Curto, correto, despretensioso e bem escrito: se isso faz um bom livro para o leitor comum, faz um livro excelente para pimpolhos. E, como as escolas têm tradição em ensinar mal a guerra do Paraguai, vale a pena ir correndo comprar um exemplar para o filho, o sobrinho, o neto. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Quem
saiu da escola sabendo que a Guerra do Paraguai começou com um ataque
ao Brasil levanta a mão. O Brasil ficou pelo menos entre os anos 70 e
2000 ensinando às suas crianças que Solano López era um visionário que
alfabetizou a população paraguaia inteira, desenvolveu o país, ia fazer
do Paraguai uma nova potência mundial e, por isso, despertou a fúria da
Inglaterra. Temendo a emergência do Paraguai no palco do mundo, a Coroa
britânica manipula os bobalhões do Brasil, Argentina e Uruguai para
aniquilar o Paraguai. Isso começou em 1968, com a publicação de “Guerra
do Paraguai – Grande negócio!”, do argentino León Pomer, e só em 1993 o
brasileiro Júlio Chiavenato escreveu “A Guerra contra o Paraguai”. O
teor é o mesmo: nós somos maus, bobos, e perpetramos genocídio contra o
Paraguai a mando da Inglaterra.
Você
só viu isso na escola por culpa das faculdades de Educação. As
faculdades de História criticam isso há tempos, mas esse conhecimento
fica encastelado na academia: não chega ao mercado editorial nem às
escolas. Escola é feudo de Educação; e mercado editorial é um negócio
complicado. Além disso, acadêmico em geral não sabe escrever para
público amplo.
Uma
exceção feliz é o historiador Francisco Doratioto, que escreveu, para o
grande público, “Maldita Guerra” (Companhia das Letras, 2002). O livro
está esgotado e é disputado a tapa em sebos. O mais barato dos oito
exemplares à venda custa trezentos reais. Só Deus sabe por que a
Companhia das Letras fica lançando panfletinho identitário em vez de
reeditar uma obra de referência.
Livro novo na praça
Ano
passado saiu “Guerra do Paraguai: Vidas, personagens e destinos do
maior conflito da América do Sul”, pela Harper-Collins, de José
Francisco Botelho e Laura Ferrazza de Lima. Ela é historiadora
especialista em moda; ele, tradutor de Shakespeare, poeta que sabe
métrica e ficcionista que ainda consegue ganhar prêmios literários sem
se dizer negro, nem gay, e sem se engajar em política. Uma raridade!
Como muita gente torce o nariz para livros escritos por
não-especialistas, devo dizer que o livro traz, no fundo, a frase de
aprovação do próprio Doratioto: “Em linguagem atraente e precisa, os
autores fazem competente análise do processo político-militar e dos
personagens da maior guerra travada pelo Brasil.”
O
livro é tudo isso que Doratioto disse. É uma análise competente, mesmo
tendo apenas 223 páginas. Isso é possível porque o livro não tem a
pretensão de ser exaustivo: fazer um livro simples e preciso requer
competência. Ainda por cima, tem linguagem atraente e precisa – passou
pelas mãos de um poeta que sabe fazer poesia (aquela coisa antiquada com
rima e métrica) e de um escritor que ganha prêmios pela escrita, e não
por adesão a hashtags.
Curto,
correto, despretensioso e bem escrito: se isso faz um bom livro para o
leitor comum, faz um livro excelente para pimpolhos. E, como as escolas
têm tradição em ensinar mal a guerra do Paraguai, vale a pena ir
correndo comprar um exemplar para o filho, o sobrinho, o neto e até o
pet (que, segundo dizem, também é gente), antes que esgote e fique a 300
reais em sebo.
As fontes-personagens
O
livro de História usa um recurso de ficcionista para cativar o leitor,
que consiste em tratar as fontes primárias como personagens. Há um
capítulo centrado em Dionísio Cerqueira, um primo de Castro Alves que
foi para a guerra aos 17 anos e escreveu memórias muito pormenorizadas,
anotando inclusive os costumes dos gaúchos. (Era um baiano do semiárido
que passou a usar bombachas e tomar chimarrão.)
Há
na fronteira gaúcha um cônego francês excêntrico, estudioso de alquimia
e gramática guarani, naturalizado brasileiro, que tem certeza de os
paraguaios estarem tramando uma invasão ao Brasil. O cônego João Pedro
Gay manda cartas às autoridades, mas ninguém dá ouvidos ao esquisitão.
Quando o Imperador em pessoa chega ao Rio Grande do Sul já em meio à
guerra, conhece enfim o cônego e trava uma relação de homem de letras
consigo.
Outra
fonte-personagem é Benjamin Constant, uma figura importantíssima para a
República. Ele não presenciou grande coisa na guerra, mas o seu relato é
usado como gancho para falar de Caxias enquanto personagem política. O
positivista escreve mil cartinhas para a família reclamando horrores do
legendário general do Império. Este é um conhecimento importante para
entender a história política do Brasil.
Os
conhecimentos do Cone Sul também aparecem. Quando as fontes não são
personagens, personagens históricas são retratadas com minúcia e usadas
para entender o contexto maior. Através do retrato de Bartolomé Mitre da
guerra do Paraguai, inteiramo-nos de política argentina. Creio que
poucos homens de letras brasileiros se interessem tanto pela história
argentina a ponto de saberem que o centralismo de Buenos Aires é fruto
da vitória dos unitaristas (centrados em Buenos Aires) sobre os
federalistas (espalhados pelos interiores).
Outra
figura retratada é a enigmática e controversa Elisa Lynch, a irlandesa
que Solano López trouxe de sua temporada na Europa e seria uma espécie
de Rainha informal do Paraguai, com status formal de mera concubina. A
história de Elisa é usada como gancho para entendermos as possíveis
motivações da guerra, que incluem o desejo de Solano López de se casar
com a Princesa Isabel e virar Imperador do Brasil. A guerra começa logo
após o anúncio de que a princesa se casaria com o Conde d’Eu.
A
única exceção é o capítulo sobre a matança no Paraguai e os delírios
persecutórios de Solano López, que o fizeram prender a mãe, matar os
irmãos e executar a elite paraguaia. Não há o retrato de nenhum
personagem específico; em vez disso, ficamos com relatos das fontes
primárias.
Os
conhecimentos sobre o Cone Sul vêm acompanhados de uma deficiência
compreensível e desculpável. Ao tratar dos feitos do Duque de Caxias, os
autores mencionam que ele teve seu batismo de fogo quando foi “enviado à
Bahia para debelar um movimento de militares portugueses contra a
Independência”, e que “no dia em que as forças leais a dom Pedro I
entraram em Salvador, em 2 de julho de 1823, foi o jovem tenente que
quem carregou a bandeira do Império pelas ruas da cidade.” O conflito
armado na Bahia que teve início no primeiro semestre de 1822 e fim em 2
de julho de 1823 não era fruto de um movimento militar português; era
fruto da decisão da Coroa portuguesa de manter o Norte do Brasil sob
Lisboa, e não sob o trono recém-criado no Rio de Janeiro. Esse assunto é
estudado e festejado na Bahia com o nome de “Independência da Bahia”. A
maior parte do Brasil acha que a Independência foi só um grito às
margens plácidas em 7 de setembro de 1822.
Creio,
porém, que não seja conhecimento comum na Bahia a importância da guerra
para a carreira militar do grande general do Império, até porque foi o
seu batismo de fogo, e as fontes históricas não focam no jovem Lima e
Silva, que ainda nem se chamava Caxias.
O bom do regionalismo
Acima
eu poderia dizer que resolvi um problema de regionalismo com mais
regionalismo. Na História de um país tão grande e diverso quanto o
Brasil, é inviável o projeto de uma História que seja desde o princípio
generalista. Em vez disso, deve se alimentar de regionalismos, com os
brasileiros de cada canto cuidando da memória local e trazendo-a ao
grande público, para assim subsidiar o conhecimento generalista.
Na
orelha, José Francisco Botelho omite as credenciais acadêmicas e
destaca que nasceu em Bagé. É Rio Grande do Sul, fronteira com o
Uruguai. Os leitores de Luís Fernando Veríssimo vão se lembrar do
Analista de Bagé, que até tem uma estátua na cidade.
Como
aprendemos no livro, a morte de Solano López é controvertida. Outro
bageense, José Francisco Lacerda, vulgo Chico Diabo, alegava ser o homem
que lanceou Solano López na barriga, ferindo-o de morte. Ele alegou por
estar interessado na recompensa: o seu superior, coronel Joca Tavares,
prometera uma recompensa a quem matasse Solano López em combate (ou
seja, sem ser execução). Era uma ordem contrária aos desejos do
Imperador, que pretendia capturar Solano López vivo e manter uma imagem
humanitária do Brasil perante o mundo.
A
causa mortis de Solano López foi disputada publicamente. Os legistas do
Império diziam que o ferimento no ventre era de bala e não foi letal.
Joca Tavares, a seu turno, também providenciou legista e também expôs em
jornal a sua versão dos acontecimentos. Honrou a promessa e, à falta de
dinheiro, pagou a Chico Diabo com vacas. Desde então, as famílias de
Joca Tavares e Chico Diabo são próximas e conversam sobre a guerra do
Paraguai. Graças a isso, manteve-se preservada uma versão regional e
possivelmente verdadeira da História. José Francisco Botelho é
tataraneto de Joca Tavares.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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