O civismo demo-liberal dos Portugueses constituiu o pano de fundo crucial das eleições. Os resultados vieram naturalmente depois. Coluna do professor João Carlos Espada para o Observador:
Já tudo terá sido dito sobre as eleições de 30 de Janeiro. Ainda assim, talvez valha a pena revisitar alguns aspectos marcantes.
1
Em primeiro lugar, não é certamente de somenos recordar a elevada e
ordeira participação eleitoral, sobretudo no clima de pandemia que ainda
vivemos. É um sinal inegável de civismo e de civilidade dos Portugueses
— bem como da sua confiança no ‘sistema’ ou/e no ‘regime’ demo-liberal
em que temos o privilégio de viver.
Convém
recordar, a propósito, que foi este mesmo ‘sistema’ ou/e ‘regime’ que
inúmeros panfletários terceiro-mundistas, de esquerda e de direita,
insistiram em atacar.
Por
outras palavras, o civismo demo-liberal dos Portugueses constituiu o
pano de fundo crucial das eleições. Os resultados vieram naturalmente
depois.
2 A maioria absoluta do Partido Socialista coloca-o sob acrescida responsabilidade.
Quer
retomar a tradição socialista liberal de Mário Soares? Ou vai preferir
retomar a retórica da “Frente de Esquerda contra a Direita”? A escolha
será inteiramente dos socialistas.
Por
outras palavras, já não há “geringonça” nem “ameaça da direita” para
justificar retóricas de “Frentes Populares” — que, aliás, justiça seja
feita, estiveram em boa parte ausentes da campanha eleitoral socialista.
Em boa parte também, creio que a campanha moderada dos socialistas,
liderada vincadamente por António Costa, terá contribuído para a sua
significativa vitória ao centro-esquerda, com o histórico declínio dos
partidos da esquerda radical — em meu entender muito bem-vindo, ainda
que tardio.
3 Um
desafio semelhante, embora simétrico, irá colocar-se ao espaço político
da oposição democrática não-socialista, ou do democrático
centro-direita — sobretudo o PSD, mas também o CDS, cuja perda de
representação parlamentar constitui, em meu entender, a pior notícia
destas eleições, tratando-se de um partido fundador da nossa democracia
liberal.
Diferentemente
da generalidade dos analistas, não creio que o segundo lugar do PSD
tenha ficado a dever-se ao facto de não se apresentar como “a direita”.
Não me recordo de que Sá Carneiro, ou Adelino Amaro da Costa, ou Aníbal
Cavaco Silva alguma vez se tenham apresentado prioritariamente como tal.
Mas todos eles se apresentaram com programas vincadamente alternativos
ao estatismo de inspiração socialista e profundamente favoráveis a uma
economia de mercado de matriz europeia e ocidental. “Libertação da
sociedade civil” foi uma das mais distintivas mensagens da oposição
democrática não-socialista.
Não
estou seguro de que o PSD ou o CDS tenham apresentado uma clara
alternativa ao estatismo de inspiração socialista — seguramente não
comparável às alternativas apresentadas por Sá Carneiro, Adelino Amaro
da Costa e Aníbal Cavaco Silva. (De certa forma, terá sido a Iniciativa
Liberal a apresentar mais vincadamente ideias inovadoras a favor da
economia de mercado e de empresa livre — o que certamente contribuiu
para estimular e elevar o debate eleitoral).
4
Vale a pena, no entanto, voltar à questão crucial da ilusória dicotomia
entre “Frente de Direita vs. Frente de Esquerda”. E vale a pena
recordar que Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral,
Aníbal Cavaco Silva e — já agora — Mário Soares nunca subscreveram essa
ilusória dicotomia entre “Frente de Direita vs. Frente de Esquerda”. Por
outras palavras, apresentaram-se como forças modernizadoras, hostis à
dicotomia primitiva entre “Frente Contra-Revolucionária vs. Frente
Revolucionária”, que tristemente marcou os anos 1920/30 na Europa
continental.
Em
rigor, Mário Soares, Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do
Amaral, e Aníbal Cavaco Silva — e, já agora, António Guterres, Marcelo
Rebelo de Sousa e Durão Barroso — partilhavam uma visão euro-atlantista e
não terceiro-mundista sobre o civilizado conflito político nas
democracias liberais: basicamente entre direita liberal-democrática vs.
esquerda liberal-democrática — e não simplesmente entre “frente de
direita” vs. “frente de esquerda”. Por outras palavras, todos eles
entendiam que a direita liberal-democrática e a esquerda
liberal-democrática se distinguiam e opunham naturalmente à direita
radical e à esquerda radical.
5
Não é possível exagerar a importância crucial desse comum entendimento
liberal-democrático entre os rivais centro-direita e centro-esquerda.
Foi esse comum entendimento liberal-democrático que permitiu pôr fim ao
arcaísmo terceiro-mundista do PREC, fundado na patética dicotomia entre
“fascismo ou revolução” — um eufemismo revolucionário para a dicotomia
entre “frente de direita vs frente de esquerda”.
Mais
importante ainda, o comum entendimento liberal-democrático entre os
rivais centro-direita e centro-esquerda pós 25 de Abril permitiu a
restauração da democracia liberal em 25 de Novembro de 1975. E, mais
profundamente ainda, exprimiu e consagrou a ruptura intelectual com o
triste arcaísmo da I e da II Repúblicas entre nós — isto é o jacobinismo
autoritário da I República e o atavismo autoritário do chamado ‘Estado
Novo’.
Estes
tristes arcaísmos eram tristemente conhecidos na Europa demo-liberal
como “arcaísmo ibérico”. Foi imenso mérito de Mário Soares, Sá Carneiro,
Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral e Aníbal Cavaco Silva — bem
como, já agora, António Guterres, Jorge Sampaio, Marcelo Rebelo de Sousa
e Durão Barroso — quererem definitivamente romper com esse arcaísmo e
definitivamente entrar no clube democrático europeu.
Seria
útil recordar hoje estas escolhas decisivas. E talvez não fosse
deslocado exprimir um certo ‘snobismo liberal-democrático’ relativamente
aos panfletários terceiro-mundistas que insistem em retomar a retórica
terceiro-mundista do “arcaísmo ibérico”.
Post scriptum:
Jubileu de Platina. Completaram-se ontem, domingo 6 de Fevereiro, 70
anos de reinado de Isabel II. Voltarei certamente a este tema com mais
detalhe, mas gostaria desde já de recordar o sentido de honra, de dever,
de serviço, de moderação e de imparcialidade que sempre tem
caracterizado o seu reinado.
Isabel
II tem simbolizado acima de tudo a ancestral civilidade da democracia
liberal britânica, inesquecivelmente celebrizada nas palavras da
historiadora americana Gertrude Himmelfarb, parafraseando o historiador
francês Elie Halévy: “O verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ não é
que ela tenha sido poupada à revolução, mas que tenha assimilado tantas
revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem
recurso à Revolução.”
O
austro-britânico (Sir) Karl Popper gostava de argumentar que, no centro
desse “mistério Britânico não-revolucionário” estava o sentido de
“gentlemanship”. Dizia ele que “gentlemanship” queria dizer que cada
pessoa não se levava demasiado a sério, mas estava preparada para levar
muito a sério os seus deveres — sobretudo quando, à sua volta, a maioria
tendia apenas a reclamar os seus direitos.
Foi
com muito agradável surpresa que li no Daily Telegraph de Londres que o
Arcebispo de Canterbury prestou à Rainha um tributo muito Popperiano:
“Ela toma os seus deveres muito a sério, mas nunca se toma a si própria
demasiado a sério. […] ’Não é acerca de mim própria’ quase resume o seu
reinado.”
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário