BLOG ORLANDO TAMBOSI
O projeto de paz lulístico não foi adiante, e o país fica agora virando as páginas da partitura para quem toca os pratos. A crônica de Orlando Tosetto para a Crusoé:
Imagine
o amigo que o príncipe regente de Andorra visse na Guerra do Paraguai
uma oportunidade de aumentar a relevância do seu país no tabuleiro
internacional e se metesse a formular e anunciar um “plano de paz” para o
conflito, aproveitando-se da sua neutralidade. E que esse plano fosse
muito simples: o Brasil ceder o Mato Grosso a Solano López. E que o
príncipe andorrano fosse além e ainda pusesse no Brasil uma parte da
culpa pela guerra, talvez por ostentar diante da grama rala paraguaia
nosso mato tão grossão, tão cheio de veios.
Bem
comparando, essa foi a ideia que o nosso jamais assaz louvado
presidente apresentou ao mundo para resolver a pamonha lá na Ucrânia:
que ela cedesse a Crimeia à Rússia. E deu seus motivos. O primeiro é
que, convenhamos, uma Crimeia a mais, uma Crimeia a menos, que diferença
faz? O segundo é que ela, Ucrânia, também não tem nada de inocente
nessa história. Alguma coisa ela há de ter feito para ser assim
invadida, bombardeada, massacrada; de algum modo ela atiçou a Rússia.
Ostentou uma Crimeia, pavoneou uma Odessa, sabe-se lá. De graça é que
não foi.
O
projeto de paz lulístico não foi adiante: por qualquer motivo
inexplicável, a Ucrânia, seus aliados e a Otan não aceitaram esse plano
sem jaças. Pelo contrário: até insinuaram, maldosamente, que o Brasil
não está neutro, que está dormindo demais no barulho (e que barulho) da
Rússia, quem sabe em troca de uma miçanga de gás, de um espelhinho de
fertilizante. Pegou mal com a Ucrânia, com a Otan, com todo o mundo,
menos com a Rússia.
Depois
disso, o senhor presidente foi à China e lá, cercado por crianças que
lhe sorriam com flores nos braços — tal e qual sem dúvida aconteceria se
ele resolvesse dar uma volta pela Praça XV ou pelo Largo da Concórdia
—, ele disse que o Brasil apoia essa história de China una, porque a
China é, sim, uma só (o que, na conversa da China, significa que Taiwan é
menos que uma, é nenhuma). Pegou mal de novo, desta vez com Taiwan, com
o Japão, com a Coreia do Sul, com os Estados Unidos, com os pacifistas e
até com os veganos.
Por
fim, o senhor presidente aceitou receber o chanceler russo, que veio
ver também outros países relevantes da região, outros players pesados
como Venezuela, Nicarágua e Cuba, todos governados por gente muito cara
ao coração do novo governo velho. E aceitou receber o chanceler não
meramente como amigo, mas sim como alguém de casa: como o jornalista Duda Teixeira bem notou nesta revista,
o chanceler aportou na terra brasilis em trajes de casual friday.
Chegou guapo, de tênis e agasalho, e murmura-se que foi só a muito custo
que o convenceram a não ir jantar no Alvorada de havaianas, bermuda e
camisa regata. Murmuram, mas, da minha parte, vejo nisso um gesto
simpático: nossa fama de terra acolhedora não é casual. Ganhamos em
carinho o que talvez percamos em formalidade, mas tudo bem, a gente
prefere assim mesmo.
E,
mesmo assim, pegou mal outra vez. Os países que até há pouco eram
nossos amigos reclamaram muito do Brasil aparecer por aí de braço dado
com China e Rússia, todo simpático às aspirações delas, todo deferente,
todo lencinhos, flores e risadinhas abafadas. Conhecendo o Brasil,
tiraram o país de trouxa.
Mas
não, não, não é nada disso. A verdade é que, no concerto das nações, o
Brasil fica virando as páginas da partitura para quem toca os pratos. No
simpósio das nações, o Brasil é o cara que vai e volta da cozinha com
as garrafas térmicas de café. No teatro das nações, o Brasil recebe
gorjetas nas portas dos camarotes. No baile das nações, o Brasil é o
gordão meio bobo que usa calças pula-brejo e é largado na sala das
crianças. No tabuleiro das nações, o Brasil é a cocada que sobra.
Pelo visto, nossa volta ao teatro das nações, nosso retorno do ostracismo começou com o pé esquerdo.
* * *
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”, disse, pela pena do Machado, o bom Brás Cubas.
O
Brasil – Marcela boa, Marcela humilde, Marcela sempre sorridente,
Marcela Amélia, Marcela do trisal – amará China e Rússia por muito mais
tempo e custará, comparativamente, muito menos.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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