasha Bassett, uma namorada ocasional. Tinha-lhe sido oferecido um lugar no conselho de administração do Twitter, mas durante o fim de semana chegou à conclusão de que não era suficiente. Estava na sua natureza querer o controlo total. Assim, decidiu fazer uma OPA hostil para adquirir a empresa. Em seguida, viajou para Vancouver para se encontrar com Grimes. Esteve acordado com ela até às cinco da manhã a jogar um novo jogo de guerra e de construção de impérios, o Elden Ring. Assim que terminou, pôs o seu plano em marcha e entrou no Twitter. «Fiz uma oferta», anunciou.

Ao longo dos anos, sempre que se encontrava num lugar mais sombrio ou se sentia ameaçado, Musk relembrava os horrores de ser maltratado no recreio. Agora, tinha a possibilidade de ser o dono do recreio.
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