terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Origem laboratorial do Coronavírus ainda é uma hipótese a ser levada a sério

 



Se o atual coronavírus causador da pandemia escapou de um laboratório da China, não seria a primeira vez. Em 1977, um vírus H1N1 escapuliu de um laboratório chinês e causou uma pandemia global em menor escala. Artigo do biólogo geneticista Eli Vieira para a Gazeta do Povo:


Desde o começo da pandemia da COVID-19, a ditadura chinesa vem mentindo sobre a origem do vírus em peças de propaganda disfarçadas de jornalismo. Alegou que a origem foi a Itália, depois Índia, militares americanos e “vários continentes”. Censurou profissionais de saúde e jornalistas pioneiros em perceber o perigo do vírus. Também fez propaganda de seus esforços de contenção do vírus e gastou dinheiro em jornais ao redor do globo para tentar melhorar sua imagem. Segundo a Associated Press, o governo chinês desperdiçou oportunidades de conter a pandemia que assola o planeta.

O Partido Comunista Chinês, não eleito e herdeiro da mão genocida de Mao Tsé-tung é, portanto, no mínimo culpado de negligência. Oficiais chineses que promovem a pseudocientífica “medicina” tradicional chinesa chegaram a recomendar bile de urso como tratamento para a nova doença. Quase um milhão e meio de mortes até o momento são o resultado disso, além de outros erros locais ao redor do planeta.

A origem do vírus ainda é uma questão em aberto. Por isso, atrai não apenas as respostas propagandísticas do governo Xi Jinping, mas também aqueles que têm pressa de provar que os governantes chineses são culpados por muito mais do que o já mencionado: teriam criado o vírus propositalmente. Isso gera uma espiral de hipérbole, com pessoas também descartando essa hipótese com pressa, alegando se tratar de uma “teoria da conspiração”.

O fato de que há pessoas com paranoias não é prova de que conspirações não existem: a folha de pagamento secreta da Odebrecht e o escândalo Watergate ilustram perfeitamente que o mundo contém conspirações reais. Elas só são difíceis de provar.

Mas podemos reduzir nossas pretensões: em vez de perguntar se o vírus veio de uma conspiração, podemos fazer duas perguntas mais claras e diretas: (1) seria possível que o vírus estava sendo estudado em laboratório, e escapou por acidente? E, em separado: (2) seria possível que ele tenha sido modificado por cientistas de tal forma que, propositalmente ou não, facilitou seu parasitismo sobre células humanas? Saímos, assim, do campo da paranoia, e adentramos o campo das plausibilidades.

Um “consenso” científico apressado

A maioria dos cientistas não parece acreditar, no momento, que possamos responder afirmativamente a alguma das duas perguntas. Kristian G. Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps, Califórnia, publicou com colaboradores em março uma carta no respeitado periódico científico Nature Medicine na qual afirma categoricamente que suas análises “mostram claramente que [o coronavírus] não é um produto de laboratório ou um vírus manipulado de propósito”. O artigo já tem quase 2 mil citações por outras publicações acadêmicas no indexador do Google. Isso é suficiente para dizer não à pergunta 1 e à pergunta 2?

Ao menos dois cientistas pensam que não: Rossana Segreto, da Universidade de Innsbruck, na Áustria, e seu colaborador Yuri Deigin, da Youthereum Genetics Inc., no Canadá. Segreto e Deigin publicaram em 17 de novembro um artigo que responde a Andersen e outros. O novo artigo argumenta que a hipótese de o vírus ter surgido no mercado de frutos do mar de Huanan já está descartada, pois nenhum material genético intermediário entre o vírus da COVID-19, altamente adaptado às células humanas, e seus parentes mais próximos na natureza foi achado por lá.

Mudanças genéticas importantes aconteceram na evolução do coronavírus da pandemia, quando comparado aos vírus mais aparentados encontrados no pangolim e em morcegos. Segreto e Deigin citam as duas principais:

* Um local de corte (geneticistas dizem “sítio de clivagem”) de proteínas utilizado pela enzima humana furina. Muitas proteínas precisam ser cortadas pela furina neste local para se tornarem ativas no nosso organismo. Esse sítio de clivagem não ocorre nos parentes mais próximos do coronavírus.

* Um pedaço (geneticistas dizem “domínio”) da proteína spike da superfície do vírus que se liga a proteínas de superfície de células humanas. O processo de fusão da membrana de um vírus à membrana das células humanas, essencial para o sucesso do vírus, é mediado por proteínas que fazem um tipo de “aperto de mão” molecular. Esse domínio da proteína do coronavírus, chamado RBD, tem um aperto de mão especialmente convidativo.

Seria coincidência demais, argumentam os dois cientistas, que essas duas características importantes tenham surgido simultaneamente no coronavírus, sem intervenção humana, e sem deixar vírus intermediários pelo caminho.

Virologistas chineses se contradizem

As coincidências não param aí. O genoma parente mais próximo do vírus em morcegos é conhecido como RaTG13, coletado de uma caverna na província de Yunnan. Foi depositado em bancos de sequências de DNA e RNA em 2013, mas incompletamente, pelo mesmo grupo de cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan (cidade onde começou a pandemia na China), entre eles Peng Zhou, que publicou a sequência do vírus da COVID-19. Porém, havia uma outra sequência viral no banco de dados, que só mais tarde foi identificada como RaTG13.

A justificativa dos cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan é que terminaram de sequenciar após os surtos da pandemia. Porém, um deles, logo depois, mudou a versão e alegou que a sequência completa estava pronta desde 2018. Por que os virologistas chineses estão se contradizendo? A data de coleta da sequência incompleta, 2013, coincide com três mortes de mineiros que estavam limpando guano da caverna no ano anterior. Três sobreviveram. Tinham sintomas de infecção respiratória, e em seu sangue foram achados anticorpos contra SARS – porém, isso foi mais uma década após a SARS (conhecida como “gripe asiática” na época), e não foi na mesma região da China.

Reiterando: os cientistas de uma instituição de estudo de vírus sediada na cidade onde começou a COVID-19 estão se contradizendo sobre informações a respeito da coleta dos vírus mais aparentados ao da doença numa caverna em que trabalhadores morreram com sintomas similares aos da doença.

Vinte anos de quimeras coronavirais

A quimera é uma fera da mitologia que tem partes de diferentes animais em seu corpo. A genética tomou o mito emprestado para identificar quimerismos: casos de materiais genéticos que parecem quimeras. Há duas formas de quimeras genéticas surgirem: através de vírus que cortam, emendam e remendam pedaços de DNA e RNA, e através de experimentos em laboratório. O grupo dos coronavírus já era usado em experimentos de quimerismos nos últimos anos.

Havia já alertas dos riscos de uma dessas quimeras virais escapar de um laboratório e causar uma pandemia. Uma ONG chamada EcoHealth Alliance investia em experimentos desse tipo com o grupo dos coronavírus. Entre os beneficiários desta ONG está o Instituto de Virologia de Wuhan.

O quimerismo é feito com outros coronavírus há décadas. Em 1999, por exemplo, um grupo da Universidade de Utrecht criou uma quimera do coronavírus que infecta gatos com o coronavírus que infecta camundongos.

Em 2007, um grupo do Instituto de Virologia de Wuhan também fez uma quimera: seu “tronco” era de coronavírus de morcego, e a proteína spike era uma mistura de CoV de morcego com o vírus da SARS. O grupo conseguiu identificar exatamente qual parte da proteína spike poderia ser mudada para possibilitar a ligação do vírus à proteína de superfície de células humanas.

No ano seguinte, um grupo de cientistas da Universidade da Carolina do Norte fez algo similar. Em 2015, esses americanos e chineses uniram forças e publicaram o mais famoso artigo sobre como fazer vírus quiméricos: mais uma vez, utilizando vírus de animais selvagens e vírus da SARS.

Reiterando: 20 anos de pesquisas com quimerismo em coronavírus antecederam a pandemia de COVID-19, cujo vírus se parece bastante com um vírus originado em experimentos de quimerismo.

O diabo está nos detalhes moleculares

A citadíssima carta de Andersen e seus colaboradores especula que o vírus da COVID-19 não teria muita afinidade à proteína de superfície humana. Segreto e Deigin afirmam que o vírus tem mais afinidade à proteína humana que à de pangolins e morcegos.

Seria possível que o novo coronavírus da pandemia fosse uma quimera natural surgida de infecção simultânea nos pangolins, em que o RBD fosse adquirido de uma infecção de CoV de pangolim e o resto viesse de algo parecido com o RaTG13. Mas um desses vírus (RaTG13) não parece capaz de infectar pangolins. Além disso, a infecção de pangolins com outros coronavírus é baixa na natureza, e os pangolins são escassos, o que torna a infecção simultânea de uma célula deles extremamente improvável.

Quanto ao sítio de clivagem típico da furina: a presença dessa estrutura nas proteínas do vírus da COVID-19 é um dos elementos que permitem que ele penetre em órgãos atípicos para outros coronavírus, causando os sintomas sistêmicos dessa doença. Sem esse detalhe molecular, a pandemia não estaria acontecendo ou seria menos letal. O sítio da furina é essencial para a capacidade do vírus de infectar pulmões humanos.

Vamos para uma escala menor ainda: dois aminoácidos do tipo arginina desse sítio são suspeitosamente codificados de uma forma em que somente 5% das outras argininas do coronavírus pandêmico são codificadas no material genético do vírus. Essa pequeníssima região do genoma do vírus contém um conhecido alvo de corte de enzima de restrição. As enzimas de restrição eram as principais formas de fazer engenharia genética antes do surgimento recente da técnica CRISPR. Há seis desses alvos de corte no genoma do vírus da pandemia, e quatro em seu parente mais próximo conhecido, RaTG13 (dos morcegos), e somente dois no vírus do pangolim. Outra coincidência?

Para os interessados em mais desses detalhes moleculares, Segreto e Deigin oferecem refutações ponto a ponto dos argumentos de Andersen para afirmar categoricamente que o vírus da COVID-19 tem origem natural. Interessantemente, os virologistas de Wuhan alegam que sua amostra de RaTG13 foi esgotada, o que impede que seja investigada por examinadores externos. Além disso, em maio, suspeitíssimas mudanças foram feitas nos bancos de dados do instituto, por exemplo substituindo “morcegos e roedores” por “animais selvagens”. Mais estranhamente (ou não) 60 Megabytes do banco de dados do Instituto de Virologia de Wuhan sumiram de seu website.

Se o atual coronavírus causador da pandemia escapou de um laboratório da China, não seria a primeira vez. Em 1977, um vírus H1N1 escapuliu de um laboratório chinês e causou uma pandemia global em menor escala. Em novembro de 2019, mais de 100 estudantes e funcionários de dois centros de pesquisa de Lanzhou, no mesmo país, foram infectados com brucelose, também por causa de uma escapada do patógeno, que no caso é uma bactéria.

Conclusões

Rossana Segreto e Yuri Deigin trouxeram indícios bastante sugestivos de que a hipótese de origem artificial do coronavírus da COVID-19 e a hipótese de que tenha escapado de laboratório devem ser levadas a sério, não descartadas como ideias malucas que só ocorreriam a pessoas paranoicas ou a inimigos políticos da ditadura chinesa em busca de difamá-la.

A iniciativa dos dois cientistas deve ser louvada não só pela perícia com que foi feita, mas também pela coragem que é necessária em meio a uma profissão que estudos mostram que é dominada por mentes que simpatizam com a esquerda, que por sua vez simpatiza com a ditadura chinesa.

É um passo na direção de discutir a origem do vírus envolvendo todas as hipóteses plausíveis, não só as politicamente convenientes. Se um dia chegarmos a saber da origem do vírus, isso não devolverá a vida das vítimas da pandemia, nem provavelmente consolará suas famílias.

Algumas pessoas, no entanto, encontram algum tipo de conforto altivo no conhecimento. Um exemplo é Kim Goodsell, que sofre de uma doença genética incurável. Ela mesma descobriu qual mutação carrega, motivada por esse senso de querer saber mesmo quando não há uma promessa prática nisso. “Eu queria saber. Mesmo tendo um terrível prognóstico, o ato de saber aplaca a ansiedade. Há um senso de empoderamento.” Como Goodsell, ousemos saber.

*Eli Vieira é biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, Reino Unido.

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