Se o atual coronavírus causador da pandemia escapou de um laboratório da China, não seria a primeira vez. Em 1977, um vírus H1N1 escapuliu de um laboratório chinês e causou uma pandemia global em menor escala. Artigo do biólogo geneticista Eli Vieira para a Gazeta do Povo:
Desde
o começo da pandemia da COVID-19, a ditadura chinesa vem mentindo sobre
a origem do vírus em peças de propaganda disfarçadas de jornalismo.
Alegou que a origem foi a Itália, depois Índia, militares americanos e
“vários continentes”. Censurou profissionais de saúde e jornalistas
pioneiros em perceber o perigo do vírus. Também fez propaganda de seus
esforços de contenção do vírus e gastou dinheiro em jornais ao redor do
globo para tentar melhorar sua imagem. Segundo a Associated Press, o
governo chinês desperdiçou oportunidades de conter a pandemia que assola
o planeta.
O
Partido Comunista Chinês, não eleito e herdeiro da mão genocida de Mao
Tsé-tung é, portanto, no mínimo culpado de negligência. Oficiais
chineses que promovem a pseudocientífica “medicina” tradicional chinesa
chegaram a recomendar bile de urso como tratamento para a nova doença.
Quase um milhão e meio de mortes até o momento são o resultado disso,
além de outros erros locais ao redor do planeta.
A
origem do vírus ainda é uma questão em aberto. Por isso, atrai não
apenas as respostas propagandísticas do governo Xi Jinping, mas também
aqueles que têm pressa de provar que os governantes chineses são
culpados por muito mais do que o já mencionado: teriam criado o vírus
propositalmente. Isso gera uma espiral de hipérbole, com pessoas também
descartando essa hipótese com pressa, alegando se tratar de uma “teoria
da conspiração”.
O
fato de que há pessoas com paranoias não é prova de que conspirações
não existem: a folha de pagamento secreta da Odebrecht e o escândalo
Watergate ilustram perfeitamente que o mundo contém conspirações reais.
Elas só são difíceis de provar.
Mas
podemos reduzir nossas pretensões: em vez de perguntar se o vírus veio
de uma conspiração, podemos fazer duas perguntas mais claras e diretas:
(1) seria possível que o vírus estava sendo estudado em laboratório, e
escapou por acidente? E, em separado: (2) seria possível que ele tenha
sido modificado por cientistas de tal forma que, propositalmente ou não,
facilitou seu parasitismo sobre células humanas? Saímos, assim, do
campo da paranoia, e adentramos o campo das plausibilidades.
Um “consenso” científico apressado
A
maioria dos cientistas não parece acreditar, no momento, que possamos
responder afirmativamente a alguma das duas perguntas. Kristian G.
Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps, Califórnia, publicou com
colaboradores em março uma carta no respeitado periódico científico
Nature Medicine na qual afirma categoricamente que suas análises
“mostram claramente que [o coronavírus] não é um produto de laboratório
ou um vírus manipulado de propósito”. O artigo já tem quase 2 mil
citações por outras publicações acadêmicas no indexador do Google. Isso é
suficiente para dizer não à pergunta 1 e à pergunta 2?
Ao
menos dois cientistas pensam que não: Rossana Segreto, da Universidade
de Innsbruck, na Áustria, e seu colaborador Yuri Deigin, da Youthereum
Genetics Inc., no Canadá. Segreto e Deigin publicaram em 17 de novembro
um artigo que responde a Andersen e outros. O novo artigo argumenta que a
hipótese de o vírus ter surgido no mercado de frutos do mar de Huanan
já está descartada, pois nenhum material genético intermediário entre o
vírus da COVID-19, altamente adaptado às células humanas, e seus
parentes mais próximos na natureza foi achado por lá.
Mudanças
genéticas importantes aconteceram na evolução do coronavírus da
pandemia, quando comparado aos vírus mais aparentados encontrados no
pangolim e em morcegos. Segreto e Deigin citam as duas principais:
*
Um local de corte (geneticistas dizem “sítio de clivagem”) de proteínas
utilizado pela enzima humana furina. Muitas proteínas precisam ser
cortadas pela furina neste local para se tornarem ativas no nosso
organismo. Esse sítio de clivagem não ocorre nos parentes mais próximos
do coronavírus.
*
Um pedaço (geneticistas dizem “domínio”) da proteína spike da
superfície do vírus que se liga a proteínas de superfície de células
humanas. O processo de fusão da membrana de um vírus à membrana das
células humanas, essencial para o sucesso do vírus, é mediado por
proteínas que fazem um tipo de “aperto de mão” molecular. Esse domínio
da proteína do coronavírus, chamado RBD, tem um aperto de mão
especialmente convidativo.
Seria
coincidência demais, argumentam os dois cientistas, que essas duas
características importantes tenham surgido simultaneamente no
coronavírus, sem intervenção humana, e sem deixar vírus intermediários
pelo caminho.
Virologistas chineses se contradizem
As
coincidências não param aí. O genoma parente mais próximo do vírus em
morcegos é conhecido como RaTG13, coletado de uma caverna na província
de Yunnan. Foi depositado em bancos de sequências de DNA e RNA em 2013,
mas incompletamente, pelo mesmo grupo de cientistas do Instituto de
Virologia de Wuhan (cidade onde começou a pandemia na China), entre eles
Peng Zhou, que publicou a sequência do vírus da COVID-19. Porém, havia
uma outra sequência viral no banco de dados, que só mais tarde foi
identificada como RaTG13.
A
justificativa dos cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan é que
terminaram de sequenciar após os surtos da pandemia. Porém, um deles,
logo depois, mudou a versão e alegou que a sequência completa estava
pronta desde 2018. Por que os virologistas chineses estão se
contradizendo? A data de coleta da sequência incompleta, 2013, coincide
com três mortes de mineiros que estavam limpando guano da caverna no ano
anterior. Três sobreviveram. Tinham sintomas de infecção respiratória, e
em seu sangue foram achados anticorpos contra SARS – porém, isso foi
mais uma década após a SARS (conhecida como “gripe asiática” na época), e
não foi na mesma região da China.
Reiterando:
os cientistas de uma instituição de estudo de vírus sediada na cidade
onde começou a COVID-19 estão se contradizendo sobre informações a
respeito da coleta dos vírus mais aparentados ao da doença numa caverna
em que trabalhadores morreram com sintomas similares aos da doença.
Vinte anos de quimeras coronavirais
A
quimera é uma fera da mitologia que tem partes de diferentes animais em
seu corpo. A genética tomou o mito emprestado para identificar
quimerismos: casos de materiais genéticos que parecem quimeras. Há duas
formas de quimeras genéticas surgirem: através de vírus que cortam,
emendam e remendam pedaços de DNA e RNA, e através de experimentos em
laboratório. O grupo dos coronavírus já era usado em experimentos de
quimerismos nos últimos anos.
Havia
já alertas dos riscos de uma dessas quimeras virais escapar de um
laboratório e causar uma pandemia. Uma ONG chamada EcoHealth Alliance
investia em experimentos desse tipo com o grupo dos coronavírus. Entre
os beneficiários desta ONG está o Instituto de Virologia de Wuhan.
O
quimerismo é feito com outros coronavírus há décadas. Em 1999, por
exemplo, um grupo da Universidade de Utrecht criou uma quimera do
coronavírus que infecta gatos com o coronavírus que infecta camundongos.
Em
2007, um grupo do Instituto de Virologia de Wuhan também fez uma
quimera: seu “tronco” era de coronavírus de morcego, e a proteína spike
era uma mistura de CoV de morcego com o vírus da SARS. O grupo conseguiu
identificar exatamente qual parte da proteína spike poderia ser mudada
para possibilitar a ligação do vírus à proteína de superfície de células
humanas.
No
ano seguinte, um grupo de cientistas da Universidade da Carolina do
Norte fez algo similar. Em 2015, esses americanos e chineses uniram
forças e publicaram o mais famoso artigo sobre como fazer vírus
quiméricos: mais uma vez, utilizando vírus de animais selvagens e vírus
da SARS.
Reiterando:
20 anos de pesquisas com quimerismo em coronavírus antecederam a
pandemia de COVID-19, cujo vírus se parece bastante com um vírus
originado em experimentos de quimerismo.
O diabo está nos detalhes moleculares
A
citadíssima carta de Andersen e seus colaboradores especula que o vírus
da COVID-19 não teria muita afinidade à proteína de superfície humana.
Segreto e Deigin afirmam que o vírus tem mais afinidade à proteína
humana que à de pangolins e morcegos.
Seria
possível que o novo coronavírus da pandemia fosse uma quimera natural
surgida de infecção simultânea nos pangolins, em que o RBD fosse
adquirido de uma infecção de CoV de pangolim e o resto viesse de algo
parecido com o RaTG13. Mas um desses vírus (RaTG13) não parece capaz de
infectar pangolins. Além disso, a infecção de pangolins com outros
coronavírus é baixa na natureza, e os pangolins são escassos, o que
torna a infecção simultânea de uma célula deles extremamente improvável.
Quanto
ao sítio de clivagem típico da furina: a presença dessa estrutura nas
proteínas do vírus da COVID-19 é um dos elementos que permitem que ele
penetre em órgãos atípicos para outros coronavírus, causando os sintomas
sistêmicos dessa doença. Sem esse detalhe molecular, a pandemia não
estaria acontecendo ou seria menos letal. O sítio da furina é essencial
para a capacidade do vírus de infectar pulmões humanos.
Vamos
para uma escala menor ainda: dois aminoácidos do tipo arginina desse
sítio são suspeitosamente codificados de uma forma em que somente 5% das
outras argininas do coronavírus pandêmico são codificadas no material
genético do vírus. Essa pequeníssima região do genoma do vírus contém um
conhecido alvo de corte de enzima de restrição. As enzimas de restrição
eram as principais formas de fazer engenharia genética antes do
surgimento recente da técnica CRISPR. Há seis desses alvos de corte no
genoma do vírus da pandemia, e quatro em seu parente mais próximo
conhecido, RaTG13 (dos morcegos), e somente dois no vírus do pangolim.
Outra coincidência?
Para
os interessados em mais desses detalhes moleculares, Segreto e Deigin
oferecem refutações ponto a ponto dos argumentos de Andersen para
afirmar categoricamente que o vírus da COVID-19 tem origem natural.
Interessantemente, os virologistas de Wuhan alegam que sua amostra de
RaTG13 foi esgotada, o que impede que seja investigada por examinadores
externos. Além disso, em maio, suspeitíssimas mudanças foram feitas nos
bancos de dados do instituto, por exemplo substituindo “morcegos e
roedores” por “animais selvagens”. Mais estranhamente (ou não) 60
Megabytes do banco de dados do Instituto de Virologia de Wuhan sumiram
de seu website.
Se
o atual coronavírus causador da pandemia escapou de um laboratório da
China, não seria a primeira vez. Em 1977, um vírus H1N1 escapuliu de um
laboratório chinês e causou uma pandemia global em menor escala. Em
novembro de 2019, mais de 100 estudantes e funcionários de dois centros
de pesquisa de Lanzhou, no mesmo país, foram infectados com brucelose,
também por causa de uma escapada do patógeno, que no caso é uma
bactéria.
Conclusões
Rossana
Segreto e Yuri Deigin trouxeram indícios bastante sugestivos de que a
hipótese de origem artificial do coronavírus da COVID-19 e a hipótese de
que tenha escapado de laboratório devem ser levadas a sério, não
descartadas como ideias malucas que só ocorreriam a pessoas paranoicas
ou a inimigos políticos da ditadura chinesa em busca de difamá-la.
A
iniciativa dos dois cientistas deve ser louvada não só pela perícia com
que foi feita, mas também pela coragem que é necessária em meio a uma
profissão que estudos mostram que é dominada por mentes que simpatizam
com a esquerda, que por sua vez simpatiza com a ditadura chinesa.
É
um passo na direção de discutir a origem do vírus envolvendo todas as
hipóteses plausíveis, não só as politicamente convenientes. Se um dia
chegarmos a saber da origem do vírus, isso não devolverá a vida das
vítimas da pandemia, nem provavelmente consolará suas famílias.
Algumas
pessoas, no entanto, encontram algum tipo de conforto altivo no
conhecimento. Um exemplo é Kim Goodsell, que sofre de uma doença
genética incurável. Ela mesma descobriu qual mutação carrega, motivada
por esse senso de querer saber mesmo quando não há uma promessa prática
nisso. “Eu queria saber. Mesmo tendo um terrível prognóstico, o ato de
saber aplaca a ansiedade. Há um senso de empoderamento.” Como Goodsell,
ousemos saber.
*Eli Vieira é biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, Reino Unido.
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