Parece que, de quando em quando, é preciso lembrar aos arautos do radicalismo de esquerda que, como diz o povo, quem semeia ventos colhe tempestades. Alexandre Franco de Sá para o Observador:
“Tolos,
impostores e incendiários” é o título de um belo livro, tão divertido
quanto rigoroso, escrito pelo falecido Roger Scruton em torno dos
devaneios filosóficos da “nova esquerda”. E é curioso que, por ocasião
da morte do Tenente Coronel Marcelino da Mata, os seus representantes
locais, sempre ciosos da sua omnipresença no espaço público português,
tenham feito desfilar a dita tríade por televisões e demais imprensa,
com as costumeiras pregações destinadas a esclarecer o povo sobre o que,
na circunstância, deve sentir e pensar.
Como
Marcelino da Mata era negro e oriundo da Guiné, vieram primeiro os
tolos, encarregados de explicar às crianças, pela enésima vez, as
subtilezas teóricas do “racismo sistémico” de que todos padecemos. Com
diligência professoral, voltam a esclarecer que o racismo não é um
comportamento ou uma atitude, mas um sistema. Os brancos são
estruturalmente racistas e privilegiados, sejam-no de facto ou não. Os
negros nunca são racistas, mesmo que o sejam. No passado, as políticas
de segregação racial, como aconteciam na África do Sul e nos Estados
Unidos, eram racistas. Mas as políticas ultramarinas portuguesas de
integração, contrárias àquelas, também o eram. Basta terem sido
ultramarinas.
Para
legitimar o absurdo, subtis académicos desdobram-se em novos termos –
“racismo cordial”, por exemplo – destinados a formar a realidade que
confirma a teoria: uma teoria animada pelo domínio sobre o léxico,
desenhada com o exclusivo propósito de chamar “racistas” a pessoas,
políticas e doutrinas que o não eram. É claro, tudo termina em conceitos
contraditórios que têm o alcance teórico de um círculo quadrado. Mas a
lógica, escusado será dizer, é coisa que desempenha aqui papel menor. A
inconsistência do conceito de “racismo sistémico” com a caracterização
do racismo como questão moral, ligado a acções e atitudes concretas, não
parece, nos dias que correm, desencorajar ninguém.
Depois
dos tolos, vieram os impostores. Afinal, é inevitável explicar ao povo
que nada há de incongruente em que, num Império habitualmente apodado de
“fascista” e “racista”, as maiores condecorações coubessem a um militar
negro nascido na Guiné. Na impossibilidade de ser uma vítima da
propaganda do regime, só pode ser um criminoso de guerra
(“inquestionavelmente”, mesmo que sem qualquer prova ou processo). Que,
após o 25 de Abril, Marcelino da Mata tenha sido espancado e torturado
nos RALIS pelos mesmos barbudos revolucionários que se entretinham a
mostrar a “Revolução em Curso” à nata da intelectualidade europeia, como
Sartre, é coisa despicienda. É certo que não se devem fazer juízos
sumários sobre o carácter de todos os jovens que então militavam em
grupos fanáticos como o MRPP, grupos que sanearam, ameaçaram,
sequestraram, espancaram e torturaram durante o “Verão Quente” (deixemos
os juízos sumários ficarem com estes grupos). Mas talvez seja avisado
ponderar o que isso nos diz sobre um historiador que, militando no MRPP à
época, desconsidera tais factos como irrelevantes ou indignos de
atenção.
De
resto, impõe-se martelar televisivamente o mantra de que Marcelino da
Mata foi um “traidor ao seu povo”. As pessoas normais sabem que não foi
assim: que Guiné, Angola e Moçambique eram Portugal; que Marcelino da
Mata nasceu e morreu português, no que era então um Império imerso na
tragédia da história, e que lutou pelo povo a que pertencia e em que
acreditava; sabe-se também – sem que isso tenha de pôr em causa o valor
que os actuais habitantes de Angola, Guiné e Moçambique atribuem à sua
independência – que a guerrilha anticolonial operava sobretudo a partir
de territórios contíguos, contando com o apoio de potências estrangeiras
hostis e muito pouco com o apoio das populações; e que foram os tais
revolucionários barbudos, com o seu lema de “nem mais um soldado para as
colónias”, que instigaram depois a vergonhosa debandada geral que votou
ao fuzilamento sumário – como traidores ao povo – muitos militares
portugueses africanos. Que, confortavelmente sentado num estúdio
televisivo, um historiador repita os termos da acusação que conduziu a
tal desfecho diz tudo sobre os resultados de se misturar ciência
histórica e activismo militante.
Mas,
como dizia o divino Marquês, encore un effort… Como a sensatez popular
costuma dar aos libelos de cátedra o devido desconto, surgem agora os
incendiários. Estes focam-se, claro, em provocar a qualquer preço.
Trata-se de um velho método para arregimentar minorias fanáticas. Em
rebanho, já se sabe, reforça-se a cegueira e a ousadia. E as “guerras
culturais” obtêm o impacto que o número de militantes não permite. A
insólita ideia de demolir o Padrão dos Descobrimentos será disto um
epifenómeno. Mas é um começo. Um deputado socialista, que já teve
responsabilidades governativas, diz agora que o 25 de Abril deveria ter
produzido um “corte epistemológico” (não descortino a razão de ser
“epistemológico”, mas soa bem e adiante) e que no golpe de Estado de
1974 deveria ter havido sangue. Escutando estas atoardas, as pessoas
normais e sensatas – as pessoas que justamente apreciam o facto de no
dia 25 de Abril não o ter havido (apesar do manicómio em autogestão, da
irresponsável bebedeira colectiva e do sangue que vieram a seguir) –
começam a pensar se, de facto, não teria sido melhor que assim fosse. É
quanto baste para os incendiários verem confirmado o seu ponto e
augurarem o mundo com que sonham.
Curiosamente,
há um romance escrito sob pseudónimo – Alvorada Desfeita – que, na
linha da história alternativa, ficciona um 25 de Abril com muito sangue.
Nessa história, o 25 de Abril falha devido à intervenção de um jovem
recém-nomeado Ministro da Defesa, Ricardo Valera, às ordens de quem era
dizimada a coluna rebelde de Salgueiro Maia. Pelo meio, no fogo cruzado,
tombava também, no Terreiro do Paço, a estátua equestre de Dom José I,
desenhada por Machado de Castro. Talvez esta não tenha já a dimensão
simbólica do Padrão dos Descobrimentos; mas sempre é um símbolo do
despotismo monárquico setecentista que, em coerência, os nossos
incendiários não se importariam de ver pelo chão. Mesmo que não tivesse
sido melhor, faz pensar. Parece que, de quando em quando, é preciso
lembrar aos arautos do radicalismo de esquerda que, como diz o povo,
quem semeia ventos colhe tempestades. Simbólicas, claro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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