Discute-se hoje a dicotomia entre esquerda e direita. Mas sempre houve várias esquerdas e várias direitas. Elas só puderam concorrer entre si nos regimes pluralistas, liberais e não-revolucionários. Artigo do professor João Carlos Espada para o Observador:
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Terminou na passada quinta-feira, 27 de Maio, a 12ª sessão semanal do
seminário académico sobre “Seis Revoluções da Era Moderna”, promovido
conjuntamente pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa e pelo Labô (Laboratório de Política, Comportamento e
Mídia) da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. As seis
revoluções incluíam a inglesa de 1688, a americana de 1776, a francesa
de 1789, a portuguesa de 1820, a brasileira de 1889, e a russa de 1917.
Foram oradores, respectivamente sobre cada uma daquelas revoluções, os
professores Carlos Marques de Almeida, Orlando Samões, João Pereira
Coutinho, José Tomaz Castello Branco (pelo IEP-UCP), Bruno Garschagen e
Luís Felipe Pondé (pelo Labô). Adreia Kogan, do Labô, e Rita Redondo, do
IEP, garantiram o impecável funcionamento de todo o programa. [Eu
limitei-me a introduzir o tema na primeira sessão e a agradecer
enfaticamente a todos na conclusão — além de ter seguido com muita
atenção, e com muitos apontamentos, todas as sessões.].
Não
houve conclusões — como não era suposto haver, numa genuína iniciativa
universitária dedicada à busca do conhecimento através de uma
conversação pluralista entre perspectivas diferentes, não à propaganda
de alegadas “verdades” de seitas particulares. Mas houve interrogações
genuínas que podem ser úteis para uma reflexão mais alargada. E houve um
sustentado interesse de alunos, professores e público em geral — cerca
de 150 presenças assíduas ao longo das 12 edições semanais (obviamente
por zoom).
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Na minha interpretação pessoal — que não pretende ser a oficial, a qual
aliás não existe — gostaria de sugerir cinco interrogações principais. A
primeira diz respeito ao contraste entre revoluções relutantes e
revoluções ardentes; a segunda diz respeito ao contraste entre governo
limitado que presta contas ao povo e o chamado governo do povo; a
terceira, ao contraste entre liberdade negativa e liberdade positiva; a
quarta, ao contraste entre dois conceitos de igualdade, perante a lei e
de oportunidade, ou de resultados; finalmente, entre regras gerais
(neutras, ou procedimentais) e propósitos substantivos (“libertadores”)
particulares.
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Um primeiro contraste fundamental parece distinguir a muito relutante
revolução inglesa de 1688 da muito ardente revolução francesa de 1789. A
revolução americana de 1776 terá ficado a meio caminho entre aquelas
duas — exprimindo certamente um radicalismo mais acentuado do que a
revolução conservadora-liberal inglesa; mas também de certa forma
relutante, quando comparada com o entusiasmo da inovadora revolução
francesa.
Seja
como for, o contraste entre revolução relutante e revolução ardente
certamente criou duas contrastantes tradições políticas modernas. Em
Inglaterra, sobretudo, e na América também, emergiu uma cultura política
céptica, para não dizer simplesmente hostil, à linguagem revolucionária
— que em regra é associada, naquelas culturas políticas, ao fanatismo
despótico de uma facção particular contra as outras.
Na
revolução francesa, por contraste, (assim como na revolução soviética
que a citou enfaticamente) a linguagem revolucionária foi associada à
libertação — em regra a libertação do chamado povo contra as chamadas
elites ou oligarquias. (Este mesmo entusiasmo revolucionário contra as
chamadas “oligarquias partidárias e parlamentares” esteve também patente
nas revoluções nacional-socialista e fascista — em tudo basicamente
semelhantes às revoluções comunistas, como Winston Churchill observou
desde o início).
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Daqui decorre, ou está associada, uma segunda distinção fundamental:
entre governo limitado que presta contas ao povo, por contraste com
governo do povo, ou em nome do povo — e, que, por ser alegadamente do
povo, não deveria nem precisaria de ser limitado.
Aqui,
as revoluções inglesa e americana foram unânimes e muito explícitas.
Ambas disseram que, mesmo se o chamado “governo do povo” fosse possível,
ele deveria ser cuidadosamente limitado e submetido à separação de
poderes e a severos freios e contrapesos. Caso contrário, tornar-se-ia
uma ditadura popular ou em nome da vontade popular.
Acresce
que o governo do povo não é tecnicamente possível, devido à
complexidade das sociedades modernas, ao número dos decisores envolvidos
e à dimensão das unidades políticas. Mas é possível, argumentaram os
revolucionários relutantes ingleses e americanos, um governo que prestas
conta ao povo — através de eleições livres regulares e de constante
prestação de contas do Governo ao Parlamento, este preferencialmente com
duas Câmaras que possam moderar-se mutuamente.
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terceira crucial distinção remete para um entendimento negativo da
liberdade, por contraste com um entendimento positivo de liberdade. No
entendimento negativo, liberdade quer basicamente dizer ausência de
coerção intencional por terceiros (designadamente pelo estado, mas
também pelos vizinhos). No entendimento positivo, por contraste,
liberdade quer dizer capacidade ou poder para agir “autonomamente”, ou
“racionalmente”, ou da “maneira correcta”.
Como
argumentou detalhadamente Isaiah Berlin, (e como o jacobinismo francês,
e depois o soviético, largamente ilustraram), o entendimento positivo
da liberdade (como “libertação racionalista”) gera uma hostilidade
fanática contra o pluralismo da sociedade civil, protegido pela
liberdade negativa. Aquele entendimento positivo da liberdade permitiu e
abundantemente justificou a perseguição pelo estado de dissidentes que
não subscreviam as teses “racionalistas libertadoras” — isto é, as teses
dos jacobinos e, depois, as teses dos comunistas. Exactamente o mesmo
aconteceu, seguramente não por acaso, com o nazismo e o fascismo — que
igualmente odiavam o pluralismo, a que chamavam “oligárquico,
capitalista e parlamentar”.
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Uma quarta distinção diz respeito a dois conceitos de igualdade. Também
aí as revoluções inglesa e americana foram (embora seguramente não
unânimes, devido à questão divisória da monarquia e da aristocracia)
enfaticamente contrárias à revolução francesa e à soviética. Ambas as
revoluções inglesa e americana defenderam a igualdade perante a lei — o
que implica a igual liberdade de iniciativa e empreendimento privado.
Daí
emergiu uma comum enfática desconfiança face a empresas do estado,
dotadas de protecções artificias contra a saudável concorrência do
mercado, isto é, das preferências dos consumidores. Neste contexto, os
partidos da esquerda em Inglaterra e na América preferiram sempre não se
designarem como socialistas (impensavelmemte como comunistas ou
nacional-socialistas) — mas como trabalhistas e democratas. E foi como
trabalhistas e como democratas que conseguiram impressionantes reformas
melhoristas das condições de vida das classes trabalhadoras — no âmbito
do capitalismo, que trabalhistas e democratas sempre subscreveram.
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Uma quinta e final distinção diz respeito à diferença entre regras
gerais (ou constitucionais) e propósitos particulares. As revoluções
relutantes inglesa e americana visaram sobretudo estabelecer (ou
restaurar) regras gerais — limitando o poder dos governos e garantindo a
concorrência e alternância entre propostas rivais no Parlamento. A
revolução francesa e a soviética, por contraste, anunciaram a soberania
de propósitos ou programas particulares — a que chamavam “libertadores
do povo”. A discordância ou oposição a estes propósitos particulares
libertadores foram de antemão denunciados como traidoras da vontade ou
dos interesses do chamado povo — de que os revolucionários seriam os
verdadeiros intérpretes, ou a verdadeira vanguarda.
Exactamente
a mesma gritaria revolucionária contra as regras gerais constitucionais
— que protegem o pluralismo de propósitos particulares expresso nos
Parlamentos — foi apanágio do nacional-socialismo e do fascismo. Tal
como o comunismo e o jacobinismo, fascismo e nacional-socialismo
atacaram o pluralismo partidário e parlamentar como “armas da burguesia,
do capitalismo e da oligarquia contra o povo”.
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Por outras palavras, discute-se hoje muito a urgente dicotomia entre a
esquerda e a direita. Mas sempre houve várias esquerdas e vária
direitas. Elas só puderam concorrer entre si nos regimes pluralistas,
liberais e não-revolucionários.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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