BLOG ORLANDO TAMBOSI
Acalorados debates cara a cara, piadas e gestos dramáticos fazem parte do ritual da Câmara dos Comuns e espantam quem não está habituado a ele. Vilma Gryzinski:
“Atravessar
o corredor” é um gesto raro. Por isso, o parlamentar Christian Wakeford
causou tanto impacto na quarta-feira: ele deixou o Partido Conservador,
pelo qual foi eleito, e aderiu à bancada do Partido Trabalhista, de
oposição.
Foi
um protesto contra Boris Johnson e o rebuliço que ele vem causando com a
crise das festinhas depois do trabalho em pleno lockdown.
Ao
pé da letra, Wakeford não atravessou o corredor entre as duas bancadas
porque não tinha lugar para ele esperar sentado, na sua bancada
original, o momento de concretizar sua rebelião (obviamente, para os
conservadores, uma sórdida traição que acabou dando um fôlego extra a
Boris).
Os
parlamentares são 650 e só há 427 lugares nos bancos forrados de couro
verde, separados por uma mesa cheia de objetos estranhos na qual o
primeiro-ministro, ou seu representante, se reveza nos debates com o
líder da oposição todas as quartas-feiras.
Wakeford
esperou em pé, com outros parlamentares que não têm lugar garantido,
como os integrantes do governo e seus equivalentes na oposição (para
cada secretário em exercício, existe um “ministro sombra”, um
oposicionista pronto para assumir o lugar caso as urnas virem a maré).
Corre
o boato que outros cinco representantes conservadores poderiam
“atravessar o corredor”, revoltados com as desculpas esfarrapadas dadas
por Boris para as festinhas no sobrado número 10 de Downing Street,
misto de sede do governo e residência do primeiro-ministro.
Nos
Estados Unidos, “atravessar o corredor” significa negociar com a
oposição projetos de lei que são considerados vitais – uma coisa que Joe
Biden só conseguiu fazer no começo de seu governo, embora tenha
prometido que seria uma atitude permanente.
O
Parlamento britânico é muito mais antigo do que a antiga colônia, com
raízes remontando ao século XIII.Como houve apenas um breve período
revolucionário de dez anos, o de Oliver Cromwell, no século XV, muitas
tradições foram mantidas – e imitadas por países que romperam a relação
colonial, mas continuam a ter o monarca britânico como chefe de estado.
Na
Austrália e no Canadá, a maça, o imponente bastão dourado que é
colocado todos os dias na mesa da Câmara, representando o poder
monárquico, continua presente.
A
ala da Câmara dos Comuns no Palácio de Westminster foi totalmente
bombardeada pela Alemanha nazista durante a II Guerra e depois
reconstruída, inclusive as “caixas de despachos”, com fragmentos da
bíblia e outros textos sagrados.
É
em cima delas que o primeiro-ministro e o líder da oposição colocam os
papéis onde teoricamente anotam as respostas aos respectivos argumentos.
Conta pontos ser bom de debate, rápido no fogo cruzado e bem humorado
nos desafios ao oponente. Espera-se que os adversários também reconheçam
o valor do outro e riam, mesmo que contidamente, das provocações
recíprocas.
Boris Johnson é um ás nesse jogo, pela linguagem corporal estudadamente histriônica e a língua afiada
Antes
que a sua situação se deteriorasse e Keir Starmer, o líder trabalhista,
voltasse de um período de isolamento por contato com um infectado, a
número dois da oposição, Angela Rayner, teve uma sessão de debates com o
primeiro-ministro em que todos chegaram à mesma conclusão: os dois
estavam flertando. Ele, com o modo de falar de quem cursou Eton e
Oxford, o ápice da elite; ela, com o jeito despachado de classe operária
(largou a escola, grávida, aos 16 anos).
Até
hoje, os ganchos com nome onde os parlamentares penduram os casacos
também têm uma fita roxa para depositar espadas. A distância entre as
bancadas – 3,96 metros – supostamente era para acomodar o comprimento de
duas espadas e permitir que a turma do deixa disso interferisse a tempo
caso a proibição de armas fosse desrespeitada e o calor do debate
provocasse reações menos fleumáticas.
Outra
coisa que chama a atenção de quem não está acostumado aos rituais é o
senta-levanta na turma do fundão, os “backbenchers”, ou ocupantes dos
bancos de trás da bancada, que não fazem parte do governo nem do
ministério paralelo da oposição, os “frontbenchers”.
Eles fazem isso para chamar a atenção do presidente da Câmara, na esperança de ser chamados para falar alguma coisa.
Foi
assim que David Davis, conservador que foi secretário para o Brexit no
governo de Theresa May, acabou fazendo uma intervenção bombástica.
Autorizado
a falar pelo presidente, na mesma sessão em que Christian Wakeford
atravessou o corredor, Davis disse diretamente a Boris Johnson: “Você
está no cargo há tempo demais. Por Deus, vá embora”.
Antes,
ele esclareceu que estava repetindo uma frase histórica, dita por outro
parlamentar a Neville Chamberlain, o primeiro-ministro que tentou
contemporizar com Hitler.
Boris,
que escreveu uma biografia de Churchill, o substituto de Chamberlain,
disse que não reconhecia a citação e seguiu adiante com o debate.
Cara
de pau faz parte do show de Boris Johnson e ele aparentemente ganhou um
espaço para respirar até a semana que vem, quando sai o relatório do
inquérito sobre as festinhas.
Se for insustentável para o primeiro-ministro e insuflar ainda mais a rebelião interna dos conservadores, terá que renunciar.
Certamente
com um discurso brilhante que provocará uma barulheira daquelas nos
dois lados das bancadas verdes. E o teatro da democracia seguirá
adiante.
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