sábado, 28 de agosto de 2021

Na guerra de narrativas, a liberdade de expressão é a primeira vítima.



Cada vez mais, é o Judiciário quem determina o que pode ou não pode ser dito, tutelando o pensamento, patrulhando opiniões e assumindo a curadoria da sociedade. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:


Os progressistas descobriram que não existe prazer maior do que apontar o dedo e censurar o outro. Nesse processo, reputações são assassinadas, e pessoas inocentes e honestas são diariamente perseguidas e canceladas. Mas a turma da lacração e do ódio do bem não está nem aí: o que importa é carimbar diariamente o carimbo de virtuoso na testa, mesmo que à custa da destruição de vidas alheias.

Exemplo que se vê diariamente no Rio de Janeiro (e, imagino, no Brasil inteiro): gente que adora apontar o dedo e gritar “genocida” quando o presidente ou alguém que o apoia aparece sem máscara em público, mas... não vê problema algum em se aglomerar em bares e casas noturnas – sem máscara e com a consciência limpinha.

Mentir também deixou de ser uma coisa errada. Vale tudo para ganhar biscoito e lacrar nas redes sociais: você pode espalhar no Facebook que o quilo da carne de terceira está custando 80 reais, e que a lata de óleo de soja está custando 50, que logo vão aparecer progressistas entusiasmados para se solidarizar no ódio ao governo fascista.

Se algum ingênuo ou alguma ingênua tentar corrigir a informação, dizendo “Não é bem assim, acabei de passar no mercado e paguei tanto”, a resposta imediata será: “Bolsomínion detectado!”, “Olha a bolsomínia!”. E o genocida será sumariamente ejetado do grupo, para que as pessoas do bem continuem a espalhar mentiras em paz.

A liberdade de expressão, outrora uma bandeira da esquerda, passou a ser abertamente atacada pela “galera do bem”. É visível o regozijo dos progressistas quando alguém de que não gostam é censurado, bloqueado nas redes sociais, desmonetizado em seu canal no youtube ou processado e preso por crime de opinião.

Cada vez mais, é o Poder Judiciário quem determina o que pode ou não pode dito, tutelando o pensamento, patrulhando opiniões e assumindo a curadoria da sociedade. E a grande mídia comemora, saudosa do monopólio da informação que detinha até poucos anos atrás. A mensagem é: só nós temos as informações verdadeiras, então não confiem em mais ninguém, porque todas as outras fontes são difusoras de fake news.

A situação é a seguinte: tudo o que “eles” dizem é fake news, mesmo quando é verdade, e tudo que “nós” dizemos é verdade, mesmo quando é fake news. Por isso “nós” devemos festejar e aplaudir quando excluem perfis e páginas “deles” no Facebook, no Instagram, no Twitter e no YouTube.

Resumindo, fake news é tudo aquilo de que eu discordo ou não gosto; já a verdade ganhou uma nova definição: é tudo aquilo que me agrada. E o STF ratifica e legitima essa peculiar visão de mundo, quando afirma que a liberdade de expressão não contempla nem protege “posições anticientíficas”. Ótimo, mas quem determina se uma posição é científica ou não? “Nós”, é claro.

A conclusão, parafraseando George Orwell em “A Revolução dos Bichos”, é que todos são livres para se expressar, mas alguns são mais livres que outros. Também foi Orwell, aliás, quem declarou: “Quanto mais a sociedade se distancia da verdade, mais ela odeia aqueles que a revelam”. Na guerra de narrativas, a liberdade de expressão foi a primeira vítima.

Mas nada disso chega a surpreender: é o resultado natural da guerra de narrativas imposta à sociedade brasileira já há quase 20 anos. A disputa ideológica já não opõe mais ricos e pobres, povo e elite, mas, simplesmente e cada vez mais, “nós e eles”. Tentei examinar esse fenômeno em meu livro “Guerra de narrativas – A crise política e a luta pelo controle do imaginário”, lançado no primeiro semestre de 2018 (antes, portanto, da eleição de Bolsonaro, que já foi uma consequência dessa guerra).

Fato: não dá mais para entender esquerda e direita nos termos marxistas tradicionais. Por exemplo, a luta de classes, que Marx considerava o motor da História, foi jogada na lata de lixo. Hoje a lacração irmana progressistas de todas as classes: seus interesses deixaram de ser antagônicos e inconciliáveis.

Milionários, antigamente execrados pela esquerda como exploradores que se apropriam da riqueza gerada pelo trabalho alheio, deixaram de ser vistos como inimigos e passaram a ser considerados sócios no projeto de tomada do poder: basta pagar o pedágio do apoio às bandeiras identitárias e posar de guerreiro da justiça social nas redes sociais.

O inimigo passou a ser o cidadão que rala para pagar seus boletos, mas não vota no mesmo candidato que eu. É ele quem merece ser perseguido e impiedosamente esfolado (mesmo que seja pobre ou pertença a uma minoria). Já o milionário pode continuar sendo milionário sem culpa, mesmo que seja branco e “cisgênero”, desde que pose de bom moço nas redes sociais. Marx ficaria escandalizado.

Vejam só que interessante: você pode pertencer à da elite da elite, morar em uma cobertura de 500 metros quadrados em frente à praia, usufruir de todos os luxos do capitalismo, ter o Iphone de última geração, usar as marcas de roupa mais caras e viajar todos os anos para as ilhas gregas, que está tudo bem. Se você aderir à narrativa da lacração e votar no partido certo, será considerado de esquerda e acolhido pelos progressistas.

Já a diarista que trabalha duro para sustentar os filhos e o funcionário que passa três horas por dia na condução indo e voltando do trabalho serão sumariamente desqualificados como fascistas se declararem voto no candidato errado. Abordei esse tema nos artigos “O melhor de dois mundos: a vida dupla dos ricos de esquerda” e “A nova luta de classes: pobres de direita contra ricos de esquerda”.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

 

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