sábado, 28 de agosto de 2021

Os construtores de estrelas

 



A fusão nuclear pode garantir energia limpa e abundante por bilhões de anos. Dagomir Marquezi para a revista Oeste:


O Lawrence Livermore National Laboratory (LLNL) está discretamente instalado num vale a leste de San Francisco, Califórnia. É um laboratório voltado para o sistema de defesa dos Estados Unidos, incluindo a manutenção do arsenal. Mas, em 8 de agosto, a LLNL sacudiu o mundo científico com uma conquista que pode mudar — para muito melhor — o futuro de toda a humanidade.


Naquele dia, um domingo, os cientistas do Lawrence Livermore apontaram um total de 192 raios laser para uma cápsula de 5 milímetros. A cápsula continha isótopos de trítio e deutério. Por uma fração de segundo, o bombardeio de lasers provocou uma temperatura de 100 milhões de graus centígrados. Num flash, ficou mais quente que o centro do Sol. E os cientistas e técnicos do LLNL conseguiram, pela primeira vez, criar num laboratório a “faísca de ignição”.

Foi o suficiente para que os núcleos à base de hidrogênio na minúscula cápsula se transformassem em hélio. E gerassem um fluxo de energia. “É um marco gigante”, declarou Debbie Callahan, uma das coordenadoras do projeto. “Estamos trabalhando nisso por 50 anos. Não vamos colocar essa energia na rede elétrica tão já. Mas esse é o passo de que precisávamos. Isso nos coloca numa nova fase.”


2.000 graus centígrados

Quer ter uma ideia da qualidade de geração de energia proporcionada pela fusão nuclear à base de plasma? Pense naquela usina que está funcionando sem falhas há 4,6 bilhões de anos: o Sol. Estamos tão acostumados ao conforto de seu calor e da sua luz que fica difícil aceitar a ideia que nem sempre o Sol brilhou.

Após o Big Bang, o Universo inteiro ficou no escuro por aproximadamente 400 milhões de anos. O fato aparentemente é comentado em algumas das primeiras frases do Velho Testamento: “Havia trevas sobre a face do abismo (…) E disse Deus: ‘Faça-se luz’. E fez-se a luz”.


Em termos científicos, aconteceu uma rápida contração de poeira interestelar nesse Universo escuro. A poeira foi comprimida numa bola tão densa que seus átomos se fundiram, ocasionando a ignição das estrelas. A temperatura subiu além dos 2.000 graus centígrados, e elas se transformaram em plasma. Para nossa sorte, esse incêndio original do Sol nunca mais se apagou.

Até 1920, ninguém parecia se importar em saber como funcionavam essas fornalhas do céu. Em outubro daquele ano, o astrofísico britânico Arthur Stanley Eddington escreveu o pioneiro livro A Constituição Interna das Estrelas. Notava que o calor e a luz que elas emitiam provavelmente tinham como base “a energia subatômica, que, é sabido, existe abundantemente em toda matéria. Nós às vezes sonhamos que o homem um dia vai aprender como liberar essa energia e usar a seu serviço”.

Fissão e fusão

A humanidade já aprendeu a fundir átomos artificialmente. E assim conseguiu criar (em 1952) sua arma do juízo final: a bomba de hidrogênio. A bomba H provoca uma explosão que dura um instante de devastação absoluta e se perde.


A usina de fusão é mais complicada: quando estiver funcionando, terá de manter esse processo de contínua explosão sob controle — como acontece com o Sol. Por isso, o autor Arthur Turrell, pH.D, em Física pelo Imperial College de Londres, chamou os pesquisadores da fusão nuclear de “construtores de estrelas” (no recém-lançado The Star Builders: Nuclear Fusion and the Race to Power the Planet, ainda não publicado em português).

Numa usina nuclear “tradicional” como Angra dos Reis, a energia é conseguida através da fissão nuclear. O núcleo do átomo é fragmentado. Passaram um período de má reputação por causa de acidentes como os de Chernobyl e Fukushima. Mas as usinas à base de fissão nuclear começaram a ser reavaliadas como uma solução de emergência para nossa precária situação ambiental e energética.

Reforçando seus esquemas de segurança e aperfeiçoando seus procedimentos, as usinas nucleares à base de fissão poderão ter uma sobrevida. Mas, quando as usinas de fusão estiverem funcionando, suas vantagens vão se tornar evidentes. Segundo Arthur Turrell:

1) a fusão produz ainda menos dióxido de carbono do que as células solares;

2) precisam de menos espaço para sua instalação;

3) produzem quase nenhum dejeto radiativo;

4) não correm o perigo de se “derreter” como as usinas de fissão;

5) as fontes de combustível para a fusão são abundantes e não perigosas, como o urânio ou o plutônio.

A fusão nuclear exige dois elementos reagentes: o deutério e o trítio. Conseguir deutério é moleza. Uma banheira cheia de água do mar pode conter 5 gramas do elemento. O trítio é mais raro. Mas pode ser obtido através do tratamento do lítio. As maiores reservas exploráveis de lítio estão no Chile, seguido pela Austrália, hoje a maior produtora.


Mundo descarbonizado

Quando teremos usinas de fusão nuclear alimentando as tomadas de nossa casa? Existe uma equação a ser resolvida. Para que a fusão se torne sustentável é preciso gerar mais energia do que a energia consumida no processo. A experiência pioneira no Lawrence Livermore National Laboratory conseguiu gerar 70% da energia que consumiu. Deixou o empate mais próximo. Alguns especialistas sugerem que a fusão se tornará economicamente viável quando essa taxa chegar a 10.000%. Ou seja: que a fusão consiga produzir cem vezes mais energia do que gasta.

Já existe uma grande movimentação para financiar essa nova era. Jeff Bezos, fundador da Amazon e homem mais rico do mundo, investiu numa startup chamada General Fusion, com base em Vancouver, no Canadá. O plano é que se torne comercial até o fim desta década. Christofer Mowry, executivo-chefe da General Fusion, disse que a fusão é a “única tecnologia que realmente oferece uma solução de longo prazo para a indústria de energia num mundo profundamente descarbonizado”.

No sudeste da França está o megalaboratório Iter (Reator Internacional Experimental Termonuclear). Ele reúne nas proximidades dos vinhedos de Saint-Paul-lès-Durance equipes de 35 países. Entre eles, EUA, Japão, Rússia, China, Índia, Reino Unido e Comunidade Europeia. É o maior experimento de ciência do mundo, com custo de € 20 bilhões. No interior da Inglaterra está o Culham Centre for Fusion Energy. Paul Allen, cofundador da Microsoft, abriu a Tri Alpha Energy (ou TAE) ao sul de Los Angeles. Peter Thiel, cofundador do PayPal, investiu no Helion Energy, perto de Seattle. A Commonwealth Fusion Systems é uma startup trabalhando com o MIT, o Massachusetts Institute of Technology. Todos eles contam com o apoio financeiro de seus respectivos governos.


Cientistas, investidores, instituições e governos estão gerando uma utopia para as próximas gerações: energia abundante, limpa e praticamente inesgotável. Para conseguir chegar lá, criam pequenas estrelas artificiais em forma de usinas. Faça-se a luz.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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