No século XXI o termo “antirracismo” tem menos a ver com a firme oposição à discriminação e mais com uma espécie de profissão de fé, segundo a qual o racismo é a única explicação para os mais complexos problemas sociais e pessoas brancas são invariavelmente privilegiadas. Maria Clara Vieira para a Gazeta do Povo:
“Numa
sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser
antirracista”. Se a famosa frase da militante americana Angela Davis,
ex-membro do Partido Comunista dos Estados Unidos na época dos
movimentos pelos direitos civis, fosse apenas um apelo à identificação
de comportamentos e traços culturais remanescentes em sociedades
marcadas pela escravidão racial – como o Brasil e os Estados Unidos –
que continuam a surtir efeitos concretos na vida dos negros, a justa
luta contra o racismo talvez não estivesse imersa em tantas
controvérsias.
No
século XXI, contudo, o termo “antirracismo” tem menos a ver com a firme
oposição à discriminação e mais com uma espécie de profissão de fé,
segundo a qual o racismo é a única explicação para os mais complexos
problemas sociais e pessoas brancas são invariavelmente privilegiadas e
frágeis. Quem ousa discordar da premissa de que o preconceito racial é
tão inato e inevitável quanto um traço genético ou simplesmente busca
acrescentar nuances à discussão, é invariavelmente “cancelado” por
racismo e corre o risco de ter sua reputação queimada pelos tribunais
das redes. Não à toa, o linguista John McWorther, professor da
Universidade de Columbia, classifica o conjunto de práticas que marcam o
que chama de “Terceira Onda Antirracista” como uma nova religião.
Em
seu recém lançado “Woke Racism: How a New Religion has Betrayed Black
America” (“Racismo Woke: Como uma Nova Religião Traiu a América Negra”,
em tradução livre), ainda sem tradução para o português, McWorther,
colunista e autor best-seller do The New York Times, argumenta que a
militância antirracista emergida na última década opera não nos moldes
de uma causa social que beneficia seu público-alvo, mas de um credo
calcado em dogmas inquestionáveis (o que faz com que seus divergentes
sejam tratados como hereges) e uma seleta casta de sacerdotes cujos
sermões catárticos não fazem mais do que instilar emoções primárias e
conduzir rituais de expiação.
Incisivo
e irônico, McWorther não tem pudores de utilizar, por exemplo, o
canceladíssimo “denegrir” (“palavra cuidadosamente escolhida”,
complementa) e alerta, desde o início, que muitos de seus pares o verão
como um “traidor” por causa da obra, ainda que procure tratar os
ativistas com generosidade em meio às alfinetadas."Não precisamos supor
que todos os antirracistas façam isso cinicamente. Ouça aquele membro da
família, vizinho ou colega de trabalho que você conhece e que pensa
assim e pergunte a si mesmo se eles realmente dão qualquer indicação de
serem desesperados pelo poder. O antirracista da Terceira Onda
genuinamente odeia o racismo, como a maioria de nós”, defende. “Devemos
entendê-los — em parte por compaixão e em parte para evitar que destruam
nossas vidas. Isso só pode acontecer se os entendermos não como
lunáticos, mas como religiosos fervorosos”.
Cabe,
aqui, uma crítica às formulações do linguista: McWorther é
declaradamente ateu e progressista e, embora estes atributos não
invalidem seus argumentos, ao comparar o credo antirracista com a fé
judaico-cristã, o autor escorrega ao colocar no mesmo balaio os dogmas
do antirracismo e as “crenças inexplicáveis” dos religiosos. A
comparação entre as pautas identitárias e as religiões não é inédita e é
bastante fundamentada, mas McWorther se faria mais compreensível se
fizesse o esforço de demarcar a diferença entre religiosos “comuns” e
fanáticos, por exemplo.
A religião do antirracismo
Isto
posto, a crítica aos “eleitos” feita por McWorther remete às escritas
pelo economista Thomas Sowell (a quem o linguista tece elogios) em seu
“Os Ungidos”: "O que uma visão pode oferecer, e o que a visão
predominante do nosso tempo oferece de forma enfática, é um estado
especial de graça para aqueles que acreditam nela. (...) Em outras
palavras, aqueles que discordam com a visão predominante são vistos não
apenas como equivocados, e sim como pecadores. Para aqueles que têm essa
visão de mundo, os ungidos e os incipientes não debatem no mesmo
patamar moral ou jogam pelas mesmas regras frias da lógica e das
evidências".
De
sua parte, McWorther enumera os paralelos: na religião do antirracismo,
o “pecado original” é a “fragilidade branca”, teorizada pela
“sacerdotisa” Robin DiAngelo. Ao lado dela, estão o historiador Ibram X.
Kendi — eleito uma das pessoas mais influentes de 2020 pela revista
Time, ainda que se recuse deliberadamente a debater mesmo com ativistas
negros de esquerda que discordem de suas teses — e o escritor Ta-Nehisi
Coates, que afirmou não sentir nenhuma pena dos policiais e bombeiros
mortos no World Trade Center, uma vez que a polícia seria uma “ameaça da
natureza”.
Novamente,
o linguista se esforça para encontrar um campo comum: “sim, eu acredito
que ser branco na América automaticamente inclui certos privilégios não
declarados em termos de senso de pertencimento. As figuras de
autoridade têm as mesmas cores que você. Você é considerado dentro do
padrão. Você não está sujeito a estereótipos". O problema, diz
McWorther, é o que fazer diante desta condição.
“Os
eleitos devem ritualmente 'reconhecer' que possuem privilégios brancos,
com a consciência de que nunca podem ser absolvidos dele. (...) Esqueça
(f*da-se?) a civilidade ou mesmo a lógica — tudo gira em torno de como
você se sente e, especificamente, sobre o quanto você odeia a ordem
reinante", ironiza o autor, descrevendo reuniões escolares em Nova York
na qual os participantes entoavam trechos de “White Fragility”, de
DiAngelo, e “How to Be an Antiracist", de Kendi, “como se fossem
epístolas de São Pedro". Uma cena ritualística é descrita pelo
linguista: "Pense neste tipo, afirmando 'Oh, eu sei que sou um
privilegiado!’ enquanto levanta suas mãos para o alto, com as palmas
para fora, como um pentecostal”.
Redução da desigualdade
Ao
final da obra, McWorther propõe três medidas que, segundo ele, podem
beneficiar as comunidades negras nos Estados Unidos de forma concreta: a
descriminalização das drogas, ensinar as crianças a ler através do
método fônico de alfabetização — baseado na identificação de fonemas e
comprovadamente superior ao método “global”, no qual a criança memoriza o
significado da palavra inteira — e, por fim, a propagação da ideia de
quem nem todos precisam entrar na faculdade para ter uma vida digna, o
que fomentaria a valorização do ensino técnico e de outras portas de
entrada para o mercado de trabalho.
É
claro que o primeiro ponto, abraçado tanto pela esquerda quanto por
libertários e algumas correntes de liberais, é passível de discussão: o
fim da guerra às drogas não necessariamente leva à redução da violência
em áreas pobres. Os outros dois, contudo, são de fato receitas
razoavelmente simples que, longe de resolver todos os problemas oriundos
da desigualdade (entre eles, o racismo), representam um passo mais
relevante do que os rituais dos “eleitos”. Quer se concorde ou não com
todos os pontos, Woke Racism merece ser lido e divulgado sobretudo por
sua descrição precisa de uma “fé” sedutora da qual só se pode salvar
mediante uma crença inabalável na realidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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