O conflito está na sociedade, quer se queira quer não. O que acontece é que ele pode, em certos casos, perder os bons modos e deslocar-se do centro da vida política para a periferia. A crônica do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Sábado
passado, de manhã, apanhei um táxi para ir comprar um romance de Camilo
a um alfarrabista na Rua Formosa. O taxista era falador. O tempo (é
preciso chuva), o futebol (o Porto está bem) e, quase a chegar ao
destino, a política. Rui Rio vai ganhar as eleições. É sério. Fala uma
linguagem que toda a gente percebe. É pão, pão, queijo, queijo. Nunca
ouso discordar de um taxista, é um dos meus poucos princípios firmes.
Mais um voto garantido para o homem sério, pensou ele de certeza.
À
saída, com o livro de Camilo (com as “palavras difíceis” – em Camilo
sempre muitas – sublinhadas pelo anterior proprietário) debaixo do
braço, fui a pé até à Praça D. João I apanhar outro táxi. Há muito que
não via tanta gente na rua. Em Santa Catarina, tudo fervilhava, tudo
mexia, no meio de uma luz branca, doce e bonita. O povo, meu colega,
andava às compras. Como levo, desde há mais ou menos vinte anos, uma
vida de eremita, sem quase, nos últimos tempos, me dar conta dos
confinamentos, fiquei surpreendido. Mas foi tudo menos desagradável.
Pelo contrário, gostei. Lembrou-me um mundo antigo, que tinha
praticamente esquecido, quando ainda sentia a cidade como minha. É
curioso como o contacto com uma pequena multidão pode despertar um
sentimento assim. Deve dizer bem da humanidade.
O
segundo taxista também era falador. Desta vez, a política veio logo à
tona. Era uma pessoa de esquerda, tinha votado no PS nas duas últimas
eleições. Mas zangara-se com Costa com o fim da geringonça. Não lhe
perdoava, dizia ele, o fim da aliança com a esquerda. Devia pagar por
isso. Felizmente, havia Rui Rio. Rui Rio ia fazer o que é preciso fazer.
Toda a gente percebe o que ele diz. E está preparado para governar –
para me servir dos sublinhados de Os brilhantes do brasileiro, é “de
sola e vira”. Mais uma vez, não contrariei o entusiasmo, que durou até à
Cozinha da Amélia, onde ia almoçar.
Estas
coisas, sobretudo se acompanhadas de outros sinais que se sentem por
aí, dão que pensar. Eu sei que é no Porto, onde Rio goza de uma
popularidade que não tem no resto do país. Mas quer dizer alguma coisa.
Quer dizer pelo menos uma coisa. Que um dos atractivos maiores de Rio
para certas pessoas não reside em qualquer corte com o programa de
governação do PS, mas numa mera questão de estilo. Nem, de facto, podia
ser de outra maneira, até porque, que eu tenha reparado, Rui Rio não
anunciou nunca um programa verdadeiramente diferente do programa do PS
em matérias substantivas. É mais uma questão da maneira de falar e da
aura de seriedade que muitos vêem nele. É, como disse, uma questão de
estilo. O que mostra que, para uma fatia indeterminada da sociedade, ele
é persuasivo e ecoa um ideal de homem político.
Deste
motivo maior, e da ausência de um motivo político bem definido, há algo
que se pode deduzir sem grande risco de incorrer em erro. Muita gente
está resignada ao seu actual modo de viver, sem imaginação para pensar
algo diferente. Nem sempre foi assim. Nuno Gonçalo Poças lembrou
excelentemente, aqui no Observador,
que noutros tempos houve vontade de acreditar na possibilidade de uma
alternativa, como com a Aliança Democrática, em 1979. Hoje essa vontade é
extremamente ténue. No essencial, as pessoas parecem estar conformadas
com a mediocridade reinante e agarram-se ao que vai flutuando à
superfície de um declínio ao qual se parecem ter habituado.
Uma
atitude deste tipo exclui à partida a possibilidade da conflitualidade
política. Ou, pelo menos, redu-la à dimensão de um antagonismo de
personalidades, sem qualquer divergência substantiva em matéria
propriamente política. Ora, por mais que nos tentem convencer do
contrário os apóstolos do consenso e da harmonia social, isto não pode
ser uma coisa boa. O conflito político é a essência da liberdade e uma
sociedade que se pretende sem conflito é, por definição, uma sociedade
pouco livre. Mais. O conflito está na sociedade, quer se queira quer
não. O que acontece é que ele pode, em certos casos, perder os bons
modos e deslocar-se do centro da vida política, que devia ser o seu
lugar nas democracias liberais, para a periferia, sob a forma dos
populismos de esquerda e de direita. Para algum lado ele teria de ir.
Mas
estas duas questões – a dimensão conflitual da vida política e a
natureza do populismo – são matéria suficientemente complexa para me
abster neste artigo de ir mais longe. Tanto mais que me caíram nas mãos
dois excelentes livros que lidam com estes assuntos e dos quais tenciono
falar para a semana. Uma coisa, no entanto, devo acrescentar: uma
sociedade destinada a escolher entre António Costa e Rui Rio é uma
sociedade que vai por muito maus caminhos. Não por causa de nenhum deles
em particular – não nego nem a habilidade nem a seriedade –, mas por
causa de nenhum deles representar nada de substancialmente diferente do
outro. Politicamente, entenda-se.
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