Antes que sentíssemos qualquer alívio, o presidente retomou a sua narrativa insana, defendendo a ideia de que basta ao povo coragem para voltar à normalidade e enfrentar o vírus que já vitimou mais de 220 mil brasileiros. Paulo Gontijo para o Estadão:
O
início da vacinação é o primeiro passo para o País sair da pior crise
enfrentada por esta geração. Em momentos de grandes dificuldades, nossa
espécie anseia por grandes líderes apontando caminhos de superação.
Infelizmente, no Brasil, nós nos deparamos hoje é com o gigantismo da
estupidez guiando a desordem e provocando instabilidades.
Não
há ação técnica coordenada entre União e Estados. Onde precisamos de um
governo para preservar a vida dos brasileiros, há apenas um comitê
eleitoral. No lugar de distribuir vacinas, distribuem-se palavrões em
churrascarias e cenas grotescas lambuzadas de leite condensado. O preço é
alto e permanecerá sendo pago em largas prestações.
Após
meses de negacionismo, Jair Bolsonaro ensaiou falar o óbvio: a vacina é
essencial para a retomada econômica. Mas antes que sentíssemos qualquer
alívio, o presidente retomou a sua narrativa insana, defendendo a ideia
de que basta ao povo coragem para voltar à normalidade e enfrentar o
vírus que já vitimou mais de 220 mil brasileiros.
Há,
porém, algo pior do que seus discursos irresponsáveis: o boicote à
vacinação. Fruto de uma combinação entre aloprados ideológicos, generais
incompetentes e a pura omissão, seja na diplomacia ou na falta de
implantação de um sistema de gestão do programa de imunização. E assim
seguimos patinando, com consequências graves para a vida de todos os
brasileiros e também para a economia.
As
piores repercussões humanitárias ainda estão a caminho. Há risco de
reedições da catástrofe de Manaus. Segundo projeções do economista
Daniel Duque, com o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da
doença a extrema pobreza pode atingir até 20 milhões de brasileiros e a
pobreza, que antes da pandemia era a condição de menos de 25% da
população, pode chegar a mais de 30%. Quando aplicadas no ano passado,
políticas de transferência de renda foram consenso. Agora voltam ao
centro das atenções. Interrompido sem uma transição minimamente
estruturada, o auxílio emergencial acabou significando um custo fiscal
muito maior em razão da desorganização, da falta de planejamento e do
caos político do governo Bolsonaro.
Criar
uma ampla rede de proteção com transferências diretas para os mais
pobres e vulneráveis é uma política herdeira do pensamento de liberais
como Thomas Paine, Stuart Mill, Friedrich Hayek e Milton Friedman.
Indiscutível do ponto de vista social, essa necessidade ilumina um
problema crônico e estrutural do Estado brasileiro: apesar de consumir
40% da riqueza nacional todos os anos com um orçamento trilionário,
nosso poder público, engessado em despesas obrigatórias, não foi capaz
de construir uma proteção minimamente robusta para os mais vulneráveis.
Mudar essa realidade deveria ser o centro das preocupações políticas.
Neste
momento, cabe às vozes liberais o cuidado com os mais frágeis no
presente, sem lhes sacrificar o futuro. Nosso esforço de guerra contra a
covid-19 não pode perder de vista o pós-guerra. A reconstrução da
economia e do mundo que herdaremos será mais ágil, ampla e inclusiva na
medida em que tivermos a capacidade de implementar políticas públicas
que sejam fruto da urgência, mas não se contaminem pelo desespero. Não
apenas é possível, como necessário, aliar sensibilidade social à
responsabilidade fiscal, a reformas que aumentem a eficiência do Estado
brasileiro, à proposta da Lei de Responsabilidade Social – elaborada
pelo Centro de Debate de Políticas Públicas após debate surgido no
movimento Livres –, que remaneja programas sociais já existentes em
busca de mais efetividade.
Em
direção oposta a esse esforço, porém, o que assistimos é a proposições
para ampliar poderes de forma abusiva, diminuir a transparência ou
simplesmente promover líderes do Executivo. São exemplos o alargamento
de prazos das medidas provisórias e da Lei de Acesso à Informação, a
injustificável menção a decreto de estado de defesa pelo
procurador-geral da República e a ameaça aberta de insurreição
antidemocrática em 2022 pelo próprio presidente, inspirado na invasão
dos trumpistas ao Capitólio. Com isso, antes de avançar, é preciso
assegurar que não vamos retroceder.
O
alerta liberal contra excessos do poder estatal está mais pertinente do
que nunca. Não à toa, nós, do Livres, ingressamos com ação civil
pública para convocar Jair Bolsonaro a apresentar em juízo as provas que
ele reiteradamente alega possuir sobre a suposta fraude eleitoral em
2018. Não há espaço para omissão. A credibilidade do sistema eleitoral é
pilar da legitimidade da democracia liberal. Utilizar o prestígio da
Presidência da República para minar as bases da democracia é um atentado
à Constituição. Em meio a uma pandemia, faltam até palavras para
classificar. Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do
autoritarismo. Em ambos os casos, a vacina será o passaporte para que
possamos voltar a sair de nossa casa, tomar as ruas e desfrutar, juntos,
o prazer da liberdade. E, sobretudo, encarar a responsabilidade de
defendê-la.
ANALISTA
POLÍTICO, ESPECIALISTA PELA UNIVERSIDADE DE GEORGETOWN (WASHINGTON,
D.C), É DIRETOR EXECUTIVO DO MOVIMENTO LIBERAL LIVRES.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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