Às vezes para escapar do hospício basta abrir a porta. E dar o primeiro passo. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
Consulto
o relógio do computador. Quatro e meia da tarde. Olho pela janela e o
céu não é nada convidativo à contemplação. Umas nuvens feias (e nuvens
raramente são feias) em meio a um azul desbotado. No horizonte, prédios
demais, araucárias de menos, uns ciprestes e uns pássaros voando em fila
indiana (juro!). Talvez chova. Talvez não. Ao meu redor, apenas o ruído
intermitente da rua e que por vezes confundo com silêncio.
Eis
que me dou conta: passei praticamente o dia inteiro discutindo os
muitos aspectos do linchamento virtual de um podcaster e da demissão de
um comentarista da TV Jovem Pan. Um amigo diz que isso. Outro diz que
aquilo. Um terceiro nos brinda com um link para algum absurdo que nos
revolta. Todos expressamos nossa indignação, um com palavras, outro com
emojis e outro com tantos pontos de exclamação quanto forem possíveis.
Os memes começam a chegar e, entre a culpa e o constrangimento, opto
pela risada inofensiva.
(Este
é aquele momento em que o chato, em toda a glória de sua chatice, vê
acender sobre a cabeça a crítica mordaz e ferina, nascida da sua
oh-que-esperteza!, que perspicácia! E que mores, ó tempora!
Satisfeitíssimo consigo mesmo, o chato, então, se permite manifestar
tamanha inteligência na forma de uma pergunta feita com aquela inflexão
irritantemente aguda que é a marca de todos os chatos indignados: quer
dizer que você ri de coisa séria?!).
Inofensiva,
mas não inócua, a risada. É bom saber que, fora do alcance das
multidões, a palavra ainda pulula e o discurso é livre, ou melhor, está
restrito apenas à nossa consciência e à nossa disposição em corrermos o
risco de sermos mal-entendidos. Um risco calculado de acordo com
variáveis como a capacidade de interpretação dos interlocutores, a
estranha relação de lealdade nas amizades virtuais e reais, bem como o
senso de humor apurado (apuradíssimo) daqueles que ainda se permitem rir
sem ter de pedir autorização à turma que o cerca. A risada me faz dar o
devido peso às coisas. E o que nasceu como um pesadelo muito do
palpável se transforma num daqueles sonhos modorrentos sobre algo
trivial.
Me
levanto. Vou lavar a louça. Não tem louça para lavar. Pego uns copos e
pratos limpos do armário, uns talheres reluzentes da gaveta, e começo a
lavá-los assim mesmo. De cima da mesa, ouço meu telefone vibrar várias
vezes. Dentro do aparelhinho, os amigos ainda não esgotaram as
possibilidades de veredito para o que aconteceu. Mas o que foi que
aconteceu mesmo? Um disse uma coisa; outro fez um gesto. Quantos foram
os mortos e feridos dessa batalha? Lavo a louça e reflito e quase me
corto e me pergunto se não é um caso de pedir para a Alexa tocar Ella
Fitzgerald. E, quando dou por mim, estou preocupado.
“Que
a cultura do cancelamento não tenha resultado em nenhum cadáver é um
milagre”, digo para o apartamento vazio. Concluo apressada (e talvez
equivocadamente) que é uma frase digna de ser usada num texto, neste
texto. Fecho a torneira, seco as mãos, procuro papel e caneta e... Como
era a frase mesmo? Ah, sim. Que a cultura do cancelamento não tenha
resultado em nenhum cadáver é um milagre. É preciso ter a pele grossa
para suportar essas chibatadas da vida. Nem todos têm. E, como vivemos
num mundo que muitas vezes vê na aceitação pela multidão o único sentido
para a vida, não é de se duvidar que uma hora ou outra um desses
cancelados chegue a uma conclusão não só fatídica, mas também trágica.
Largo
a caneta, me perguntando se deveria ou não incluir um “ainda” na frase.
É quando escuto barulhos no corredor. Será que minha vizinha, essa
mesma da risada espalhafatosa, sabe quem é Monark e Adrilles? Não que
ela seja ignorante; eu é que sou, já que não sei nem o nome dela.
Vizinhos curitibanos, sabe como é. Pelo menos digo “bom dia” se a
encontro no elevador. Mas perguntar o nome já é exagero. É coisa de
carioca. Voltando: será que minha vizinha tem uma opinião sobre esse
assunto? Será que ela já se imaginou na Alemanha nazista ou na União
Soviética stalinista? Se ela soubesse que passei o dia escrevendo, lendo
e discutindo liberdade de expressão, cultura do cancelamento e saúde
mental de celebridades canceladas, será que me consideraria louco ou um
profissional dedicado a seu ofício?
Encontro
refúgio para a minha loucura e/ou dedicação exacerbada na cadeira de
balanço. A palha trançada pinica minha pele. A Catota? Que bom que você
perguntou. Sei lá! Tá por aí. Quando ela quiser biscoitinho vai vir toda
dengosa e fingindo amor, a danada. Antes de me deixar levar pelo
romance policial que tenho em mãos, me permito uma última olhadela no
simulacro de vida, nas redes sociais onde tudo parecer acontecer, mas,
se você parar para pensar, nada acontece de fato.
Ao
constatar que todos os que conheço e estimo, e até uns que não conheço
ou não estimo, estão bem e continuam se xingando como se ter razão fosse
a coisa mais importante do Universo, solto um suspiro de alívio. Às
vezes para escapar do hospício basta abrir a porta. E dar o primeiro
passo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário