Contra(o)tempo
Ensaio de Augusto de Carvalho, publicado pelo Estado da Arte:
Aprendendo
a crer em Deus
destruímos antigos hábitos,
diz
o canto tupinambá, de autoria do padre José de Anchieta. Nas igrejas,
ensinaram sobre um Deus que devora os demais. E, ao lado das
deslembradas divindades, enterraram hábitos no cemitério do
esquecimento. Das várias traduções do poema original—escrito pelo padre
em tupi antigo—, a versão citada, de Jürn Jacob Philipson, não é a mais
precisa, mas expressa de modo claro a capacidade humana de destruir
mundos. Sob a égide da boa vontade, do desejo irreflexivo de
aperfeiçoamento da humanidade, da redução de costumes a vícios, o fim
dessa empresa incoerente é em todo caso a autodestruição.
Anchieta por Oscar Pereira da Silva, 1920. |
Embora
as palavras de Anchieta resumam em versos a natureza autofágica dos
deuses, é a condição antropofágica do humano que está em evidência no
poema. Nossa característica canibal não apenas resvala muitas vezes numa
trágica e antiética disputa de mundos—o que eventualmente resulta na
irrevogável aniquilação do outro—, mas numa situação limite, numa
revolta da humanidade contra si mesma. Frequentemente, o gênero humano
procura humilhar ou mesmo eliminar a si próprio, em geral pela
frustração ou pelo remorso, nos momentos em que o mal revela sua face
humanista. Perde-se o sentido da vida, seu guia, a existência parece
fadada ao fracasso; sucumbe-se à insensata vontade de poder sobre si,
utopia característica da nossa natureza titânica—tal como descrevem
Ernst e Friedrich Georg Jünger. Enfim, o adversário da humanidade não
seria sua alteridade, o outro, mas ela mesma.
Talvez
não haja melhor imagem da questão que o épico de John Milton, Paraíso
Perdido, o qual retrata o diálogo essencial entre os arquétipos da
primeira mulher, do primeiro homem e de satã, nosso antagonista, que
dentre outras coisas representa a impossibilidade de domínio sobre si.
Sem o gênio alegórico e o fôlego epopeico de Milton, dois poemas de
Eleuterno Dias dramatizam essa fatídica e sempre presente rebelião
contra a imperfectibilidade antropológica. O humano, imprudente e
precipitado, tal qual um infante, afirma Dias, « de rosto rubro e
inchado; de bocarra salivante e dentadura podre; de corpo débil e
acovardado », quase acabado:
Revolta-se contra seus pais e criadores
Rebelde
Em guerra aberta contra si mesmo
Persegue em caça armada o próprio espírito
Ansioso para abater com um só golpe a própria alma
Ele
« inflama sua boca com o mesmo fogo que queima seus livros (…) dilapida
sua arte com as mesmas pedras da demolição de seus edifícios; tudo
porque a criança é insatisfeita com a imperfeição; porque não há
perfectibilidade divina na terra ». Ao fim, continua Dias, « farto;
desalmado; odiado; o infante não tem mais nada que possa chamar de seu
».
William Blake, ‘Satan Watching the Endearments of Adam and Eve’, 1808 |
Carregamos
o fardo insuportável de vidas de outrora, de nossos pais, nossas mães,
os criadores, espíritos muitas vezes desconhecidos, mas familiares. É
compreensível então que queiramos nos desfazer desse peso,
revoltarmo-nos contra ele, especialmente diante do horror e da perversão
de muitas memórias. Mas a corrente que nos liga a nossa ascendência,
aos passados que nos orientaram até o aqui, não se quebra facilmente,
ou, como conclui o poema, partir a corrente não produz o efeito
esperado. Parti-la provoca o suicídio.
Pensadores
como Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin são conhecidos por
ressaltarem a incapacidade humana de se abster radicalmente do passado
sem um grave prejuízo, caso ele seja abatido pelo legítimo desejo de
esquecimento. Se por um lado a tentativa de conhecer todos os detalhes
do contínuo do tempo é uma ocupação impossível, experimento que adoece
pelo excesso de passado, por outro lado, partir a corrente ou o contínuo
temporal não é menos perigoso. Ambos concordam que há um impedimento
metafísico à vontade de romper a cadeia existencial do tempo. Nietzsche,
de sua parte, ensina que a saúde humana depende de um bom ajuste entre o
que lembrar e o que esquecer, o que requer uma constante intervenção
ativa nos processos de lembrança e esquecimento, isto é, nas dinâmicas
da memória. Renunciar a esse trabalho ou, nas palavras de Benjamin, ter
uma memória fraca, implica em retornar às ilusões infantis. Para a
alheada criança, o mundo parece sempre novo, apesar de já existir há
muito tempo e a cada dia se tornar efetivamente mais velho.
Ora,
a memória é como uma árvore antiga, cuja raiz profunda está firmemente
presa à terra. Essa árvore está desde sempre radicada no tempo passado.
Por isso, não há rebelião poderosa o suficiente para extirpar algo
enraizado sem que o movimento incontornável de desarraigamento lavre a
terra e a torne mais uma vez fértil para uma mesma semente; não há
contenda que expulse de pronto o passado de modo definitivo do reino
concreto da existência. O passado, então, é o nome mais adequado para a
origem imemorial do enredo que fundamenta temporalmente a humanidade, e
por essa razão, nunca pode ser objeto de simples negação, mas somente de
trabalho, de resposta. Assim como Nietzsche e Benjamin advertem, toda
renovação do mundo se conecta necessariamente à origem passada, de uma
forma ou de outra. Contrariar a autoridade do tempo, na hipótese de se
insistir em apenas negar o passado, desobrigando-se da árdua tarefa de
seu reconhecimento, faz com que sua presença permaneça intocada,
solidamente encoberta como uma velha raiz—tão fundo penetra o solo da
existência que suas naturezas se confundem.
Novamente,
a poesia ilumina o dilema humano sobre essa ambígua e permanente
necessidade de lidar com o mal e a imperfeição, bem como expõe a
impossibilidade de simplesmente rejeitar a opressão do tempo passado ou
evadir-se por qualquer meio, uma vez que « a boca profere a maldade e a
bondade; os olhos enxergam a beleza e o horror; os ouvidos entendem a
mentira e a verdade; a vida contém a felicidade e a dor ».
Porque há maldade em minha boca, devo calar-me?
Porque há horror em meus olhos, devo arrancá-los?
Porque há mentira em meus ouvidos, devo decepá-los?
Porque há dor na vida, devo interrompê-la?
Se
assim for, será como se nada houvesse. O espírito, como diz Hegel,
porque desafiou a soberania do tempo, será a solidão em vida.
Augusto
de Carvalho é Doutor em História, com ênfase em Teoria da História,
pela UFMG. Desde 2017, faz parte do PPG em História da UFES, como
pesquisador e professor.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário