Nossos antepassados teriam admitido a possibilidade de um vazamento do coronavírus sem drama. João Pereira Coutinho via FSP:
Aviso já: não sei se o famoso coronavíus vazou de um laboratório em Wuhan. Para usar a expressão da moda, não existe “evidência científica”.
Mas parece que também não há evidência científica de que o vírus passou de um bicho para um humano, razão pela qual 18 pesquisadores já admitem o cenário de vazamento em carta para a Science.
Aliás, o caso é tão sério que Joe Biden, antes cético, mudou de ideias: quer a “intelligence” do país a espreitar esse cenário.
Descanse, leitor. Não vou seguir o caminho fácil e afirmar que o ódio a Trump
provocou essa cegueira monumental. Se o Donald admitia um vírus
fugitivo, estava errado. Donde, o vírus só poderia ter vindo de um
comedor de morcego, ou de pangolim, consoante o gosto.
Não sou especialista em coronavírus. Nunca comi morcegos ou
pangolins (acho). Mas lembro de pensar: como é possível aceitar, “prima
facie”, o que o regime chinês afirma? Da última vez que confirmei, a
China era uma ditadura.
E se os governos democráticos já têm uma relação problemática com a verdade, que dizer de um regime autocrático?
Além disso, vazamentos de vírus não são fenômenos paranormais. Aconteceu com a Sars já neste século.
Sem
falar de casos mais célebres, como a varíola, que escapou de
laboratórios ingleses nas décadas de 1960 e 1970. E, no entanto,
qualquer sussurro sobre um vazamento chinês era fuzilado pela opinião
dominante —e pelo Facebook, que usava a tesoura da censura.
O jornalismo, esse, limitava-se a seguir a manada, sem fazer perguntas. Por quê?
Repito:
o ódio a Trump, aliás compreensível, não explica tudo. O bullying
chinês para calar a Organização Mundial da Saúde também não.
A
guerra contra a possibilidade de se obter a verdade fez-se em nome de
uma concepção errada de ciência. Ou, melhor dizendo, negando que existe
uma dimensão no próprio conhecimento científico.
A
afirmação é pesada, admito, mas não seria assim tanto para nossos avós.
Hoje, existe uma adoração quase religiosa pela ciência que teria
deixado o senhor Auguste Comte mudo e abobalhado.
Mas
o século 20 tinha uma relação mais ambígua com o conhecimento. Sim,
ninguém negava as benesses dos antibióticos, das vacinas ou dos
transplantes. O aumento da esperança de vida era, e é, a medida da nossa
gratidão.
Mas também ninguém negava que a ciência arrasara Hiroshima e Nagasaki; ou que fora usada nas câmaras de gás de Auschwitz ou Treblinka.
Nossos
antepassados teriam admitido a possibilidade de um vazamento do
coronavírus sem drama. Porque entendiam que os cientistas que manipulam
esses vírus para tentar ajudar a espécie humana são os mesmos que, por
erro ou coisa pior, podem devastar a espécie humana.
É
também por isso que celebro o acontecimento literário dos últimos anos.
Falo do livro “When We Cease to Understand the World”, do escritor chileno Benjamin Labatut.
Saberemos
logo se Labatut recebe o International Booker Prize, como merece. Mas o
seu livro, de um hibridismo revolucionário na literatura contemporânea,
é uma meditação brilhante sobre essa monstruosidade da ciência.
Monstruosidade em dois sentidos.
Por
um lado, ao transformar em arte a velha máxima de Nietzsche de que,
quando olhamos demoradamente para o abismo, o abismo também olha para
nós.
As
páginas sobre o grande matemático Alexander Grothendieck, que abandonou
a ciência e se entregou à reclusão por vislumbrar nos seus cálculos uma
capacidade infinitamente destrutiva, é um prodígio narrativo.
O
mesmo vale para os capítulos dedicados aos físicos Schrödinger e
Heisenberg: a forma como a mecânica quântica os levou aos confins da
racionalidade, para quase os despedaçar, é o oposto da versão Walt
Disney que hoje reina na maioria da divulgação científica.
Por outro lado, a monstruosidade está plasmada no destino de Fritz Haber. O químico alemão salvou milhões de seres humanos da fome ao inventar os primeiros fertilizantes artificiais.
O
mesmo Haber foi declarado criminoso de guerra pela França e pela
Inglaterra por ter desenvolvido os gases que os alemães usaram na Primeira Guerra Mundial.
Benjamin
Labatut, como nossos avós, tem “imaginação do desastre”: a capacidade
rara de vislumbrar no engenho humano o que existe de grandioso e
horripilante.
Nós,
infantis e amnésicos, já não conseguimos imaginar o lado sombrio de
nada. Essa é a razão por que somos mais perigosos que nunca.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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