A hipótese de Hannah é que o mal está intimamente associado à ausência de pensamento, à renúncia deliberada à reflexão, entre aqueles que o praticam. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Ainda
que relativamente breve, omitindo vários episódios importantes, e
exclusivamente baseada em fontes secundárias, a biografia “Arendt –
Entre o amor e o mal”, da escritora sueca Ann Heberlein, recém-lançada
pela Companhia das Letras, é uma leitura interessante para os nossos
dias conturbados e de polarização política.
Heberlein
apresenta um resumo crítico competente da trajetória da filósofa e
pensadora da política Hannah Arendt (1906-1975), que foi uma testemunha
engajada (e, em mais de um sentido, vítima) de algumas das maiores
tragédias do século 20, começando pela ascensão do regime nazista na
Alemanha, na década de 30.
Como
se sabe, naquele período a jovem Hannah, judia de classe média, era
aluna e amante do filósofo Martin Heidegger, casado, por quem acabou
sendo traída e abandonada. Por ação e omissão, Heidegger apoiou o
Nazismo e contribuiu pessoalmente para prejudicar professores e
intelectuais judeus, sendo devidamente recompensado pelo regime em sua
bem-sucedida carreira acadêmica – tema polêmico que já rendeu vários
livros.
Hannah,
por sua vez, foi obrigada a se exilar do seu país, chegou a ser
internada em um campo de concentração na França ocupada e, mais tarde,
teve que fugir da Europa para se radicar nos Estados Unidos, onde
aprendeu um novo idioma, trabalhou como jornalista, recomeçou sua
carreira universitária e permaneceu até morrer.
Seguramente, essa experiência traumática e fundadora do relacionamento com Heidegger foi determinante dos rumos que tomaria nas décadas seguintes o pensamento de Hannah Arendt sobre a natureza humana, o perdão e a culpa, o amor e o mal – pensamento materializado em obras como “A condição humana”, “Homens em tempos sombrios” e “As origens do totalitarismo”, ambiciosos ensaios que acabaram sendo ofuscados pelo livro mais famoso da autora, “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, na verdade uma grande reportagem sobre o julgamento do criminoso nazista em Israel, entremeada de reflexões controversas sobre a responsabilidade dos alemães e o comportamento do povo judeu durante o Holocausto.
Foi
em “Eichmann em Jerusalém” que Hannah Arendt formulou o conceito,
muitas vezes mal compreendido, de “banalidade do mal”. O conceito está
associado ao que ela chama de "desenraizamento" da experiência humana em
relação à realidade a à moralidade, bem como à subserviência acrítica a
ordens superiores, o que transformou pessoas comuns e até medíocres,
mas não particularmente más, em cúmplice das atrocidades nazistas.
Ou
seja, a hipótese de Hannah é que o mal está intimamente associado à
ausência de pensamento, à renúncia deliberada à reflexão, entre aqueles
que o praticam. Compreensivelmente, o conceito de banalidade do mal
acabou provocando mal-estar na comunidade judaica internacional, que
interpretou que a autora estava isentando os alemães de culpa e
sugerindo que houve um “colapso moral” tanto dos alemães que apoiaram o
nazismo quanto dos judeus que foram suas vítimas.
Não
há nada de exatamente original na narrativa de Heberlein sobre a
história de amor entre Hannah e Heidegger, ou sobre seu relacionamento
com outros companheiros de jornada intelectual: basicamente todas as
informações foram retiradas de biografias pré-existentes da pensadora,
como as de Elzbietta Ettinger e, principalmente, Elizabeth Young-Bruehl.
O principal mérito do livro de Heberlein, portanto, não está em
qualquer revelação ou descoberta biográfica, mas no entrelaçamento
constante e engenhoso das experiências pessoais de Hannah Arendt com a
evolução de sua produção teórica – justamente por se tratar de um
pensamento fortemente ancorado nas experiências concretas. Nas palavras
da cientista política Janice Gross Stein, “o livro ‘Arendt – Entre o
amor e o mal’ mostra como o pessoal e o político, o viver e o pensar
estão entrelaçados em uma trama que não podemos, e não devemos,
separar”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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