A racional e equilibrada Ursula von der Leyen tem que recuar de decisão intempestiva para “capturar” vacinas destinadas ao Reino Unido. Vilma Gryzinski:
Pelo
lado positivo, Ursula von der Leyen reconheceu rapidamente o tamanho do
erro que estava sendo cometido sob sua gestão quando foi anunciado que a
União Europeia bloquearia a exportação de vacinas da Pfizer feitas na
Bélgica e destinadas ao Reino Unido.
O
lado negativo foi todo o resto. Tão escandalosamente negativo que
surgiu até um certo clamor para que renunciasse pouco mais de um ano
depois de assumir a presidência da Comissão Europeia, colocando uma boa
dose de calma e equilíbrio no lugar da jocosidade algo excessiva de
Jean-Claude Juncker.
Tendo
presidido as iniciativas lentas e burocráticas da Comissão de Saúde
para a aquisição de vacinas destinadas aos 27 países da União Europeia,
Von der Leyen despertou para o tamanho da crise quando os dois grandes
laboratórios que estão fornecendo o grosso das vacinas para os países
desenvolvidos, Pfizer e AstraZeneca, tiveram problemas de produção.
“A Europa está enfrentando um desastre em termos de vacina”, resumiu, algo dramaticamente, a revista Der Spiegel.
Para
piorar, a Grã-Bretanha, recém-saída do bloco (num processo em que
contou a racionalidade da alemã), está colhendo os frutos por ter sido
mais ágil e mais rápida na aprovação e compra das vacinas.
Pela
narrativa dominante, deveria ser o contrário: os pérfidos ingleses
amargariam no fim da fila, enquanto a nobre e solidária União Europeia
dava um exemplo do valor do trabalho conjunto.
Vendo
o tamanho da encrenca, os burocratas europeus resolveram agir. Foi aí
que Ursula Von der Leyen fez o “gol contra” – metáfora futebolística
usada por praticamente toda a grande imprensa europeia.
Recorrendo
a um dispositivo reservado a grandes emergências, a presidente resolveu
bloquear a entrada de vacinas no Reino Unido através da fronteira entre
a República da Irlanda e a Irlanda do Norte.
Quem
acompanhou as torturantes negociações para permitir a saída dos
ingleses talvez se lembre que resolver a situação pós-Brexit essa
fronteira foi um dos maiores problemas.
Pelo
acordo de paz que encerrou a luta armada dos católicos na Irlanda do
Norte, a linha divisória com os irmãos da república independente deve
ser aberta ao livre trânsito de pessoas e mercadorias.
Para
manter o status quo entre as duas partes da ilha irlandesa, uma
remanescente na União Europeia e outra levada, de má vontade, ao Brexit,
foram necessários vários e sofridamente negociados malabarismos
regulatórios.
A
decisão impensada, que durou apenas algumas horas, de Ursula von der
Leyen, de interferir exatamente nesse ponto de alta sensibilidade,
provocou o impossível: ingleses e irlandeses, normalmente cheios de
animosidade mútua, reagiram furiosamente dos dois lados da fronteira.
O
governo de Boris Johnson não demorou a vazar que, em dois telefonemas
“apimentados” com a presidente da Comissão Europeia, o primeiro-ministro
disse que a intervenção nos contratos com a Pfizer, afetando o
fornecimento de 3,5 milhões de doses de vacina, poderia ser diretamente
responsabilizada pela morte de idosos que aguardavam a segunda dose da
imunização.
Levar a culpa por matar avozinhos aposentados não é exatamente uma perspectiva promissora.
A
condenação à decisão atabalhoada da presidente da Comissão Europeia foi
unânime entre os grandes jornais europeus, de esquerda ou de direita.
Como
uma pessoa com o nível de preparo de Ursula von der Leyen não percebeu
as dimensões catastróficas de uma intervenção ditada pelo “nacionalismo
supranacional”, em tudo oposta aos valores mais fundamentais da União
Europeia?
Pertencer
à casta da alta burocracia europeia, sem nunca ter precisado fazer algo
tão banal como ganhar eleições, pode ter sido um dos fatores.
Economista
interrompida e médica, Ursula von der Leyen, é democrata-cristã, o
partido de centro-direita de Angela Merkel, com quem está desde o
primeiro dia de governo, tendo servido em vários ministérios.
Foi
a primeira mulher a ser ministra da Defesa da Alemanha, com atuação
criticada, principalmente depois que desequipados soldados do Exército
alemão participaram de treinamentos conjuntos europeus com cabos de
vassoura no lugar de fuzis, episódio de um ridículo doloroso.
Nascida
e criada na Bélgica, onde seu pai era funcionário do incipiente Mercado
Comum Europeu, e com sete filhos já adultos, certamente um curso
intensivo de administração de conflitos, Ursula von der Leyen parece
talhada desde o berço para ocupar o topo das vasta burocracia da UE.
É
justo culpá-la pela crise das vacinas, com um componente importante
causado pelos laboratórios que não conseguem honrar as encomendas?
“A
Comissão foi pega totalmente de surpresa”, escreveu a Spiegel,
geralmente alinhada mais com a centro-esquerda. “Frustração e indignação
têm crescido através da UE. A Europa, uma das regiões mais ricas do
mundo, está se mostrando incapaz de proteger seus cidadãos de uma doença
mortal”.
A
revista ouviu o secretário-geral da Social Democracia, Lars Klingbeil,
que desceu o chicote: “Estou absolutamente chocado com a negligência de
Ursula von der Leyen no comando do início da vacinação nos últimos
meses”.
Detalhe:
os social-democratas fazem parte, no sistema de coalizão, do governo de
Angela Merkel, a grande eleitora de von der Leyen para a Comissão
Europeia.
Pois são os social-democratas que estão pedindo a cabeça dela, em termos nada gentis.
“Enquanto
outros países, como a Grã-Bretanha, encomendavam grandes quantidades de
vacinas meses antes, a UE sob o comando de Ursula von der Leyen
fracassou em agir a tempo e depois se enrolou em cláusulas contratuais
com companhias farmacêuticas”, fuzilou Jörg Meuthen, um dos líderes dos
social-democratas.
“Ser
responsável também significa assumir a responsabilidade. Isso é o que
Frau von der Leyen deveria fazer agora. Ela causou muitos prejuízos não
só à Alemanha, mas a toda a União Europeia”.
Enquanto
isso, os tabloides ingleses deitam e rolam com a oportunidade
imperdível de espetar os alemães, em particular, e europeus, em geral.
“Nossos
vizinhos e amigos”, como diz Boris Johnson, cujos pecados estão sendo
temporariamente perdoados, estão se dando mal. Schadenfreude, a alegria
secreta sentida quando os próximos de ferram, nunca foi tão pouco
secreta.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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