Para ser capaz de escrever pura e simplesmente, há que se ter o direito de escrever mal e desagradar o leitor, seja ele quem for. Luiz Felipe Pondé para a Folha de São Paulo:
Vivemos
sob um choque que quem melhor definiu, ainda no início do século 20,
foi o crítico americano H.L Mencken: "um choque de estupidez".
Vivesse ele hoje, sentiria saudade da inteligência do início do século 20.
A
estupidez de hoje é um misto de gente querendo se manter relevante nas
mídias —até um psicodiagnóstico oportuno pode ajudar no engajamento nas
redes— e o imperativo de repetir o bê-á-bá de sempre: sou contra o racismo, sou a vítima da hora, adoro todas as cores do arco-íris.
Há
uma tendência natural em nós para a estupidez em manada. Uma das suas
características é vir fantasiada de causas sublimes. No que se refere ao
pensamento público, o estrago é ancestral. Vejamos um exemplo muito
significativo em termos históricos.
Em
1934, no primeiro congresso dos escritores soviéticos, que apresentaria
para o mundo a imensa capacidade criativa do novo regime dos operários
libertos da exploração capitalista, Isaac Bábel foi escolhido para
discursar. Nascido em Odessa, na Ucrânia, Bábel foi, a princípio, um
devoto do experimento soviético.
Em
1926, Bábel publica sua coletânea de contos "A Cavalaria Vermelha",
traduzida no Brasil pela Cosac & Naify como "O Exército de
Cavalaria". Sucesso estrondoso, ele seria visto como figura jovem e
promissora no elenco de escritores soviéticos de então.
No
seu discurso —uma aula de ironia pura que lhe custou muito—, Bábel
afirma que de tanto amar o leitor, ele se tornara um idiota. O que ele
queria dizer com tal afirmação escatológica?
Primeiro,
quem é esse leitor? Trata-se do operário soviético. Escrever para ele
era a suprema função de um escritor no experimento soviético. Havia que
se esmerar em agradá-lo nos temas, na forma, no conteúdo, enfim, não agradar o leitor operário revolucionário seria o fim da carreira de qualquer escritor.
Firme
nessa intenção, Bábel confessa que acabara por não escrever mais nada e
se sentir um idiota. O autor explicará, brevemente, o sentido da sua
afirmação dramática.
A
tese sobre a profissão de escritor na União Soviética que ele apresenta
é a seguinte: para escrever bem, há que se ter o direito de escrever
mal.
Aliás, para ser capaz de escrever pura e simplesmente, há que se ter o direito de escrever mal e desagradar o leitor, seja ele quem for.
Se
na União Soviética era obrigatório agradar o leitor, era impossível
escrever bem porque nenhum escritor era livre o suficiente para
desagradar o leitor.
Sem
a liberdade de fracassar no intento supremo de agradar o leitor, a
capacidade literária de um escritor acabaria por ser exaurida no medo de
desagradar alguém.
Podemos resumir sua tese da seguinte forma: a capacidade de escrever bem depende da liberdade para escrever mal.
Ou,
dito de outra forma: para poder escrever bem se faz necessário poder
desagradar o leitor, mesmo que se trate de um leitor sublime.
No
que isso se aproxima do choque de estupidez em que vivemos? Simples: só
podemos escrever bem, pensar ideias sem medo, se podermos desagradar
quem se sinta ofendido pelo que dizemos sem sermos perseguidos pela lei.
No fundo de uma alma estúpida reside alguém que exige do escritor que ele lhe agrade e lhe deixe feliz. O politicamente correto e juridicamente correto são agentes a favor da estupidez no mundo em que vivemos.
P.S.:
Na coluna da semana passada, de 31 de julho, um leitor chamou atenção
para o fato de que o Sinai fora tomado dos egípcios em 1967 na Guerra
dos Seis Dias. Sim, de fato foi. Entretanto, nunca foi plano integrar o
Sinai ao território israelense, como foi o caso do Golan.
A
"ocupação" estratégica estabeleceu, basicamente, uma espécie de
trincheira de fortificações, a "linha Bar-Lev", ao longo da margem
oriental do Suez.
Em
1973, os egípcios atacam essa linha, com sucesso inicial, alcançando a
margem oriental, no Sinai, com intenção de invadir o Neguev. Sendo mais
uma vez rechaçados, Israel fortalece a "ocupação", chegando mesmo a
fazer do Sinai destino turístico "raiz". Ainda nas mãos de Israel, eu mesmo "peregrinei" pelo deserto e pelas praias do Sinai em 1980.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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